O eixo deste texto pode ser dado a partir da afirmação de J-A. Miller em SILET: “a toda falha simbólica responde uma inserção imaginária”. Ao dizer isto, Miller se referia ao caso, descrito por Lacan no seu Seminário IV, de um “exibicionismo reacional, induzido por um momento da elaboração simbólica tal que ela se repercute na análise e testemunha uma falha. A esta falha, a esse déficit simbólico responde esse comportamento que consiste a apresentar ao Outro anônimo uma imagem fálica...”
Talvez se possa começar a desenvolver esta proposta a partir do que nos diz Eric Laurent: “segundo Littré, o enigma é a definição de coisas em termos obscuros, mas que reunidos, designam exclusivamente seu objeto e são dados à adivinhar”.
Dentro da perspectiva do enigma, o ensinamento de Lacan pode ser dividido em três momentos:
1 - De início o enigma é abordado a partir do sentido e de sua fuga. Lembro-lhes que, nesta fase, Lacan desenvolvia sua teorização a partir da barra que mantinha separados significante e significado. Sua proposta girava em torno da possibilidade do Simbólico recobrir todo o campo do Imaginário, ficando o desejo como um X, um enigma que desliza metonimicamente a partir da significação produzida pela ação da metáfora paterna.
2 - Num segundo momento vê-se Lacan deslocar o enigma do sentido para uma “significação segunda, significação de significação”, como diz Laurent. Desta forma o enigma passa a ser a significação produzida pela ação do significante, “que é o objeto mesmo da comunicação”.
3 - Finalmente, a partir da revisão que Lacan faz de sua teorização do falo e do objeto quando retoma os conceitos fundamentais freudianos, é que se pode vê-lo “referir diretamente à experiência de gozo como sendo o verdadeiro enigma. No momento em que o sentido se ausenta do mundo, o sujeito é deixado vazio de significação, invadido por esta presença que é a experiência de gozo. Enigma fundamental para o ser falante, ele nada tem a ver com a liberação das alegrias do sexo”.
Este deslocamento, do sentido e sua fuga para a experiência do gozo, só foi possível à medida que Lacan foi, passo a passo, deixando de lado a formalização onde o Simbólico se apresenta recobrindo todo o Imaginário, a partir mesmo da barra do algoritmo S/s, para estabelecer que na relação do Simbólico com o Real o que está em jogo é um corte que deixa um resto.
Ora, esta solução encontrada por Lacan e que vai estruturar, basicamente, a relação do sujeito e do objeto vai dizer que o que existe fundamentalmente é uma falta, “que é efeito do significante e que, à falta devido ao efeito mortificante do significante, responde este elemento de vida, este elemento de gozo vivo que é o objeto pequeno ‘a’(...) que tem a necessidade, em Freud, do conceito de pulsão”.
Esta articulação do objeto ‘a’ e pulsão é fundamental para se dar mais um passo que vai desembocar no conceito de falo, uma vez que é exatamente do lado deste conceito que está o complemento de vida a que faz alusão J-A. Miller na citação acima. Conceito que, desde a antiguidade, até nossos dias, se apresenta como a grande imagem do fluxo vital. “Por isso Lacan pode dizer aqui, nos lembra J-A. Miller, que o vivo do ser do sujeito encontra seu significante no falo.” O paradoxo do falo se constitui exatamente no fato de ele ser, por um lado o que está pressuposto significar a vida, mas, sendo um significante, há nele algo da morte.
É, pois, o fato de ser o falo o significante da marca da conjunção do logos e do desejo, da morte e da vida, a marca da refenda do sujeito a partir da diferença que resulta da subtração do “incondicionado da demanda” à “condição absoluta do desejo”, o que vai estabelecer um “campo feito para que aí se produza o enigma que a relação (sexual - pois ela é que vai ocupar esse campo fechado do desejo, é aí que ele vai jogar sua sorte) provoca no sujeito ao lhe “significar” de maneira dupla: retorno da demanda que ele suscita, em demanda sobre o sujeito do desejo....”.
No Seminário V: “As formações do inconsciente”, na lição do dia 05/03/58, Lacan vai trabalhar o que se pode chamar de vestimentas fálicas, roupagens com que se apresentam os sujeitos diante do Real do sexo. Sabemos que o que vai caracterizar a posição perversa como recusa da mediação simbólica, ou até mesmo diante da falha no Simbólico [S(A/)], é uma extrema valorização da imagem: “se trata de uma projeção disso que não se cumpriu na ordem Simbólica, sobre o eixo Imaginário”.
Para substancializar sua elaboração, Lacan busca na peça “O Balcão” de Jean Gênet subsídios para nos dizer da função da comédia através desta realização cênica onde o sujeito toma sua relação à fala não como sendo seu ‘affaire’, mas como algo que, ao se articular ele mesmo como aquele que aí goza, ... está destinado a absorver a substância, a matéria. A conseqüência disto é que o seu próprio significado, ou seja, “ fruto da relação significante, vai surgir efetivamente sobre a cena da comédia plenamente desenvolvida (...) numa certa relação com a ordem significante (ou seja): a aparição desse significado que se chama falo.”
Neste momento de sua elaboração teórica, Lacan atribuía a função de enigma, como se disse no início, “ao desejo como um x que desliza metonimicamente”. Vale lembrar-lhes que o falo, sendo o significante do desejo, é o que não pode ser atingido, porque “o falo ... é uma sombra (...) escorregando sempre entre os dedos”.
Em seu Seminário RSI, Lacan retoma esta temática do falo para nos dizer, mais uma vez, do seu caráter essencialmente cômico. Após dizer que no horizonte de um menos e de um mais onde se insere o gozo, ele assinala este ponto ideal que é o falo, a essência do cômico no ser falante: “desde que se fale algo que tem uma relação ao falo, é o cômico - que nada tem a ver com o chiste. O falo é cômico como todos os cômicos - triste”. Esta citação de Lacan se articula, pode-se afirmar, com o que ele mesmo dizia 20 anos antes: “A comédia, pode-se dizê-la como sendo a representação do fim da refeição comunitária a partir da qual a tragédia mesma foi evocada”.
Este esforço para separar o cômico do chiste, já se sabe desde Freud que, no seu texto “O chiste e sua relação com o inconsciente” apontava que enquanto no cômico são os muitos elementos imaginários que provocam risos, exatamente por sua relação ao ridículo com que se apresentam nas mais variadas formas de comportamento, o chiste vai se distinguir por seu elemento linguístico. Pode-se dizer que “a intenção do chiste é, antes de tudo, produzir prazer” a partir de uma certa articulação significante que não deixa de inserir algo do enigma e sua resposta.
Esta diferenciação entre o chiste e o cômico vai, também, nos auxiliar no acompanhamento do desenvolvimento da peça até o ponto em que ela culmina no desvelamento da inutilidade do uniforme fálico (O Bispo, O General e O Juiz) que os personagens utilizam. O próprio ato de castrar-se do indivíduo fantasiado de “chefe de polícia” (cuja roupa era uma pantomina do falo), deixa “claro que aquele que representa o desejo simples, o desejo puro e simples,(...) encontra seu assento, sua norma e sua redução a qualquer coisa que possa ser aceita como plenamente humana, e que só se reintegra à condição, precisamente, de se castrar, quer dizer, de fazer com que o falo seja qualquer coisa que seja, de novo, reduzida ao estado de significante ...”
Os enigmas, pode-se arriscar dizer, não fazem referência à condição do falo ser um significante puro e simples, mas sim à letra, suporte material do significante, suporte, portanto, da interpretação e do que mantém a borda do buraco do Simbólico. É este buraco que vai produzir a fuga do sentido ao furar o texto. Este furo, este buraco do Simbólico que Lacan adjetiva de inviolável tem, entre suas várias virtudes a de fazer enigmas mantendo o interesse pela escritura e conferindo um poder a quem sabe decifrá-lo.
O falo, no entanto, enquanto tentativa de se pluralizar em imagens, nada mais é do que o cômico, como demonstra o estudo que faz Lacan da peça de Jean Gênet e como, de alguma forma, nos diz o perverso quando expõe seu pênis ao tentar fazer frente à falta no Outro.
Assim, do enigma ao cômico, vemos oscilar o paradoxo do falo que vai se traduzir nas mais diversas formas do que é “o coração da relação do sujeito ao significante (...) a identificação”.
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