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sábado, 18 de abril de 2015

Psicanálise Aplicada, Psicanálise Pura e o Passe (III)

Um pouco de topologia pode nos auxiliar a definir como esse caminho se desenha e ajudar a diferenciar uma psicoterapia de uma psicanálise.
Não fazendo silêncio, o analista impede que o objeto "a" possa reinar como semblante. O que vai acontecer, como consequência, é o favorecimento a uma identificação a partir mesmo da ação da sugestão através do convencimento, como vimos nos textos anteriores. Este movimento dirige o vetor para o andar inferior do Grafo estabelecendo duas posições distintas para os dois sujeitos em questão: o terapeuta e o paciente. Eles permanecerão, indefinidamente, cada qual do seu lado sem que as intervenções possam produzir efeito. Teremos então uma topologia da banda circular, com suas duas bordas e suas duas faces, para mostrar que estão presentes dois sujeitos e, portanto dois sentidos sem que nenhum, nunca, possa intervir sobre o outro. 
Quando, no entanto, o desejo do analista opera fazendo reinar o objeto "a" ali onde uma resposta é esperada, o vetor é lançado na direção do andar superior do Grafo e, em função mesmo da não resposta, sofre uma meia volta e retorna, ao sujeito, como sua própria mensagem invertida. A topologia que se desenha não é mais a da banda circular, mas sim a da Banda de Moebius, dizendo que em uma análise temos apenas um sujeito em questão, pois a estrutura desta superfície demonstra a existência de um só lado e de um só corte.
Esta articulação coloca uma questão e abre a possibilidade de discutir um outro aspecto desta diferenciação entre psicanálise e psicoterapia: trata-se do que encontramos no momento em que Lacan trabalha, especificamente no Seminário XI, o conceito de liquidação da transferência. Ali ele estabelece um dialogo com os conceitos estabelecidos pela IPA, no que diz respeito ao final de análise. O corpo teórico que sustenta o trabalho na IPA vai na direção de acreditar que no final da análise a transferência poderia ser liquidada. Para tanto, seria fundamental que o analista levasse o sujeito a não deixar resto algum, já que a identificação, como é de nosso conhecimento, se estrutura em torno do eixo imaginário e a partir da idealização. Desta forma, um "Eu" (moi) surgiria ali onde um sujeito, enquanto resposta do real, deveria surgir. Teríamos, então, um reforço da alienação e não a separação buscada.
Retomando o Grafo, lembro-lhes que Lacan, ao construí-lo, descreve este pequeno (d), como índice do estado de desamparo (detresse - hilflosigkeit) no qual se encontra a criança em seu primeiro encontro com o Outro (descrito por Freud como Nebemmensch). O passo seguinte é a passagem pelas demandas do Outro ($ <> D) onde vão se estruturar as pulsões em seu movimento de ir e vir  em torno do vazio da falta no Outro S(A/). Uma relação muito especial vai se estabelecer a partir da interpretação que se faz desta falta, construindo-se uma cena ($<>a) que precisa ser retificada para que um saber aí fazer com seu sintoma possa advir em s(A). Isso só é possível porque uma nova referência ao desejo (d) pode ser mantida. É por isso que afirmamos que só há um sujeito em questão na análise, o analisante, e que é somente a partir de um ponto fora da linha - que correlaciono, nesta situação, à função do desejo do analista - será possível sustentar o corte de uma linha sem pontos.  
Retomo o que acabo de dizer por um outro caminho. Partindo do conceito de Sujeito Suposto Saber, Lacan vai nos dizer que esse sujeito, que supostamente sabe sobre o analisante, na verdade nada sabe. O que se liquida na transferência, portanto, é esta suposição de saber, já que durante o processo, a cada intervenção do analista ela vai sendo desfeita. Em outras palavras, como nos diz Lacan, este sujeito suposto saber deve ser considerado liquidado exatamente no momento da análise em que se começa, a saber, alguma coisa. Por isso ele pode, neste momento, ser chamado de sujeito suposto vaporizado. Ainda uma outra forma de se dizer isto, com Lacan, é que a sustentação da transferência se dá pelo fato do analista se colocar como um "X" para o analisante. Quando o analisante vai, passo a passo, esburacando este lugar, o analista vai perdendo esta aura de suposição de saber. A conseqüência disto é que o analista não vai mais ter o poder de relançar o sujeito para mais uma volta no seu percurso. Espera-se que este momento seja aquele que venha encerrar um tempo de compreender e o sujeito em questão possa fazer uma passagem a partir mesmo do resto em que o sujeito suposto saber se transforma. 
Para além de suas vestimentas imaginárias, semblantes que o analista pode encarnar para um sujeito, ver-se-á cair do lugar do Outro do saber para o lugar do "a", objeto libidinal. 
 Esta passagem, como a conhecemos na teoria de Lacan, é a passagem de analisante a analista, quando este sujeito deseja, ele mesmo prestar-se a sustentar este lugar de causa.
Este termo "liquidação da transferência", se ele tem um sentido, é o da liquidação permanente deste engano através do qual a transferência tende a exercer o fechamento do inconsciente. Ou seja, no duplo movimento da transferência onde o sujeito se engancha supondo um saber ao Outro - estabelecendo o amor de transferência - vamos ver acontecer o engodo do tamponamento da falta do Outro. Este mecanismo é o da relação narcísica onde o sujeito tenta se colocar no lugar em que ele acredita poder ser amado pelo Outro. É na relação de miragem, proposta pelo eixo a-a’, que o sujeito irá se referenciar para convencer-se amável. 
Podemos tomar o esquema L, na tentativa de explicitar este mecanismo:
Vamos instalar o sujeito que chega no lugar de S, dizendo que ele aí está na mais pura ignorância do que lhe causa mal. O que este sujeito vem buscar no Outro a quem ele supõe um saber é um traço qualquer que possa dizer-lhe o que na verdade ele é. Este traço poderá ser tomado aqui na sua referência ao objeto 'a', na medida que é este traço que faz a borda deste objeto que, na verdade é um vazio no espelho. A partir daí, vai se estabelecer uma relação de transferência e o sujeito vai se identificar a este traço na esperança de que, assim colocado, seja amado pelo Outro que vai lhe fornecer a resposta para a questão de sua existência.
Alguns esclarecimentos são necessários: Na verdade a questão da existência do sujeito se coloca a partir de um Outro lugar, e não a partir de um outro sujeito como se tenta acreditar na relação transferencial, que se sustenta no eixo a - a', eixo narcísico, lugar do engodo amoroso.
Cada vez que o analista intervém, ele o faz como se fosse a boca do Outro (A) visando o sujeito do inconsciente ($), naquilo que ele tem de mais íntimo, kern unseres wessen, o coração do nosso ser, ou seja, o que não tem palavra S(A/), ou ainda a causa de desejo.
O que se espera liquidar, então, é esta suposição de saber que se estabelece no eixo da relação narcísica e que tende a exercer o fechamento do inconsciente.
Lacan chamou este eixo narcísico, imaginário, de muro da linguagem. Isto pode parecer estranho, colocar a linguagem no eixo imaginário, uma vez que a linguagem seria simbólica. No entanto, o que temos aqui é um muro da linguagem que se constitui pelo véu do sentido que impregna a fala do sujeito quando ele se dirige ao outro, exatamente para escamotear a sua relação ao Outro. Desta forma estará impedido o acesso do Simbólico ao Real, estabelecido, aqui, pelo eixo A - S. Ora, cada vez que o analista intervém, ele o faz do lugar do Outro, como nos diz Lacan em "A direção do tratamento...", promovendo uma brecha neste muro da linguagem, esburacando esta cortina de sentido que cega o sujeito. Este momento se traduz, na clínica, por aquela surpresa que têm, analista e analisante, quando o sujeito que está falando no divã, imerso e gozando de um sentido preestabelecido, percebe-se pego em um vazio que produz uma mudança. Este momento é fugaz, mas fundamental. É o momento quando podemos testemunhar o aparecimento do sujeito como resposta do real no estabelecimento de um novo sentido que se apresenta promovendo o fechamento do inconsciente. Podemos dizer que é isto que produz um ato: relança o sujeito em uma nova cadeia significante, uma nova série produzindo no lugar da verdade um saber que possa sustentar a causa de desejo”.

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