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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O OBJETO DE FREUD A LACAN (1ª Parte)

Desde o “Projeto...” vê-se presente na obra de Freud o objeto em seu sentido convencional - inclusive no clássico par sujeito-objeto da teoria do conhecimento, que o próprio Freud, desde então, descarta e diferencia do que vem a ser o objeto próprio da experiência analítica.
Pode-se delimitar, no entanto, três grandes dimensões do conceito de objeto em Freud: 
A) Do ponto de vista teórico, o primeiro a ser deslindado foi o objeto de desejo, o objeto perdido da experiência de satisfação alucinatória. O objeto em jogo a nível do processo primário. Aquele mesmo que se depreende como “Das Ding” quando a experiência do pensamento, ao fazer o julgamento das percepções depara-se com uma não coincidência entre os traços de percepção e os traços de memória. Ora é esta “não coincidência” mesma que provoca o pensar ou, como nos diz Freud, “erwecken das Interess” a partir de “Züge” (Traços) que se instalam na imagem construída do “Nebenmensch” (Homen ao lado): “Was wir Dinge nennen, sind Reste, die sich der Beurteilung entziehen”. (O que se chamam coisas, são resíduos que evitam serem julgados)  
O objeto perdido do desejo sexual infantil tem, como paradigma o objeto oral em sua articulação com a experiência de satisfação.
O objeto de desejo permanece, ao longo de toda obra de Freud, como o fio estável: é o objeto próprio do funcionamento inconsciente.
B) O segundo destes objetos, em Freud, é o objeto da pulsão parcial. Em 1905, no texto “Os três ensaios ...”, este objeto é descrito como muito próximo ao objeto de desejo, mas não idêntico. 
Na parte III, item 5 - “O Encontro do objeto” - , Freud assim descreve este processo de encontro: (Na puberdade) “Simultaneamente no lado psíquico, o processo de encontrar um objeto, para o qual preparações foram feitas desde a mais tenra infância, está completa.
“No momento em que as primeiras satisfações sexuais estão ainda ligadas com a amamentação, a pulsão sexual tem um objeto fora do próprio corpo do infans, na forma do seio de sua mãe. É somente mais tarde que a pulsão perde seu objeto, justamente no momento, talvez, quando a criança é capaz de formar uma idéia total (Gesamtvorstellung) da pessoa a quem o órgão que o satisfaz, pertence. Como regra, a pulsão sexual se torna auto-erótica e a relação original só é restaurada quando o período de latência foi ultrapassado. Há então, boas razões do porque uma criança sugando o seio materno tornou-se o protótipo de toda relação amorosa. O encontro de um objeto é, de fato, um reencontro.” 
Serge André, em seu Artigo “A pulsão no esquizofrênico”, resume de maneira brilhante este parágrafo de Freud, referindo-se ao auto-erotismo: “... o infans passa de uma posição onde ele é um corpo entregue aos caprichos do Outro, à posição onde ele tem um corpo que ele oferece a ser ‘self-service’ ... em suma, o sujeito vem do exterior, bater à porta de seu próprio corpo. A pulsão encontra nesta divisão (Outro exterior - zona erógena - corpo) a causa de sua bipolaridade fundamental: passividade - atividade.” 
Portanto, a proximidade destes objetos não os fazem idênticos e talvez seja mais propício, como nos sugere D. Rabinovich em sua tese de doutoramento, “perguntar-se sobre a interseção que se produz entre ambos: objeto de desejo e objeto da pulsão, mantendo, não obstante, a peculiar originalidade de ambos”, para concluir-se que “o objeto perdido do desejo é condição de produção do objeto pulsional na obra freudiana.”
C) O terceiro é o objeto de amor, que é o fio condutor de uma série que Freud separou da série dos estádios libidinais próprios da pulsão parcial. Esta série, inaugurada em 1911 com o “Caso Schreber”, e que tem seu ápice no texto “Introdução ao narcisismo” foi batizada de ‘eleição de objeto’.
Importante mencionar aqui o lugar que ocupa o Falo, este objeto excêntrico e que tem um surgimento tardio na obra freudiana (anos 20). Ele se articula de maneira diferente com cada uma das duas séries mencionadas acima.
Ao desenvolver sua tese, D. Rabinovich parte destas duas dimensões do objeto (objeto parcial e objeto amoroso) para dizer que elas produzem duas séries diferentes:
1 - A série pulsional com seus estádios toma ao outro somente como apoio. Ela nasce da necessidade e faz um uso particular das partes do corpo. A este uso Freud chamou de “prazer de órgão”. Aqui a contingência se opõe à eleição e o modelo em questão é o anaclítico.
2 - A série da eleição de objeto  é aquela que vai se desgarrar do auto-erotismo inicial, passar pelo narcisismo e culminar na eleição do objeto heterossexual. Nesta série, a eleição de objeto remete a um outro definido como pessoa, se referindo, portanto, ao campo que Se pode chamar de totalização sexual (outro sexuado: homo ou heterosexual). Este segundo processo se estrutura em torno do papel do narcisismo.

Para concluir este pequeno sobrevôo em Freud, digo-lhes que as duas séries aqui descritas convergem ao que Freud chamou de “fase fálica”.
O que se pode constatar é o complexo de castração no seu papel de articular ambas as séries, não só entre si, mas também delas com o Complexo de Édipo. 


terça-feira, 23 de setembro de 2014

Da suposição à ex-sistência

 “Esta noção que se liga à ex-sistência a partir de um impasse lógico é o que explica a escolha que se faz do termo passe para essa virada da suposição à ex-sistência”
 
Esse tema foi escolhido, não só pela sua atualidade, mas para dizer que a direção do tratamento tem uma lógica que pode ser depreendida quando, uma vez construído um ponto final, a curva faz retorno e se debruça sobre um trajeto, possibilitando um eixo de pesquisa e trabalho. Afinal o mínimo que se espera de um analista que advém ao final de sua análise é que ele possa dar testemunho deste trajeto ao “tornar-se analista da própria experiência”. É, portanto, este retorno sobre o começo que propicia uma ordenação lógica e, consequentemente, a possibilidade de uma transmissão. De uma forma bem simples é a que se propõe um Passe. Após o ponto final trabalha-se, e muito, para depreender a consistência lógica dos acontecimentos que foram responsáveis pelas passagens que ajudaram a construir o que Lacan denominou de “atravessamento da fantasia” e o que pode daí advir quando se tira consequências desta passagem: da identificação ao sintoma a saber aí fazer com seu sintoma...
 
Um sujeito entra em análise pela via da transferência e, consequentemente, a partir da instalação do Sujeito Suposto Saber que é o pivô disto que Freud chamou de sintoma analítico. Esta via coloca em jogo o traço do “Ideal do eu” e sua articulação com a identificação oferecida pelo “eu ideal”. Esta possibilidade de identificação, que se qualifica como identificação ao pai, acontece  porque o Sujeito Suposto Saber só faz nomear, explicitar o efeito de sentido que vem do Outro. Em contra partida, o sem-sentido é o que permanece separado do Outro, ficando silencioso neste processo de proliferação do sentido a partir do Sujeito Suposto Saber. Este sem-sentido, que habita o núcleo da fantasia, é o responsável pela paralisia do sujeito diante de uma frase. No exemplo que Freud constrói, a frase é: “bate-se numa criança”. O sujeito se detêm diante dela, na ânsia de restabelecer um elo perdido entre o sem-sentido que ela aponta e o Outro do discurso. Esta frase, podemos dizer, vale por um significante unário, um S1, que leva o sujeito a inquietar-se, a buscar um outro significante que possa fazer as vezes de S2, estabelecendo um sentido qualquer. Mas, existe, neste ponto, um paradoxo, pois este S1, além de não pedir uma outra palavra ou outra frase, um S2, ele se recusa a isso.
Um Sujeito Suposto Saber, portanto, designa a presença de um significante, ou seja, indica um efeito de sentido, enquanto o que denominamos de sentido-gozado (jouis-sens) é o que não pode ser traduzido em significantes, mas desliza sob o sentido da cadeia significante impregnando as respostas do sujeito com o sem-sentido. Este sentido-gozado não é suposto, é experimentado.
Para abordarmos este sentido-gozado, que está no cerne de nossa questão neste percurso que vai do sintoma da identificação à identificação ao sintoma, será necessário distinguir, do sentido-gozado, o que lhe permite acesso na teoria analítica: a fantasia. Fantasia que está, de alguma forma, articulada ao Outro.
Partindo do andar inferior do grafo: A ----> s(A), podemos seguir Lacan e buscar a posição do Outro no efeito de sentido, quando se trata da fantasia:
A/ ---> ($<>a)
A ---->  s(A)
Nestes dois esquemas, que nos fornece Miller em seu seminário Los Signos del Gozo, podemos perceber uma diferença fundamental que se apresenta em relação ao Outro. Enquanto na relação de sentido temos um Outro sem barra – o que indica a alienação - o Outro que  corresponde à fantasia é um Outro modificado, um Outro barrado – que aponta para a separação. Nesta perspectiva a fantasia se coloca como o que responde, no sujeito, à angústia produzida pela presença do desejo do Outro. A barra sobre este Outro é que nos diz que ele é desejante. A fantasia pode, inclusive, ser considerada como a colocação em cena do desejo do Outro ou, mais especificamente, cena que nos diz como foi a interpretação que se fez do desejo do Outro. É por isso, talvez, que se pode falar, com Lacan, que a fantasia fundamental é a colocação em cena dos significantes primordiais do sujeito.
Pode-se ler o que se escreveu, citando J-A. Miller quando se refere ao Grafo do desejo, da seguinte forma: “não existe prática analítica sem que o efeito de sentido esteja parasitado pelo efeito de sentido-gozado.” Esta afirmação implica uma posição ética do analista que se pode traduzir, em termos freudianos, na atenção flutuante do analista que deverá ser capaz de captar o que se apresenta como sem sentido dentro de todo o sentido que a palavra oferece à compreensão para, exatamente, evitar que o sintoma da identificação venha a se perpetuar. Assim, todas as vezes que se manipula o significante produz-se o sem sentido no sentido à compreender, ao mesmo tempo que o transforma em sentido para gozar. Este sentido para gozar é o que vai tocar o sujeito, de alguma forma, como por exemplo, no chiste, em cuja estrutura Lacan se inspirou para construir o  dispositivo do Passe. De uma maneira simples, pode-se dizer que o momento do passe se define por uma transformação de um significante que, destacando-se do conjunto pleno de sentido, vai produzir um sem sentido, nos dizendo de uma pequena ponta do Real que retorna ao sujeito, deslocando-o da posição que, até então, sustentava. Este é o momento em que se produz um significante novo capaz de transmitir o que do sem sentido, ou melhor ainda, o que deste encontro com o Real foi elaborado. Em outras palavras, é o momento em que o corpo do significante permanece como um dizer que estava esquecido por trás dos ditos.
J-A. Miller diz que “a experiência analítica se desenvolve sob a chave de uma suposição e que, desta operação, algo venha a ex-sistir, nada mais é do que uma hipótese, quer dizer, que a suposição dá lugar, produz um lugar, introduz, permite o acesso a uma ex-sistência e, para dizê-lo ainda de uma outra forma, o sujeito que é apenas suposto, possa vir a ex-sistir no mesmo lugar em que Lacan batizou com o termo objeto pequeno a” .
Uma outra elaboração se impõe na medida em que se trabalha com a perspectiva da fantasia como uma formação imaginária que se veste do gozo, este da ordem do Real:
($<>a)
Duas vertentes podem ser destacadas da fórmula da fantasia a partir da perspectiva do objeto "a": uma diz respeito ao objeto "a" na sua função de dividir, a outra, inversamente, na sua função de complementar.
Se existe uma falta no Outro, e inclusive a falta do Outro, a fantasia estaria aí para fazer-se de tampão. Deste ponto de vista, a idéia de um atravessamento da fantasia iria implicar no ultrapassamento do que tampona a falta no Outro, para, consequentemente, acomodar-se a ela.
Ora, a própria escritura da fórmula da fantasia, por Lacan, implica esta vertente do tamponamento, desta vez de um sujeito que, como falta a ser, se vê compelido a buscar uma figura imaginária, o objeto "a", para complementá-lo. Até mesmo quando Lacan trata o objeto "a" como Real, a problemática do tamponamento persiste. No entanto, passo a passo, uma outra vertente vai se impondo, inversa a precedente: o objeto a não tampa, mas divide, barra. Esta divisão é que vai servir de ponto de partida ao discurso do analista, onde o objeto "a" vai aparecer como divisor e não como tampão:
a ----> $
S2 // S1
Esta nova perspectiva abre caminho para esclarecer que: “quando se trata do objeto "a" como divisor, quando o que está em jogo não é a encenação da fantasia, mas o gozo que a habita, não se pode afirmar que "a" é sentido-gozado, efeito de sentido, porque o escrevemos como causa. É quando assinala-se ao objeto a função de causa da divisão do sujeito que, a partir daí resultará sensível aos efeitos de sentido. Deste modo não o convertemos em efeito de sentido, mas sim na referência dos efeitos de sentido e, mais ainda, na referência dos efeitos de sentido-gozado”.
O que se transmite do momento do passe, portanto, e que indica que um analista pôde advir no final de uma análise, é o corpo da letra enquanto Real. Assim, partindo do sintoma da identificação o sujeito vai desconstruindo a palavra até que ela possa assumir o valor de letra, o valor de significante enquanto escrito: S(A/) “O S, o verdadeiro significante de A - o que do significante permanece, uma vez que se eliminou a palavra”. Esta é a escritura que permite ao falasser subtrair-se aos artifícios do inconsciente, ao mesmo tempo que deixa claro o que do inconsciente pode se traduzir por uma letra: “que o decifrar se resuma ao que constitui a cifra, ao que faz com que o sintoma seja, antes de mais nada, algo que não cessa de escrever-se do Real...” Assim posto, uma nova identificação pode acontecer, uma identificação que não é ao inconsciente. Identificar-se ao inconsciente está fora de cogitação pois, como diz Lacan, “o inconsciente permanece, o inconsciente permanece Outro”. A identificação da qual se trata, quando se fala em final de análise, é à letra do sintoma, àquela que, uma vez rompido o circuito preestabelecido pelo sentido congelado da fantasia fundamental, poderá tornar-se um traço que desvela alíngua como corpo do Simbólico e enlaça o corpo do Imaginário ao corpo do Real fazendo consistir os três termos Real, Simbólico e Imaginário. Esse é o caminho que culmina na transformação da experiência da fantasia fundamental, em pulsão, ao restabelecer o vazio do lugar do objeto pulsional.
Em outras palavras, o ser que se fazia supor, vai eclipsar-se diante do real.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Do enigma ao cômico

O eixo deste texto pode ser dado a partir da afirmação de J-A. Miller em SILET: “a toda falha simbólica responde uma inserção imaginária”. Ao dizer isto, Miller se referia ao caso, descrito por Lacan no seu Seminário IV, de um “exibicionismo reacional, induzido por um momento da elaboração simbólica tal que ela se repercute na análise e testemunha uma falha. A esta falha, a esse déficit simbólico responde esse comportamento que consiste a apresentar ao Outro anônimo uma imagem fálica...”
Talvez se possa começar a desenvolver esta proposta a partir do que nos diz Eric Laurent: “segundo Littré, o enigma é a definição de coisas em termos obscuros, mas que reunidos, designam exclusivamente seu objeto e são dados à adivinhar”.
Dentro da perspectiva do enigma, o ensinamento de Lacan pode ser dividido em três momentos:  
1 - De início o enigma é abordado a partir do sentido e de sua fuga. Lembro-lhes que, nesta fase, Lacan desenvolvia sua teorização a partir da barra que mantinha separados significante e significado. Sua proposta girava em torno da possibilidade do Simbólico recobrir todo o campo do Imaginário, ficando o desejo como um X, um enigma que desliza metonimicamente a partir da significação produzida pela ação da metáfora paterna.
2 - Num segundo momento vê-se Lacan deslocar o enigma do sentido para uma “significação segunda, significação de significação”, como diz Laurent. Desta forma o enigma passa a ser a significação produzida pela ação do significante, “que é o objeto mesmo da comunicação”.
3 - Finalmente, a partir da revisão que Lacan faz de sua teorização do falo e do objeto quando retoma os conceitos fundamentais freudianos, é que se pode vê-lo “referir diretamente à experiência de gozo como sendo o verdadeiro enigma. No momento em que o sentido se ausenta do mundo, o sujeito é deixado vazio de significação, invadido por esta presença que é a experiência de gozo. Enigma fundamental para o ser falante, ele nada tem a ver com a liberação das alegrias do sexo”.
Este deslocamento, do sentido e sua fuga para a experiência do gozo, só foi possível à medida que Lacan foi, passo a passo, deixando de lado a formalização onde o Simbólico se apresenta recobrindo todo o Imaginário, a partir mesmo da barra do algoritmo S/s, para estabelecer que na relação do Simbólico com o Real o que está em jogo é um corte que deixa um resto.
Ora, esta solução encontrada por Lacan e que vai estruturar, basicamente, a relação do sujeito e do objeto vai dizer que o que existe fundamentalmente é uma falta, “que é efeito do significante e que, à falta devido ao efeito mortificante do significante, responde este elemento de vida, este elemento de gozo vivo que é o objeto pequeno ‘a’(...) que tem a necessidade, em Freud, do conceito de pulsão”.
Esta articulação do objeto ‘a’ e pulsão é fundamental para se dar mais um passo que vai desembocar no conceito de falo, uma vez que é exatamente do lado deste conceito que está o complemento de vida a que faz alusão J-A. Miller na citação acima. Conceito que, desde a antiguidade, até nossos dias, se apresenta como a grande imagem do fluxo vital. “Por isso Lacan pode dizer aqui, nos lembra J-A. Miller, que o vivo do ser do sujeito encontra seu significante no falo.” O paradoxo do falo se constitui exatamente no fato de ele ser, por um lado o que está pressuposto significar a vida, mas, sendo um significante, há nele algo da morte.
É, pois, o fato de ser o falo o significante da marca da conjunção do logos e do desejo, da morte e da vida,  a marca da refenda do sujeito a partir da diferença que resulta da subtração do “incondicionado da demanda” à “condição absoluta do desejo”, o que vai estabelecer um “campo feito para que aí se produza o enigma que a relação (sexual - pois ela é que vai ocupar esse campo fechado do desejo, é aí que ele vai jogar sua sorte) provoca no sujeito ao lhe “significar” de maneira dupla: retorno da demanda que ele suscita, em demanda sobre o sujeito do desejo....”.
No Seminário V: “As formações do inconsciente”, na lição do dia 05/03/58, Lacan vai trabalhar o que se pode chamar de vestimentas fálicas, roupagens com que se apresentam os sujeitos diante do Real do sexo. Sabemos que o que vai caracterizar a posição perversa como recusa da mediação simbólica, ou até mesmo diante da falha no Simbólico [S(A/)], é uma extrema valorização da imagem: “se trata de uma projeção disso que não se cumpriu na ordem Simbólica, sobre o eixo Imaginário”.
Para substancializar sua elaboração, Lacan busca na peça “O Balcão” de Jean Gênet subsídios para nos dizer da função da comédia através desta realização cênica onde o sujeito toma sua relação à fala não como sendo seu ‘affaire’, mas como algo que, ao se articular ele mesmo como aquele que aí goza, ... está destinado a absorver a substância, a matéria. A conseqüência disto é que o seu próprio significado, ou seja, “ fruto da relação significante, vai surgir efetivamente sobre a cena da comédia plenamente desenvolvida (...) numa certa relação com a ordem significante (ou seja): a aparição desse significado que se chama falo.”
Neste momento de sua elaboração teórica, Lacan atribuía a função de enigma, como se disse no início, “ao desejo como um x que desliza metonimicamente”. Vale lembrar-lhes que o falo, sendo o significante do desejo, é o que não pode ser atingido, porque “o falo ... é uma sombra (...) escorregando sempre entre os dedos”.
Em seu Seminário RSI, Lacan retoma esta temática do falo para nos dizer, mais uma vez, do seu caráter essencialmente cômico. Após dizer que no horizonte de um menos e de um mais onde se insere o gozo, ele assinala este ponto ideal que é o falo, a essência do cômico no ser falante: “desde que se fale algo que tem uma relação ao falo, é o cômico - que nada tem a ver com o chiste. O falo é cômico como todos os cômicos - triste”. Esta citação de Lacan se articula, pode-se afirmar, com o que ele mesmo dizia 20 anos antes: “A comédia, pode-se dizê-la como sendo a representação do fim da refeição comunitária a partir da qual a tragédia mesma foi evocada”.
Este esforço para separar o cômico do chiste, já se sabe desde Freud que, no seu texto “O chiste e sua relação com o inconsciente” apontava que enquanto no cômico são os muitos elementos imaginários que provocam risos, exatamente por sua relação ao ridículo com que se apresentam nas mais variadas formas de comportamento, o chiste vai se distinguir por seu elemento linguístico. Pode-se dizer que “a intenção do chiste é, antes de tudo, produzir prazer” a partir de uma certa articulação significante que não deixa de inserir algo do enigma e sua resposta.
Esta diferenciação entre o chiste e o cômico vai, também, nos auxiliar no acompanhamento do desenvolvimento da peça até o ponto em que ela culmina no desvelamento da inutilidade do uniforme fálico (O Bispo, O General e O Juiz) que os personagens utilizam. O próprio ato de castrar-se do indivíduo fantasiado de “chefe de polícia” (cuja roupa era uma pantomina do falo), deixa “claro que aquele que representa o desejo simples, o desejo puro e simples,(...) encontra seu assento, sua norma e sua redução a qualquer coisa que possa ser aceita como plenamente humana, e que só se reintegra à condição, precisamente, de se castrar, quer dizer, de fazer com que o falo seja qualquer coisa que seja, de novo, reduzida ao estado de significante ...”
Os enigmas, pode-se arriscar dizer, não fazem referência à condição do falo ser um significante puro e simples, mas sim à letra, suporte material do significante, suporte, portanto, da interpretação e do que mantém a borda do buraco do Simbólico. É este buraco que vai produzir a fuga do sentido ao furar o texto. Este furo, este buraco do Simbólico que Lacan adjetiva de inviolável tem, entre suas várias virtudes a de fazer enigmas mantendo o interesse pela escritura e conferindo um poder a quem sabe decifrá-lo.
O falo, no entanto,  enquanto tentativa de se pluralizar em imagens, nada mais é do que o cômico, como demonstra o estudo que faz Lacan da peça de Jean Gênet e como, de alguma forma, nos diz o perverso quando expõe seu pênis ao tentar fazer frente à falta no Outro.
Assim, do enigma ao cômico, vemos oscilar o paradoxo do falo que vai se traduzir nas mais diversas formas do que é “o coração da relação do sujeito ao significante (...) a identificação”.
 

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

TERAPÊUTICA MAIS ALÉM DO PSICOFÁRMACO - A IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO. (3ª Parte)

Um pequeno percurso pelas letrinhas de Lacan, pode, de alguma maneira, simplificar o que vem sendo trabalhado até agora.
Trata-se de um esquema desenhado por Lacan no início de seu ensino: o esquema L
S                  a
a’                  A
Uma das leituras possíveis deste esquema encontra-se no texto “De uma questão preliminar...”: o sujeito se apresenta no mundo no seu status de total e absoluta ignorância. No encontro com o outro, aqui representado pela letra “a”  ele vai conseguir produzir, uma imagem a partir do reflexo que ele tem no espelho. Esta imagem, de alguma maneira, está referenciada ao grande Outro – A. O que é o Outro? É um lugar, o lugar do significante, do código. Portanto, se essa imagem está referenciada a um Outro, a historia que o Sujeito construir desta relação com a sua própria imagem vai ser sancionada e incluirá este sujeito no pouco de realidade dos laços sociais, mas às custas de se perder a liberdade.
Quando se recebe um sujeito neurótico em análise, deve-se saber que ele para entrar na linguagem, para fazer laço social, pagou com a própria liberdade. Ele não é e nunca será, um homem livre, pois a história é uma interpretação que o aprisiona ao desejo do Outro. “O desejo do homem é o desejo do Outro”. O final de análise pode abrir novas possibilidades de se haver com o desejo do Outro. Se um sujeito consentir com o inconsciente, ele poderá restabelecer sua responsabilidade ali, onde sempre se alienou nos significantes do Outro.
Quando a estrutura que sustenta essa a fantasia fundamental não se constitui, o sujeito não consegue manter uma separação mínima em relação ao Outro. Isso porque a mãe continua presa no enigma do objeto que dela se separou pelo parto, mantendo-se em estado de perplexidade ou indiferença em relação a este acontecimento. Como não teve como elaborar uma teoria, a partir mesmo da intervenção de um terceiro, ela ainda continua acreditando que o objeto, a criança é parte dela. Por isso, quando a criança olha para mãe ela não encontra o vazio a presença do desejo, que se expressa pelo olhar da mãe dirigido a outro ponto. Ao contrário, ela encontra um olhar presente e, muitas vezes, ameaçador. Esta situação não permite, portanto, que a criança constitua uma imagem que seja diferente do simplesmente ser na sua “estúpida e inefável existência”, como se expressa Lacan em “Uma questão preliminar...”.
O esquema L demonstra um Sujeito estirado nos quatro cantos, com os quatro elementos bem constituídos, o que permite o bom funcionamento da pulsão, ou seja, tem-se a zona erótica, uma libido que pode circunscrever um objeto que é seu alvo e, assim, alcançar um objetivo. Na psicose, exatamente porque o Outro não se constituiu, estabelecendo o lugar do desejo, a criança tenta sobreviver construindo uma história que não é do mesmo estofo daquela que o neurótico constrói, pois não pode lhe proporcionar a mesma estabilidade. O que esta criança vai construir é uma história frágil que a Psiquiatria e a Psicanálise resolveram chamar de delírio. Frágil porque, a duras penas, ele consegue criar e sustentar um pequeno intervalo entre ela e o Outro, estabelecendo um intervalo que não chega a ser glorioso, pois suporta mal as contingências dos encontros com o Real.
Denomino glorioso intervalo a este espaço que permite existirem um eu e um tu, fazendo referência a Fraya Ostrawer quando comenta a pintura de Michelangelo: “A criação de Adão”. Ela diz que este trabalho tem o seu ponto de tensão, exatamente, no “glorioso intervalo” que permanece entre o dedo de Deus e o dedo de Adão, por onde todas as linhas de força da pintura passam. Daí se depreende que, caso Michelangelo não o tivesse construído, a obra teria perdido a sua força. Em outras palavras, é esse o glorioso intervalo que acontece como conseqüência da “nova ação psíquica”, à qual se fez referência no princípio deste texto. É este glorioso intervalo que está presente pela presença de um Outro que permite ao sujeito colocar questões sobre sua existência.
Aquele que não consentiu com um Outro lugar a partir do qual colocar as questões de sua existência terá que estabelecer uma nova questão a cada vez que acontecer algo fora da programação, e esta nova questão vai sempre atribuir ao lugar do Outro uma presença que toma o caráter, ora de perseguição, ora carregada por um erotismo que ultrapassa os limites. Quando estas questões delirantes não dão conta do encontro podem acontecer passagens ao ato.
Pode-se concluir este texto circunscrevendo a importância do diagnóstico nas diferentes indicações terapêuticas que propõem a Psiquiatria e a Psicanálise quando o que está em pauta é o delírio. A psiquiatria dita biológica vai utilizar a vertente das medicações na tentativa de um controle e até mesmo um apagamento da atividade delirante. A psicanálise, desde os seus primórdios com Freud, já percebia que o delírio, antes de ser uma doença, é uma tentativa de cura. É uma tentativa de estabelecer entre o Sujeito e o Outro um mínimo intervalo, pois como já foi explicitado aqui, quando esse intervalo não se constitui, as passagens ao ato acontecem como única saída para o sujeito evitar uma excessiva aproximação do Outro que traz em seu bojo o Real sem a marca significante. Sabe-se que o Real não pode ser delimitado; sabe-se que no máximo pode-se circunscreve-lo na forma de um objeto que passa a fazer parte de nossa história ajudando a cada sujeito sustentar a sua mentira em relação ao encontro com o Outro sexo. Esta mentira é acreditar que, um dia, a relação sexual poderia acontecer, na medida em que o objeto permanece no horizonte como causa de um desejo que permanece, por estrutura, sempre insatisfeito.
 Mas, existe ai um paradoxo: se se está em busca da verdade, por que o sujeito sempre consente com uma mentira? Miller vai apontar uma saída ao dizer que a mentira é um ponto simbólico no círculo do Real. É preciso lembrar que no início havia dito que a angústia é um ponto de Real no círculo do Simbólico, sendo simbolicamente real. Pois a mentira é algo realmente-simbólico. A mentira é, portanto, o que se constrói em torno da marca, do traço que o simbólico insere no Real levando Lacan a afirmar, no Seminário sobre “Os quatro conceitos...” que o sujeito mente sempre. Quando sua mentira não funciona mais ele inventa outra ou procura um analista.
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
FOUCAULT, Michel. A História da Loucura. 3ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.
 
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides). Rio de Janeiro: IMAGO EDITORA, 1990. 3ª Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XII
 
FREUD, S. Projeto para uma Psicologia Científica. Rio de Janeiro: IMAGO Editora, 1990. 3ª Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Vol. I.  
 
FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma introdução. Rio de Janeiro: IMAGO Editora, 1990. 3ª Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.  Vol. Psicológicas XIV
 
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 3: as psicoses (1955) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad de MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2a. Ed.  1988.
 
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad de MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2a. Ed.  1988.
 
MILLER, J. A. Clínica irônica in Curinga. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano – Seção Minas Gerais. No. 4, nov. 1994.
OSTROWER, F. - Universo da Arte, Ed Campus. Rio de Janeiro, 1983