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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

TERAPÊUTICA MAIS ALÉM DO PSICOFÁRMACO - A IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO. (3ª Parte)

Um pequeno percurso pelas letrinhas de Lacan, pode, de alguma maneira, simplificar o que vem sendo trabalhado até agora.
Trata-se de um esquema desenhado por Lacan no início de seu ensino: o esquema L
S                  a
a’                  A
Uma das leituras possíveis deste esquema encontra-se no texto “De uma questão preliminar...”: o sujeito se apresenta no mundo no seu status de total e absoluta ignorância. No encontro com o outro, aqui representado pela letra “a”  ele vai conseguir produzir, uma imagem a partir do reflexo que ele tem no espelho. Esta imagem, de alguma maneira, está referenciada ao grande Outro – A. O que é o Outro? É um lugar, o lugar do significante, do código. Portanto, se essa imagem está referenciada a um Outro, a historia que o Sujeito construir desta relação com a sua própria imagem vai ser sancionada e incluirá este sujeito no pouco de realidade dos laços sociais, mas às custas de se perder a liberdade.
Quando se recebe um sujeito neurótico em análise, deve-se saber que ele para entrar na linguagem, para fazer laço social, pagou com a própria liberdade. Ele não é e nunca será, um homem livre, pois a história é uma interpretação que o aprisiona ao desejo do Outro. “O desejo do homem é o desejo do Outro”. O final de análise pode abrir novas possibilidades de se haver com o desejo do Outro. Se um sujeito consentir com o inconsciente, ele poderá restabelecer sua responsabilidade ali, onde sempre se alienou nos significantes do Outro.
Quando a estrutura que sustenta essa a fantasia fundamental não se constitui, o sujeito não consegue manter uma separação mínima em relação ao Outro. Isso porque a mãe continua presa no enigma do objeto que dela se separou pelo parto, mantendo-se em estado de perplexidade ou indiferença em relação a este acontecimento. Como não teve como elaborar uma teoria, a partir mesmo da intervenção de um terceiro, ela ainda continua acreditando que o objeto, a criança é parte dela. Por isso, quando a criança olha para mãe ela não encontra o vazio a presença do desejo, que se expressa pelo olhar da mãe dirigido a outro ponto. Ao contrário, ela encontra um olhar presente e, muitas vezes, ameaçador. Esta situação não permite, portanto, que a criança constitua uma imagem que seja diferente do simplesmente ser na sua “estúpida e inefável existência”, como se expressa Lacan em “Uma questão preliminar...”.
O esquema L demonstra um Sujeito estirado nos quatro cantos, com os quatro elementos bem constituídos, o que permite o bom funcionamento da pulsão, ou seja, tem-se a zona erótica, uma libido que pode circunscrever um objeto que é seu alvo e, assim, alcançar um objetivo. Na psicose, exatamente porque o Outro não se constituiu, estabelecendo o lugar do desejo, a criança tenta sobreviver construindo uma história que não é do mesmo estofo daquela que o neurótico constrói, pois não pode lhe proporcionar a mesma estabilidade. O que esta criança vai construir é uma história frágil que a Psiquiatria e a Psicanálise resolveram chamar de delírio. Frágil porque, a duras penas, ele consegue criar e sustentar um pequeno intervalo entre ela e o Outro, estabelecendo um intervalo que não chega a ser glorioso, pois suporta mal as contingências dos encontros com o Real.
Denomino glorioso intervalo a este espaço que permite existirem um eu e um tu, fazendo referência a Fraya Ostrawer quando comenta a pintura de Michelangelo: “A criação de Adão”. Ela diz que este trabalho tem o seu ponto de tensão, exatamente, no “glorioso intervalo” que permanece entre o dedo de Deus e o dedo de Adão, por onde todas as linhas de força da pintura passam. Daí se depreende que, caso Michelangelo não o tivesse construído, a obra teria perdido a sua força. Em outras palavras, é esse o glorioso intervalo que acontece como conseqüência da “nova ação psíquica”, à qual se fez referência no princípio deste texto. É este glorioso intervalo que está presente pela presença de um Outro que permite ao sujeito colocar questões sobre sua existência.
Aquele que não consentiu com um Outro lugar a partir do qual colocar as questões de sua existência terá que estabelecer uma nova questão a cada vez que acontecer algo fora da programação, e esta nova questão vai sempre atribuir ao lugar do Outro uma presença que toma o caráter, ora de perseguição, ora carregada por um erotismo que ultrapassa os limites. Quando estas questões delirantes não dão conta do encontro podem acontecer passagens ao ato.
Pode-se concluir este texto circunscrevendo a importância do diagnóstico nas diferentes indicações terapêuticas que propõem a Psiquiatria e a Psicanálise quando o que está em pauta é o delírio. A psiquiatria dita biológica vai utilizar a vertente das medicações na tentativa de um controle e até mesmo um apagamento da atividade delirante. A psicanálise, desde os seus primórdios com Freud, já percebia que o delírio, antes de ser uma doença, é uma tentativa de cura. É uma tentativa de estabelecer entre o Sujeito e o Outro um mínimo intervalo, pois como já foi explicitado aqui, quando esse intervalo não se constitui, as passagens ao ato acontecem como única saída para o sujeito evitar uma excessiva aproximação do Outro que traz em seu bojo o Real sem a marca significante. Sabe-se que o Real não pode ser delimitado; sabe-se que no máximo pode-se circunscreve-lo na forma de um objeto que passa a fazer parte de nossa história ajudando a cada sujeito sustentar a sua mentira em relação ao encontro com o Outro sexo. Esta mentira é acreditar que, um dia, a relação sexual poderia acontecer, na medida em que o objeto permanece no horizonte como causa de um desejo que permanece, por estrutura, sempre insatisfeito.
 Mas, existe ai um paradoxo: se se está em busca da verdade, por que o sujeito sempre consente com uma mentira? Miller vai apontar uma saída ao dizer que a mentira é um ponto simbólico no círculo do Real. É preciso lembrar que no início havia dito que a angústia é um ponto de Real no círculo do Simbólico, sendo simbolicamente real. Pois a mentira é algo realmente-simbólico. A mentira é, portanto, o que se constrói em torno da marca, do traço que o simbólico insere no Real levando Lacan a afirmar, no Seminário sobre “Os quatro conceitos...” que o sujeito mente sempre. Quando sua mentira não funciona mais ele inventa outra ou procura um analista.
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
FOUCAULT, Michel. A História da Loucura. 3ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.
 
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides). Rio de Janeiro: IMAGO EDITORA, 1990. 3ª Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XII
 
FREUD, S. Projeto para uma Psicologia Científica. Rio de Janeiro: IMAGO Editora, 1990. 3ª Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.  Vol. I.  
 
FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma introdução. Rio de Janeiro: IMAGO Editora, 1990. 3ª Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.  Vol. Psicológicas XIV
 
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 3: as psicoses (1955) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad de MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2a. Ed.  1988.
 
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad de MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2a. Ed.  1988.
 
MILLER, J. A. Clínica irônica in Curinga. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano – Seção Minas Gerais. No. 4, nov. 1994.
OSTROWER, F. - Universo da Arte, Ed Campus. Rio de Janeiro, 1983

Um comentário:

  1. excelente explicação sobre o Outro,
    ótima transmissão dos conceitos psicanaliticos

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