À pergunta que lhe fez M. Safouan sobre a diferença entre o objeto na pulsão e no desejo, Lacan responde que, na verdade trata-se apenas de uma questão de terminologia. “Os objetos que estão no campo do Lust tem uma relação tão fundamentalmente narcísica com o sujeito, que ... o mistério da pretensa regressão do amor, na identificação, tem sua razão na simetria desses dois campos: Lust e Lust-Ich. O que não se pode guardar fora, tem-se sempre a imagem, dentro: a identificação ao objeto de amor.” Assim Lacan define, em poucas palavras o “objeto de amor”.
No entanto, há uma diferença fundamental entre você dizer “eu amo um guisado de carneiro” e “eu amo fulana de tal”. Esta diferença não está, nem na forma, nem no fato de você dizer, mas sim no fato de você poder dizer isto à fulana de tal.
A bela açougueira ama o caviar, mas ela não o quer. É por isso que ela o deseja. “Compreender que o objeto do desejo, é a causa do desejo, e esse objeto causa do desejo, é o objeto da pulsão - quer dizer o objeto em torno do qual gira a pulsão. Não quer dizer que o desejo se enganche ao objeto da pulsão - o desejo aí faz volta, na medida em que ele está agindo na pulsão. Mas nem todos os desejos, forçosamente agem na pulsão. Há também os desejo vazios, os desejos tolos, que partem justamente disso - trata-se do desejo disso que, p. ex. você está se defendendo. ... o que não deixa você
fazer outra coisa senão aí pensar.
Lacan vai trabalhar o que ele considera o eixo, uma noção fundamental deste seminário XI: a dustuchia, o mal-encontro. E ele o faz começando por interrogar “qual é ordem de verdade que nossa práxis engendra?”
Para tentar responder esta pergunta, ele percorreu os quatro conceitos de base: o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão. Mas é a exploração do conceito de transferência, que encerra este seminário, que podemos colocar, com Lacan, a questão que vai
nortear este último capítulo: “como nos assegurar que não estamos na impostura?”
Todo o caminho feito para diferenciar o objeto de amor, do objeto na pulsão e no desejo visa exatamente fazer avançar o que há de verdade na práxis psicanalítica.
Esta colocação em questão da análise faz sentido se levarmos avante o que está em suspenso não só na opinião, mas na vida íntima de cada psicanalista, a impostura plena, contra a qual o psicanalista se arma de um certo número de cerimonias, de formas de ritos.
Este questionamento repete o que os Homens das luzes, que também foram os homens do prazer, fizeram quando questionaram a religião como uma impostura, no século XVI. Isto não impediu que a religião goze ainda de um respeito universal.
O que se coloca neste ponto é a crença, que impõe uma alienação fundamental. “É só no momento onde a significação da crença parece, mais profundamente, se esvanecer, que o ser do sujeito traz à luz o que seria, falando propriamente, a realidade desta crença”.
O final da Idade Média foi marcado por uma separação entre a ciência e a religião, tirando aquela dos grilhões da fé. Foi São Tomás de Aquino quem abriu as portas para que pudéssemos sair da Igreja, da prática de uma alienação fundamental na qual de sustenta toda crença, ao retomar Aristoteles na tentativa de cristianizá-lo,
buscando a grande síntese da fé e do conhecimento. O que propiciou esta associação foi exatamente o fato de Aristoteles acreditar na causalidade. Assim, tanto para São Tomás, quanto para Aristoteles, podemos dizer que há uma causa primordial que coloca em marcha todos os processos da natureza.
É porque a ciência se situa neste ponto preciso da separação é que ela pôde sustentar o modo de existência do sábio, do homem da ciência. Ameaçado, então, pela religião, o cientista teve que se manter ao abrigo de questões que a própria ciência lhe colocava. Isto do ponto de vista social, já que quanto ao estatuto a dar ao corpo da aquisição cientifica, era uma tarefa mais simples.
“Este corpo da ciência, só podemos conceber o alcance,
ao reconhecer que ele é, na relação subjetiva, o equivalente a isso que chamei aqui o objeto pequeno ‘a’.”
Por isso é que à questão do que é, na psicanálise, redutível ou não à ciência se explica, em efeito, num para-além da ciência - tomamos A ciência aqui no sentido moderno, a partir de Descartes.
Este para-além é o que pode levar a psicanálise a ser classificada no grau da Igreja, portanto, como uma religião.
A única maneira de abordar este problema é de partir disso que a religião, entre os modos do homem de colocar a questão de sua existência no mundo, e mais além, a religião como modo de subsistência do sujeito que se interroga, se distingue por uma dimensão que lhe é própria, e que é marcada por um esquecimento.
Aí é que entra o sacramento, como algo operatório. “Não podemos evocar esta dimensão operatória sem percebermos que no interior da religião, e por razões perfeitamente definidas - separação, impotência, de nossa razão, de nossa finitude - está isso que é marcado pelo esquecimento”.
Este esquecimento também marca a análise que encontra, na cerimônia, no ritual, o que podemos chamar de mesma face vazia.
“Mas a psicanálise não é uma religião. Ela procede do
mesmo estatuto que A ciência. Ela se engaja na falta central onde o sujeito se experimenta como desejo. Ela tem o mesmo estatuto mediador, de aventura, na brecha aberta no centro da dialética do sujeito e do Outro. Ela não tem nada a esquecer, pois ela não implica nenhum reconhecimento de alguma substância sobre a qual ela pretende operar, nem mesmo sobre a sexualidade.”
Aliás, sobre a sexualidade ela opera quase nada, ainda não se inventou nada de novo à operação sexual. “A psicanálise só toca a sexualidade na medida em que, sob a forma da pulsão, ela se manifesta nos desfiladeiros do significante, onde se constitui a dialética do sujeito no duplo tempo da alienação e da separação. ... a psicanálise não tem, sobre o campo da sexualidade ... promessas, ela não tem porque não é seu terreno.”
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