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terça-feira, 22 de setembro de 2015

Da queixa ao sintoma analítico (I)

Ao se tratar da clínica psicanalítica é fundamental que se fale da entrada em análise pois somente uma boa entrada pode promover uma boa saída e, uma má entrada, muitas vezes, provoca uma interrupção precoce do tratamento. É evidente que praticamos a Psicanálise desde o momento em que recebemos um candidato à analisando pela primeira vez em nosso consultório pois, o que se espera de um analista é que ele possa assumir esta condição desde este início.
Eu vou partir do sintoma. Posso definir o sintoma como “uma solução para evitar a castração”. Ressalto que nossa referência é o sujeito da linguagem, o sujeito do inconsciente, e não a pessoa ou indivíduo. Esse sujeito nasce como efeito de um menos (-). Lacan define esse (-) como “menos de gozo”. Para evitar qualquer mal entendido a vertente do gozo de que vamos tratar se refere àquele estado em que o sujeito está ali, sem existir como sujeito, mas sim como coisa.
Nestas circunstâncias, a percepção de um significante, de uma palavra que veio do outro cava, neste espaço vazio, uma extração. Retira-se um elemento e, desse lugar onde o elemento foi retirado, pode surgir ali um sujeito. Isso é o que Lacan define, de uma forma concisa e às vezes enigmática: o sujeito é a resposta do real. Isso porque no lugar onde deveria haver um significante que o designaria totalmente tem-se um vazio. Diante desse vazio que Lacan chama de Real tem-se uma resposta que é o sujeito.
Essa operação de extração de gozo do campo do Outro é uma operação que instala o que se pode denominar de mal-estar ou incômodo. Esse incômodo foi definido por Freud no “Projeto de uma Psicologia Científica” como encontro com o das Ding que produz, como consequência, uma busca incessante ali, onde algo se perdeu numa tentativa de reduzir a zero o que incomoda, dando início a uma repetição infinita.
Essa repetição Lacan chamou de automaton no Seminário 11: uma repetição que não é a repetição do mesmo. não é a repetição de um mesmo significante, mas sim, a repetição da impossibilidade. A cadeia significante constitui-se em automaton porque nela se repete a impossibilidade. O que não cessa de se não escrever.
Lacan denominou isto que não cessa de se escrever de objeto a”, ou seja, algo que escapa à tentativa do significante de apreender em suas malhas e que dele temos apenas as bordas.
Assim, pode-se dizer que a repetição acontece porque algo não cessa de não se escrever, e porque algo não cessa de não se escrever promove-se um movimento que não cessa de se escrever: a palavra. Ou seja, uma necessidade consequência do impossível. Essa necessidade nada mais é que o sintoma que nasce exatamente a partir do recalque originário, aquele que Freud definiu como o primeiro impossível da existência de um sujeito.
Esse movimento só sustenta o sujeito porque nesse “não cessa de não se escrever” fica uma promessa, a promessa de que um dia, quem sabe, isso que “não cessa de não se escrever” vai se escrever. É por isso que Lacan nos diz que quando se está na cadeia de significantes, sob o regime do automaton, pode-se eventualmente se deparar com uma tykhe, um encontro. É um encontro sempre faltoso que exige, como diz Freud, um dispêndio de energia adicional para lutar contra o desprazer original que a falta constitutiva do sujeito promoveu. Esse desprazer ou sofrimento é o que pode promover a criação do novo.
Portando, vamos ao que é importante: o sintoma é algo da ordem da necessidade que está regida pelo automaton e que pode, na sua repetição, promover uma tykhe, ou seja, um encontro; encontro este que pode propiciar uma retificação qualquer neste sintoma. É por isso que Lacan, num texto muito interessante que está nos Escritos – “De Nossos Antecedentes” – nos diz que o envelope formal do sintoma - que eu entendo como a cadeia de significantes - pode nos levar a um ponto de encontro onde o sintoma reverte-se em efeito de criação. Em outras palavras, uma análise acontece porque o sintoma propicia, na sua repetição, pontos onde uma intervenção pode acontecer e trazer um novo sujeito como efeito de criação.
Cabe agora uma pergunta: por que o sujeito procura um analista? A maioria das pessoas não procura a análise porque o sintoma delas funciona. Só se procura uma análise quando o sintoma deixa de funcionar. Esse é o momento em que acontece uma conjunção entre queixa e sofrimento.
Nós conhecemos um grande número de pessoas que passa a vida se queixando e não aceita nenhuma indicação de análise. Por que isso? Porque, como diz Lacan, o homem é feliz. O homem é feliz porque ele se satisfaz no sofrimento. Traduzindo, ele se satisfaz porque está sob a regência de uma pulsão e não de instintos, portanto, ele se satisfaz com qualquer coisa. Ele se satisfaz com o fato da pulsão fazer o seu trajeto. É só isso que interessa ao homem, não lhe importa um objetivo ou um sentido a alcançar.
A diferença entre a pulsão e o instinto é que o instinto não se satisfaz se não tiver o seu objeto. Quando  se está com fome não nos interessa o que comer, um pedaço de pão serve. Agora, quando se está sob a regência da pulsão, quando a fome não está se sobrepondo à pulsão oral enquanto elemento da necessidade, do instinto, pode-se, perfeitamente, ter prazer em assentar à mesa de um restaurante e escolher o cardápio. Esse é o exemplo que Lacan nos dá no Seminário 11 para dizer que à pulsão só interessa o percurso. Imaginem o cardápio como o campo do Outro. O sujeito passa por ele e escolhe seus significantes e fica satisfeito só com o fato de escolher.
A pulsão diferencia-se do instinto porque à pulsão não interessa o objeto. Freud descobriu isso a partir das pulsões sexuais e sabemos muito bem que a diferenciação da via da pulsão e do instinto é clara. Basta observarmos as escolhas sexuais. O fetichismo, por exemplo.
O sujeito busca uma análise, portanto, quando seu sintoma falha. O que esse sujeito busca é recolocar o sintoma no lugar onde estava antes, fazendo-o funcionar como antes. Assim uma demanda de análise acontece no momento em que uma queixa se associa a um sofrimento. Na verdade, o que acontece é um pedido a uma outra pessoa, a um outro sujeito que ele escolhe da seguinte forma: “estou aqui porque eu percebi que você sabe, porque eu acho que você sabe e, como eu não quero saber, eu faço uma suposição de saber a você mas, para isso você vai ter que restituir meu sintoma ao ponto em que ele me dava satisfação”. Em outras palavras, é assim que chegam os candidatos à análise: quando o seu sintoma falha e ele procura alguém, qualquer um, a quem ele empresta um saber sustentado por um traço que ele acredita vai restituir-lhe um sintoma que funciona. 
É assim que se instala o que chamamos  de transferência. Em outras palavras, a criação de um sujeito suposto saber restituir ao seu estado anterior um sintoma que deixou de funcionar.

(Continua)

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