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terça-feira, 13 de outubro de 2015

Uma passagem forçada: A Histericização do Discurso

Eu pasmei de invejar tanta pobre criatura,
Correndo ao hiante abismo, e de alma alucinada,
Que tem no próprio sangue a embriaguez que procura
E que prefere a dor à morte e o inferno ao nada.
(O Jogo, Baudelaire)




Afirmar que todos aquele que  procuram um analista chegam a fazer uma análise, não é bem a verdade pois, o percurso de um sujeito é sempre complexo, carecendo de uma série de momentos cruciais onde passagens possam acontecer.
Estes momentos cruciais sempre foram preocupação para Freud e Lacan, que a eles se dedicaram em vários pontos de suas obras, seja ao formalizar um caso clínico, seja na tentativa de teorizar e ordenar logicamente cada um desses momentos.
Em seu texto “A Direção da Tratamento...” Lacan nos diz que um tratamento “se ordena (...) segundo um processo que vai da retificação das relações do sujeito com o real, ao desenvolvimento da transferência, depois à interpretação”.1
O que lhes proponho aqui é fazer uma articulação entre estes três momentos do ordenamento proposto por Lacan e os discurso do mestre, da Histeria e do Analista, respectivamente. A ênfase ao discurso da histeria como uma passagem forçada, para que uma análise possa acontecer, será o eixo de minha proposta.
Quando Maria me procurou para “fazer uma análise”, suas razões para tal decisão eram múltiplas: “quero me conhecer melhor já que a terapia que fiz antes não adiantou, além disso tenho alguns problemas com minha mãe e com meu namorado, sem contar que estou querendo trabalhar, sair de casa e não consigo...”
Suas queixas se desdobravam por um longo fio de um rosário infinito, sem contudo, um sofrimento qualquer vir a se enlaçar em alguma de suas reclamações. Tudo se passava como se não fosse com ela que aquelas dificuldades aconteciam, apesar dela saber muito bem todas as causas destes problemas.
Foi assim que começaram as entrevistas preliminares, este tempo fundamental no desenvolvimento da direção do tratamento.
Estas entrevistas foram logo marcadas por comentários que expressavam a diferença entre esta e a outra “terapia”: o tempo das sessões era mais curto e, principalmente, o analista quase não falava e nem fornecia orientações ou interpretações esclarecedoras.
Ao mesmo tempo em que Maria parecia pedir orientações ou interpretações esclarecedoras, a tônica da posição que ela sustentava era de quem sabia sobre seu sintoma. Ao endereçar seu pedido ao Outro ela o fazia apenas com a solicitação de que lhe fosse confirmado o que sabia.
Dito de outra forma e, desta vez utilizando a topologia dos discursos.
Posso dizer-lhes que até este ponto Maria trazia suas queixas (S1) como agente de um discurso que se dirige a Outro supostamente Saber (S2) que está ali para servi-las e do qual espera obter-se um produto (a) que, sendo do Outro, mantenha afastada, mascarada, a sua verdade. A divisão de quem fala ($).
É o discurso do Mestre fazendo o laço social.
Esta formulação deixa claro, que este é o único discurso a tornar impossível a articulação da fantasia, na medida que nesta relação do mais-de-gozar (a) com a divisão do sujeito ($) há um impedimento que é de estrutura. Relação que se apresenta como fundamentalmente interditada, na medida em que o Mestre renunciou ao gozo no momento em que se expôs à morte.
É por aí que tudo começa: a função da fala, no campo da linguagem, é definida por dois pólos: o agente e o outro, onde um significante representando um sujeito para outro significante traz como consequência um resto que, escapando à articulação significante aí permanece para dizer do que nunca foi, ao mesmo tempo que diz de uma impossibilidade da estrutura: “existe o universo do discurso (...). Porque não há o todo, nada é tudo. O tudo é o índice do conhecimento...”2
Como “o discurso que se mantém, é aquele que pode se sustentar tempo suficiente sem que haja necessidade de demandar-lhe razão de sua verdade”.3 poderíamos aí permanecer, ad infinitum, não fosse um fato simples mas de difícil consecução estar, então, operando: o silêncio do analista. Este fato estabelece uma dissimetria fundamental pois, sustentado por um desejo, marca no Outro a falta de um significante (S(A/)) e diz de um ponto de não-saber neste Outro. Isto vai jogar por terra a consistência que lhe era atribuída até então.
Os sonhos e atos falhos começam, gradativamente, a tomar a cena no lugar dos relatos “certinhos” e magistralmente preparados. Problemas de competição com o saber universitário de sua mãe ganham o centro de sua atenção e trazem o medo de que sua mãe possa morrer.
O que vemos acontecer aqui é o seguinte: Ao ser introduzido, este ponto de não-saber questiona a razão da verdade do discurso que até então se sustentava. A destituição deste Outro suposto saber  promove um giro de quarto de volta sobre a estrutura do discurso fazendo surgir, no lugar de agente, um sujeito dividido ($) entre o saber e a verdade. Sujeito dividido que agora vai dirigir-se a um terceiro a “um homem que será animado do desejo de saber”4, e que possa produzir este saber sobre o que falta para ser restaurada a consistência perdida do Outro.
“Isso que o analista institui como experiência analítica pode se dizer simplesmente – é a histerização do discurso. Dito de outra forma, é a introdução estrutural, por condições de artifício, do discurso da histeria”5 ou seja, era de se esperar que tendo o significante nós nos entendêssemos mas, no entanto, é exatamente por isso que não nos entendemos. “O significante não está feito para as relações sexuais” 6.
Desta forma, se é verdade que no inicio era o discurso do mestre enquanto o que funda a ex-sistência do inconsciente, este “aí ex-siste tanto mais ao se atestar a claras no discurso da histeria”7, desde que exista pelo menos um que se disponha a escutá-lo.
Passagem forçada no trajeto de quem se faz analisar, a histerização do discurso se apresenta como a lei, a regra do jogo.
Esta passagem, onde vemos retificada as relações do sujeito com o real, marca a entrada efetiva no segundo momento da ordenação lógica proposta por Lacan. É quando um trabalho de transferência efetivamente pode ocorrer pois, ali onde o saber falta ao Outro, surge um sujeito suposto Saber enquanto terceiro. Sujeito Suposto Saber o que? Saber o que vale esta pessoa que fala pois, “enquanto objeto ‘a’, ela é queda, queda do efeito do discurso”8 , resto e que portanto, ela não quer um mestre que se acomode aí mostrando-a como alguém que não vale a pena ser escutada.
Em outras palavras, podemos dizer, com Lacan que, “isso que no limite a histérica quer que saibamos é que a linguagem derrapa sobre a amplidão disto que ela pode abrir, como mulher, sobre o gozo. Mas isso não é o que importa à histérica. Isso que lhe imporá é que o outro, que se chama homem, saiba qual objeto precioso ela se torna neste contexto de discurso”9
Maria conseguiu um emprego. Muito animada, a princípio viu neste emprego um belo futuro. Haviam-lhe prometido sucesso rápido. Com o correr dos dias o trabalho foi ficando cada vez mais pesado, até que afinal, disse: “não era bem o que esperava”. O mal estar que esta frustração provocou foi logo apaziguado por um flerte que começou a acontecer no ambiente de trabalho. Tudo passou a girar em torno das presenças e ausências do fulano. O coração batia mais rápido, as mãos suavam e a voz sumia cada vez que ele surgia no fundo do corredor. Assim, tudo parecia caminhar bem até que, um certo dia, o “não” surgiu onde um “sim” era aguardado. A tristeza e a revolta acabaram de tomar posse do cenário. Parecia que ela não valia mais nada: o chefe não lhe escutava as queixas de excesso de trabalho e agora, o galã da firma a havia desprezado. Foi em meio a todas estas coisas que lhe chegou a notícia de que um ex-namorado, dos tempos de adolescência, havia falecido. Ao relatar este episódio e as lembranças daquela época em que se dizia feliz, exclamou: “é... não dá para voltar mais”..” Neste ponto o analista intervêm dizendo : “é ...alguma coisa se perdeu mesmo!...”
É o ato da interpretação que, preparado pelo trabalho da transferência vem marcar o 3º momento da ordenação lógica. É o ato da interpretação que, enquanto verdade específica para este sujeito visa exatamente este ponto de gozo de seu sintoma: “Estou perdida, ninguém me ama”. Com isto, mais um quarto de volta ocorre instalando como agente o objeto ‘a’ ao mesmo tempo que, deslocando o sujeito para o lugar do Outro coloca-o a trabalho para que produza um significante que diga de um saber que possa  operar enquanto verdade.
Talvez, agora, uma análise possa acontecer...


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1 – Écrits, pág. 596.
2 – Scilicet 2.3, pág. 93.
3 – Séminaire XVI, sessão de 20/11/68.
4 – Séminaire XVII, pág. 36.
5 – Séminaire XVIII, pág. 35.
6 – Séminaire XVII, pág. 36.
7 – Télévision, pág. 26.
8 – Séminaire XVII, pág. 37.
9 – Séminaire XVII, pág. 37.
BIBLIOGRAFIA

Lacan, J. – La direction de la cure et les príncipes de son pouvoir, in Écrits, 
                  Editions du Seuil. Paris, 1966.
Le Séminaire XVI – D’um Autre à l’autre.
Le Séminaire XVII – L’envers de la psychanalyse, Editions du Seuil – Paris, 1991.
Le Séminaires XIX - ... ou pire,
Savoir du psychanalyste, Inédito
Radiophonie, in Scilicet 2.3, Editions du Seuil – Paris, 1970.

Télévision, Editions du Seuil – Paris, 1974.

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