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domingo, 16 de outubro de 2016

Sobre o Traço de Perversão: Uma Brecha na Fantasia


     "Isto que a psicanálise nos demonstra concernente ao desejo na sua função que se pode dizer a mais natural, já que é dela que depende a manutenção da espécie, isto não é, somente, que ele seja submisso na sua instância, sua apropriação, sua normalidade para dizer tudo, aos acidentes da história do sujeito (noção do traumatismo com contingência), é que tudo isso exige o concurso de elementos estruturais que, por intervirem, dispensam esses acidentes, e cuja incidência desarmonica, inesperada, difícil a reduzir, parece mais deixar à experiência um resíduo que pode arrancar de Freud a confissão de que a sexualidade deve trazer o traço de alguma rachadura pouco natural”.  (J. Lacan, Écrits pág. 812). 

      Vivenciando a nossa clínica no seu dia-a-dia, Uma questão se me apresenta: o que é traço?
Optei por começar com uma pesquisa: como e em que contextos Freud utiliza a palavra traço em sua obra? Trabalhando com o texto original em alemão e cotejando-o com as traduções em inglês e português, pude observar que em alemão existem, pelo menos, três versões para a palavra traço: Zeichen, Zug e Spur. Como não podia deixar de acontecer, cada uma delas nos remete a recortes conceituais diferentes que, infelizmente, se perdem quando da tradução por uma única palavra em outras línguas.
Com o intuito de dar uma sequência ao trabalho, escolhi algumas passagens da obra de Freud, onde encontramos cada uma dessas palavras. Penso que são passagens representativas e que poderão clarear suas respectivas conceituações.
Encontramos a palavra Zeichen (traço, sinal, distintivo, insígnia, indício), principalmente, no "Projeto para uma psicologia científica", "Carta 52 da correspondência a Fliess" e em "A Interpretação dos sonhos". Tomemos como exemplo a "Carta 52" e vejamos como Freud (1896/1969, p. 254) se dirige a Fliess:

[...] Você sabe, eu trabalho com a suposição de que nosso mecanismo psíquico aparece através de camada sobre camada: o material presente na forma de traços de memória (Erinnerungsspuren) sofre, de tempos em tempos, um rearranjo, uma transcrição após novas relações. O essencialmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços (indícios: Zeichen) [...].

Mais adiante, na mesma "Carta 52", quando está a definir o que seja cada uma das "camadas", Freud (1896/1969, p. 254) vai nos dizer que uma delas é a WZ (Wahrnehmungszeichen) - traços de percepção - que consiste no “primeiro registro da percepção [...]”. Sem muito me alongar em citações, posso dizer-lhes que em todas as outras ocasiões por mim analisadas, em que surge a palavra Zeichen, ela vem sempre com o sentido de indicações, insígnias, ou seja, ligada à percepção. Posso inclusive associá-la à palavra Vorstellung (apresentação), tão comum nos escritos freudianos posteriores.
Quanto à palavra Zug (traço, sulco, puxada, puxão), vamos encontrá-la, principalmente, em duas passagens:
1. No texto "Uma criança é batida", primeiro parágrafo da segunda parte: “Uma fantasia desse tipo, proveniente talvez de causas acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação auto-erótica pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista como um traço primário (primaren Zug) de perversão” (FREUD, 1919/1969, p. 228).
2. Em "Psicologia das massas e análise do eu", parte VII – “A identificação”. Essa citação foi a mesma utilizada por Lacan em seu Seminário A identificação, para trabalhar o conceito de traço unário: “Deve também nos surpreender que em ambos os casos a identificação seja parcial e extremamente limitada (höscht beschränkte), tomando emprestado apenas um traço único (einzigen Zug) da pessoa que é seu objeto” (FREUD, 1921/1969, p. 135).
Talvez possamos encontrar outras passagens em que Freud utilize a palavra Zug; a mim, no entanto, não foi possível localizá-las nos textos com os quais trabalhei. Portanto, penso que posso dizer-lhes que o conceito de Zug está, fundamentalmente, associado aos conceitos de primário e unário. Para dar um passo a mais, posso dizer-lhes, também, que o einziger Zug tem como consequência lógica a Bejahung primordial.
Enfim, examinemos a palavra Spur (traço, vestígio, pista, rastro). Esta, talvez, seja a palavra alemã para traço que Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Dois textos, no entanto, são de capital importância para apreendermos o conceito de Spur em Freud: "Carta 52" e "Notas sobre o bloco mágico". Na "Carta 52", por exemplo, quando Freud (1896/1969) nos descreve a camada W (Wahrnehmung), ele é bastante claro ao dizer que se trata de neurônios nos quais "nenhum traço" (kein Spur) do que acontece permanece. Só vamos ver surgir os traços (Spuren) quando do segundo registro (UB - Unbewusst): “[...] traços do Inconsciente (UB Spuren) são algo equivalente a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen) [...]”.
Posso lembrar-lhes, nesse ponto, que esses UB Spuren são o que Freud vai chamar, mais tarde, de Vorstellungsrepräsentanz, que é, como nos diz Lacan (1998a, p. 723), “o significante que é recalcado, pois não há outro sentido a dar nesses textos” a essa palavra.
No entanto, é no texto "Notas sobre o bloco mágico" que Freud vai trabalhar exaustivamente o conceito de Spur, que estará sempre ligado ao conceito de memória (Erinnerung) e permanência (Dauer).
A partir do que lhes trouxe até aqui, uma hipótese surge: mais do que simples diferenças de traduções ou de grafia, cada uma dessas palavras utilizadas por Freud apontam um recorte conceitual preciso e nos ajudam a pensar não só os vários "tempos" do sujeito, como também questões clínicas como "traços de perversão".
Na "Carta 52", nosso ponto de partida, Freud (1896/1969) nos fornece o seguinte esquema:

W ------ WZ ------ UB ------ VB ------ Bews
         I         II        III

- “W (Wahrnehmung) - São neurônios nos quais a percepção começa, aos quais a consciência se liga. Neles, nenhum traço (kein Spur) do que acontece permanece [...]”.
- “WZ (Wahrnehmungszeichen) é o primeiro registro (Niederschrift) da percepção. Sua conscientização é totalmente incapaz de se fazer (der Bewusstsein ganz unfahig), e são organizados de acordo com associações por simultaneidade (ach Gleichzeitigkeitsassoziation gefüt)”.
- “UB (Unbewusst) - é o segundo registro (Niederschrift); é ordenado conforme algo assim como relacionamento causal. Os traços (Spuren) de UB são equivalentes a algo assim como lembranças conceituais (Begriffserinnerung) e, da mesma forma, inacessíveis à consciência”.
- “VB (Vorbewusst) - é a terceira transcrição (Umschrift), ligada à representação de palavra (Wortvorstellung), e é aquilo que se refere ao nosso eu oficial”.
No desenvolvimento que Freud faz do esquema da "Carta 52", ele utiliza de maneira bastante clara os conceitos Zeichen e Spur. Será possível, nesse ponto, introduzir no esquema da "Carta 52" o conceito de Zug, a partir do que conhecemos da obra posterior de Freud e dos desenvolvimentos lacanianos?
Com toda a ousadia que me é permitida numa situação como esta, introduzo o conceito Zug, mais especificamente, einziger Zug, entre as camadas WZ e UB:

W ------ WZ ------ einziger Zug ------ UB ------ VB ------ Bews

Com o desejo de substanciar teoricamente o que acabo de propor, lanço mão do esquema R, assim como Lacan (1998b, p. 559) o desenvolve no seu texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose".



Esquema R

O esquema R é um desdobramento do esquema L, primeiramente desenhado no seminário sobre "A carta roubada". Ele é dividido em três partes:
1. O triângulo imaginário.
2. A faixa do real (leia-se realidade), faixa esta que, uma vez extraído o objeto a, vai sofrer uma meia torção, transformando-se em uma banda de Moebius, para nos dizer do sujeito e do pouco-de-realidade.
3. O triângulo do simbólico.
Em cada um dos seus vértices, Lacan vai instalar uma letra, designando cada uma - o grande A no caminho do sujeito. Essas letras também nos auxiliam a matemizar as três posições do analista na direção do tratamento. São elas: M - no instante de olhar, a mãe enquanto das Ding; I - no tempo para compreender, o ideal do eu enquanto matriz simbólica; e, enfim, em P - o momento de concluir pelo Nome-do-Pai enquanto representante da lei. No que diz respeito ao caminho do sujeito, posso localizar a privação do sujeito no real em M, onde vai faltar um objeto simbólico no real; a frustração na posição I, onde falta um objeto real no imaginário especular; e, finalmente, a castração em P, instalando-se definitivamente a falta no simbólico de um objeto imaginário.
Nesse ponto, uma articulação entre o esquema freudiano e o lacaniano me parece possível: M corresponderia às camadas W e WZ, camadas iniciais do aparelho psíquico freudiano da "Carta 52". Esse momento em que existem apenas e tão somente percepções, ou seja, nem sujeito nem objeto a serem percebidos. Existem apenas percepções que, num certo momento, vão se constituir em traços, insígnias, formando o que Freud (1895/1969) denominou, no "Projeto para uma psicologia científica", de "o complexo do semelhante" (Der Nebenmensch Komplex).
O importante, aqui, fica por conta do fato de que não se distingue ainda a qual desses traços de percepção vai se ligar todo o processo de identificação que irá se constituir no nome próprio, a partir do qual o sujeito advirá para nomear todas as coisas que vão fazer existir o pouco-de-realidade de seu mundo ficcional.
Entre as camadas WZ e UB, no esquema freudiano, e entre M e I, no esquema lacaniano, faço incidir a presença inaugurante do traço unário, que “é aquilo que apaga a Coisa”, como nos diz um autor anônimo em Scilicet (1970, p. 124), n° 2/3,

ele aí apaga tudo, exceto este um que ela foi, e jamais será substituída; Lacan dá esta fórmula: Wo es war, da durch das eins werde ich - aí onde era (a Coisa), aí pelo um advirei eu, e é o traço unário que faz aparecer o sujeito como aquele que conta. Mas o primeiro passo do sujeito não pode ser articulado a não ser como a introdução do nada como tal, no sentido do Nihil Negativum de Kant, objeto vazio sem conceito (Leere Gegenstand Ohne Begriff) [...].

Este é o começo do sujeito: uma vez instalado o traço unário, não vemos aparecer, como se pensa por aí, um “isto-bom que é incluído no eu e um isto-mau que é expulso do eu, mas parece que estamos, antes, autorizados a pensar que não há dois "istos", mas sim um e que o sujeito incorpora, e o que se encontra é que, nesse momento, algo se perde (dechoit) dessa incorporação [...]”.
Assim, com o traço unário, instala-se o que Freud denominou de segundo registro, uma vez que o ordenamento aqui já se faz em função de um relacionamento causal, produzindo lembranças conceituais. É o momento em que um eu ideal é a
imagem que se fixa [...] desde o ponto em que o sujeito se detém como ideal do eu. [...] Na captura que sofre de sua natureza imaginária, ele mascara sua duplicidade, qual seja, que a consciência com que ele garante a si mesmo uma existência incontestável [...] não lhe é de modo algum imanente, mas transcendente, uma vez que se apóia no traço unário do ideal do eu (LACAN, 1998c, p. 823).

É no Outro que o sujeito vai existir, na medida em que, dependente fundamentalmente de seu amor, “isto é, pelo desejo de seu desejo, identifica-se com o objeto imaginário desse desejo, na medida em que a própria mãe o simboliza no falo” (LACAN, 1998b, p. 561).
Passagem fundamental acontece nesse ponto quando, de acordo com o esquema da "Carta 52", a terceira transcrição é possível, ligando lembranças conceituais (Begriffserinnerungen) a representações de palavras (Wortvorstellungen). É o momento de instalação da lei, quando vai ser colocada em relevo a duplicidade que a imagem do eu ideal tentava mascarar. Com isso, precipita-se o ideal do eu como herdeiro desse momento que se resolve na separação. Em outras palavras, é a entrada do significante fálico que vem ordenar, estabelecer uma sequência e um tempo de espera para o que só visava o imediato do gozo sem limites.
E assim, num só-depois, poderemos observar a evolução que os esquemas apontam em sua dimensão cronológica. É a série que, começando no universo perceptivo das imagens ideográficas (Zeichen), vê eleger-se um traço unário (einziger Zug), um “traço distintivo, traço exatamente tanto mais distintivo quanto mais está apagado tudo que o distingue, salvo ser um traço, acentuado o fato de que quanto mais parecido, mais funciona, não digo como signo, mas sim suporte da diferença [...]” (LACAN, 1961-1962, aula de 13/12/1961, inédito) que, ao constituir-se em letra, vai se tornar o que sustenta materialmente o significante enquanto traço de memória (Erinnerungsspur).
Sendo, portanto, recortes conceituais precisos, quando falamos em "traços de perversão", de qual "traço" se trata: Zeichen, Zug ou Spur?
Freud (1924/1969, p. 203), no texto "O problema econômico do masoquismo", nos diz: “A castração, ou seu substituto, a cegueira, deixam, com frequência, um traço negativo (negative Spur) nas fantasias (masoquistas), pois nenhum dano deve ocorrer precisamente aos genitais ou aos olhos”. Seria possível interpretar essa frase de Freud no que diz respeito ao traço negativo, como um traço que, uma vez instalado, foi negativado? (Ou, quem sabe, desmentido?).
Encontro em outro texto de Freud (1896/1969, p. 256) subsídio para tentar responder a essa questão. É na "Carta 52", essa inesgotável fonte teórica:

Uma falha na tradução, isso é o que se chama, clinicamente, recalque [...]. Dentro de uma mesma fase psíquica e entre os registros da mesma espécie, forma-se uma defesa normal devido à produção de desprazer. Já a defesa patológica somente ocorre contra um traço de memória (Erinnerungsspur) de uma fase anterior que não foi traduzido.

Partindo daí, penso poder dizer que um traço negativo é exatamente um traço que, tendo chegado a se constituir em mais um na cadeia, "regride" ao que passa a ser um traço (Zug) que, assim, adquire a função da qual não sofreu tradução, ou seja, passa a não se submeter à ação ordenadora do significante falo, exigindo, portanto, a ação de mecanismos de defesa patológicos.

Uma fantasia desse tipo (perversa), proveniente talvez de causas acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação auto-erótica, pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista como um traço primário (primären Zug) de perversão (FREUD, 1919/1969).

Coloco-lhes, então, minha proposta: localizar a ação da Verleugnung, esse mecanismo de defesa patológico que tenta dar conta do que não sofreu tradução, entre as camadas WZ e UB no esquema modificado da "Carta 52" ou, no esquema lacaniano, entre o I e o P (esquema R). Agindo nesse ponto, a Verleugnung (desmentido) negativa a ação legislativa do significante falo, deixando sobreviver, sem tradução, um traço primário (primären Zug) que se faz o único, nesse momento, a ditar as leis: é a vontade de gozo que surge na brecha aberta da tela protetora da fantasia fundamental. É a marca estrutural que diferencia um traço de perversão de um acting-out, que se caracteriza por ser um signo cênico transitório em seu endereçamento a um outro que não está. Diferencia-se também dos traços da fantasia, esses significantes que surgem no percurso de uma análise, a partir dos quais pode-se, eventualmente, ser construída a fantasia fundamental.



REFERÊNCIAS


FREUD, Sigmund. “Projeto para uma psicologia científica” (1950 [1985]). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. I. “Project to a Cientifique Psychology”. In: Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1966.

FREUD, Sigmund. "Carta 52" (1896). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. I. “Aus den Anfängen der Psychoanalysis”. London: Imago Publishing - CO, LTD, 1950, p. 185, 187. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. I, p. 233, 235.

FREUD, Sigmund. "Uma criança é espancada" (1919). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XVII. Studienausgaben. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, v. VII, p. 233. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. XVII, p. 181.

FREUD, Sigmund. "Psicologia das massas e análise do eu" (1921). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XVII. Studienausgaben. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, v. IX, p. 100. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. XVII, p. 107.

FREUD, Sigmund. "O problema econômico do masoquismo" (1924). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XIX. Studienausgaben. Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, v. III, p. 346. Standard Edition of the Complete Psychological Works. London: The Hogarth Press, 1973, v. XIX, p. 162.

LACAN, Jacques. Le Séminaire, livre IX: L’identification (1961-1962). Paris (inédito).

LACAN, Jacques. "À memoria de Ernest Jones: Sobre sua teoria do simbolismo". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998a.

LACAN, Jacques. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-1958)". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998b.

LACAN, Jacques. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998c.

Scilicet, n° 2/3. Paris: Seuil, 1970.


sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Inconsciente, Linguagem, Letra e Sentido (II)

O sentido tem uma propriedade fundamental: ser o que nos fascina, na palavra. É interessante notar a homofonia desta palavra nos dizendo que algo “faz sina” no sentido, traçando o destino do sujeito. O termo fascinação nos indica o que de imaginário permanece na função da palavra. Se sabemos por experiência de nossa própria análise que a palavra faz vacilar o ser do sujeito e pode introduzi-lo na falta a ser, por outro lado sabemos que nesse caminho retém o que aí permanece de fascinação do sentido, relançando o vetor do grafo para os velhos caminhos do sintoma. É aí que Lacan vai opor sentido e signo em seus escritos de 70.
Para esclarecer esta oposição vamos tomar o que se diz sob o termo de mensagem cifrada, tão frequente nos escritos de Lacan quando ele se refere ao sintoma. Esta expressão, mensagem cifrada, traz em si mesmo uma ambiguidade que vai nos permitir caminhar um pouco mais. Ao mesmo tempo que nos remete, atraves do termo mensagem, à comunicação, uma mensagem cifrada pode nos levar ao equivoco de pensarmos que falta um Código que poderia decifrá-la, se pensamos que cifra só se refere ao significante. No entanto esta expressão só poderá ser esclarecida se tomarmos por referência a libido, este mito freudiano, que Lacan vai substituir por seu conceito de gozo. 
A perspectiva lacaniana sobre a experiência analítica se sustenta na formulação sobre o gozo que é descrito como a verdade estrutural do mito freudiano que se constitui nos desfiladeiros lógicos que Freud seguiu para decifrar os fenômenos inconscientes. Partindo deste princípio, o termo mensagem ficaria corroído pelo seu adjetivo cifra. A cifra carcome a mensagem. "O termo cifra está aí introduzido na vertente mesma do signo, reduzindo o gozo ao cifrado. O gozo está no cifrado mesmo: é assim que se isola um efeito que não é do sentido.”
Esta formulação deixa entrever que nas propostas mesmo de metáfora e metonímia - estes dois tipos de articulações significantes - o efeito de sentido que emerge na metáfora e fica retido na metonímia. A proposta do gozo estar na cifra, implica que a articulação do significante produz um efeito distinto do sentido. Este outro efeito Lacan chamou de sentido-gozado (jouis-sens). É este efeito que escapa a observação dos linguistas e que só pode ser percebido se se leva em conta que o inconsciente está aí implicado. E uma das formas de se levar em conta o inconsciente é, sem dúvida, o sintoma que, em outras palavras, foi como efeito de sentido gozado introduzido nos estudos da linguagem. O sintoma que obriga a complementar o efeito de sentido com o de gozo, já foi abordado de várias formas ao longo da experiência analítica, como uma maneira da resistência se manifestar. Uma destas formas muito conhecidas deste Freud é a chamada reação terapêutica negativa. 
É neste ponto, em que a distinção entre significante e significado conduzem ao Outro, que linguagem e discurso se distinguem. De S/s passamos à função do Outro, que vai ocupar o lugar de significante. Tem-se que levar em conta que não é possível implicar o significante, definido por sua diferença com respeito aos outros significantes, sem implicar o Outro como conjunto de significantes. 

S     (A)
s    s(A)

O significado também poderá ser substituído pelo Outro na medida em que ele é também o mestre do sentido.
O significante introduz a diferença consigo mesmo porque para ele não há princípio de identidade. É a partir mesmo deste princípio que a cadeia significante desliza. Em outras palavras podemos afirmar que para o significante é impensável dizer que B = B, ou seja há dois "B". Esta distinção se mantém até o infinito. Esta diferença é o espaço onde vemos surgir o sujeito que, na sua singularidade, é pura diferença. Destacar, no final de uma análise, a partir do desejo do analista, a pura diferença é, em outras palavras, fazer surgir o sujeito ali onde uma identificação ao ideal da não diferença insiste em se apresentar. Com a letra, no entanto, é possível verificar o princípio da identidade onde B = B. 
Quando se trata de um significante podemos plantear ao menos S1 – S2 para ter o Outro, enquanto que para B, que é uma letra, uma só basta e não se concebe colocá-la em cadeia. 
O sentido, portanto, vamos colocá-lo com respeito ao Outro, enquanto que o sentido gozado (Jouis-sens) não pode ser relacionado com o Outro. O sentido como sentido do Outro implica, além do mais, o desejo como desejo do Outro. Essa afirmação nos conduz à problemática mesmo do desejo do analista, ou seja, aquilo que como efeito de sentido, deve ser obtido do enunciado do analista. No entanto, por em relação ao analista o gozo do Outro é algo completamente distinto. 
Em Televisão Lacan vai definir o sintoma como um nó que captura cadeias de gozo. Essa definição esclarece a expressão mensagem cifrada. Este gozo – ou sentido gozado – não é relativo ao Outro, com ele se designa um nível mais fundamental que o Outro, que aparece então como um derivado.
Supostamente a linguagem deve ser prévia ao gozo, quando é o gozo de pequeno "a". Porém neste ponto o conceito de Outro se encontra diferenciado em Lacan. Se consideramos que o gozo é mais fundamental que o Outro, como Lacan vai nos esclarecer, podemos acompanhar porque ele introduz o conceito de lalíngua como anterior ao da linguagem. Considera que a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalingua. Neste nível primordial são solidários o gozo e lalingua, e resultam derivados o desejo, o discurso e inclusive a linguagem. 
Ao tomar estas duas referências pode-se verificar em alguns  matemas de Lacan a presença destas articulações. Por exemplo no Grafo do desejo verifica-se:
d   ($<>a)
Fórmula que coloca o desejo frente à fantasia fundamental na medida que o gozo está localizado na fantasia. Nesta fórmula temos uma preeminência dada ao desejo. 
Já no matema:
o objeto a, mais de gozar, está em posição de privilégio em relação ao sujeito do desejo e o orçamento em conta a posição central, operativa, da forma de gozo como o que determina o modo de divisão do sujeito. Deste então se abre uma clínica diferencial a partir das diferentes inscrições que este objeto a pode receber quando se refere ao Outro, o companheiro sexual. Sabe-se que sempre se referência de maneira enganosa, porque neste nível fundamental o gozo é um gozo sem companheiro, um gozo que podemos denominar, com JAMiller, de autista.
Tudo isso esclarece porque se fala de histerização do sujeito numa entrada em análise: o sintoma histérico, por apresentar seu modo de gozar do inconsciente passando pelo Outro, implica em seu gozo mesmo o desejo do Outro.

domingo, 9 de outubro de 2016

Urgência médica e Urgência psicanalítica

Proponho começar pelo princípio e o “princípio era o verbo”! 
O que nos diz o Aurélio sobre o verbo, digo, a palavra Urgência?
Os dicionários são sucintos, assim como exige a própria Urgência: “Qualidade de urgente; pressa; aperto”. Continuando nossa busca, encontro a palavra “Urgente”: “Que urge; que se deve fazer com rapidez. Iminente, impendente” e, finalmente, “imprescindível”. Mas ainda não basta, pois a palavra “Urge” exige esclarecimentos: “Ser urgente, ser imediatamente necessário. Estar iminente. Ser indispensável. Insistir, instar. Forçar, obrigar. Perseguir de perto. Empurrar, compelir e, finalmente, exigir, reclamar”. 
A urgência sempre nos remete a algo que exige uma resposta imediata. Em linguagem lacaniana pode-se dizer que a urgência nos diz de encontros onde a demanda exige o imediatamente necessário. 
Trabalhar o paralelo entre a Urgência Médica e Urgência Psicanalítica é a proposta do tema de hoje. Para levar adiante este trabalho, será necessário verificar o que pode um analista diante de uma urgência. Sabe-se que existem analistas que, por trabalharem em hospitais – Gerais ou Psiquiátricos são chamados a intervir em situações de urgência. Mas também se tem o que dizer das urgências psicanalíticas. Aquelas que podem ocorrer no transcurso de uma análise e que se costuma denominar acting-out e passagem ao ato
Um primeiro ponto se destaca: uma urgência sempre diz de 
alguém que sofre de uma forma aguda e intensa. A dor, na imensa maioria das vezes é o sinal explicito deste sofrimento. Dor física ou psíquica, não importa. Esta dor acontece e diz do rompimento da estabilidade da vida cotidiana de um determinado sujeito. É exatamente esta ruptura que grita na urgência, fazendo um apelo à restituição da estabilidade perdida. 
O analista, quando chamado a intervir, encontra-se muitas vezes no lugar de ser apenas uma testemunha de que ali se encontra algo que não caminha. Lacan já definiu, em várias passagens e de várias maneiras, que a ruptura da estabilidade que se sustenta num sentido qualquer acontece quando o sujeito se depara com um X que se coloca em seu caminho. Uma pedra, como disse nosso poeta Drummond. Um Real, para sermos fieis ao ensino de Lacan. 
Este é o ponto onde se pode testemunhar uma agitação, uma perplexidade ou até mesmo uma agressividade de quem tropeça na pedra no meio do caminho. Estas situações se por um lado podem se apresentar em situações que não caracterizariam uma emergência, sempre vem questionar a psicanálise em seus limites ao calarem o que antes falava. Não porque a palavra foi omitida ou postergada. Trata-se de um encontro com um indizível, com o S(A/)a falta no Outro na álgebra lacaniana. A falta um significante. Estes limites apontam o caráter de urgência de uma situação, sejam elas médicas ou psicanalíticas. O que nos alenta e nos coloca a trabalho é saber que estas situações são as que propiciam a que uma nova invenção possa acontecer. O próprio Freud inventou a psicanálise quando defrontado com situações limites. 
Por isso acreditamos que nossa aposta pode ser sempre 
renovada ali, onde o Real se apresenta como um X no caminho de um sujeito.
Quando se está diante de uma urgência médica, como pode o analista intervir. Sendo analista! Em outras palavras, fazendo valer os princípios da psicanálise mais do que nunca: Colocar-se em posição de escuta para fazer vir à luz os significantes do sujeito. 
Assim será possível restaurar o sentido que sustenta este sujeito na sua relação com o Outro e propiciar a ele a possibilidade de atuar, de alguma forma na sua própria recuperação física. 
Uma situação de urgência se caracteriza por uma ruptura da cadeia significante trazendo o mal-estar, o mais-além do princípio do prazer que aí se apresenta com sua face de horror. 
Vamos examinar uma situação que, certamente, pode ser classificada como urgência em um processo de análise. Sabe-se que o acting-out é um acontecimento onde o gozo irrompe na cena para dizer que o desejo do analista está fora da cena. Este é um momento em que o analista está adormecido nos braços do sujeito que ocupa a poltrona. Momento crucial, quando a interpretação urge e o apelo à retomada do significante em sua relação com a causa do desejo deve insistir como forma de se estabelecer a separação entre o desejo e o gozo do qual o sujeito que sofre busca ser aliviado. 
São situações em que re-introduzir a dimensão da palavra pode ser uma forma de restabelecer a possibilidade discursiva, ou seja, reordenar um lugar para o sujeito, ao mesmo tempo em que recoloca para ele o saber, a verdade e o objeto. A urgência diz de uma destruição da dimensão discursiva da linguagem, uma ruptura no enlaçamento borromeano. O tempo da urgência é um tempo sem Outro. É isso a ruptura da cadeia significante. O acting-out descrito 
acima é um exemplo disto e, para retomar o caminho da análise será necessário que o lugar de endereçamento da demanda seja restituído para que a demanda de análise possa ser restabelecida. 
Quando isto é possível transforma-se a urgência em porta de entrada, ou re-entrada no processo analítico. Uma passagem ao ato, por outro lado, mostra uma ausência do Outro, ausência de qualquer ancoragem significante, deixando cair um resto, o sujeito. 
Sujeito do gozo e não o sujeito dividido do desejo. Neste caso uma intervenção mais efetiva deve ser feita, muitas vezes com auxílio de um terceiro que possa restabelecer a possibilidade de uma intervenção analítica. Mas mesmo aqui, nesta situação extrema que se caracteriza, usualmente, por auto ou hetero-agressões o lugar do analista deve ser preservado com o objetivo de poder subjetivar o que escapou ao simbólico pelo ato.
A chave do que está em jogo na urgência, portanto, é esta ruptura que produz um significante fora do sentido, sinalizando a presença do Real. Este significante fora do sentido, que aparece fora da cadeia, pode ser o ponto por onde um trabalho de restabelecimento das coordenadas acontece. Esta recolocação do significante na trama do relato é um caminho possível. Em outras palavras, trata-se de uma oferta de um marco significante que possibilite a ação discursiva e a transmutação do gozo em demanda. Assim poderá acontecer uma leitura do texto que paciente traz fazendo surgir o dizer por detrás dos ditos. 
Este trabalho de localização de um significante que possa trazer indícios do sujeito já nos coloca na trilha de estabelecer uma clivagem entre gozo e desejo. Esta clivagem, como já foi enunciando acima, não é possível supor como estabelecida no momento da urgência, quando um significante fora do sentido é o que se apresenta. Na verdade, quem está em estado de urgência é comandado por uma ação sem sentido. Se por ventura nos procura, é por supor que podemos encaminha-lo numa certa direção. 
É fundamental saber que, numa situação de urgência, temos, por um lado um corpo que sofre, um corpo como sede muda de gozo, e por outro, a palavra do paciente como o que pode articular seu sofrimento. A esta articulação chamamos demanda. Demanda de significação que o analista não satisfaz, porque sabe que isso é impossível, pois toda demanda é demanda de nada que só o amor responde. Ao invés de satisfaze-la ele a reenvia a um Outro lugar onde ela pode retornar ao sujeito como mensagem invertida. Esta é a consequência que a posição de escuta e abstinência provoca: a articulação de uma demanda de saber a uma verdade sem saber. 
Saber fazer aí com o que lhe chega é função de quem recebe a urgência: restabelecer as coordenadas no que se disse, recolocando o sujeito para falar, advertido de que existe algo para ser escutado no que se diz.
Desde Freud sabemos que o inconsciente só existe se há alguém para escutá-lo. Escutá-lo, por si só já produz efeitos. Fazê-lo escutar implica em um passo a mais. Implica em ocupar uma posição sustentada em um desejo muito especial. Desejo do analista, conforme a formalização que nos legou Lacan. 
É a operação deste desejo que abre as portas para que se escute o que o paciente, na urgência, diz mais do que sabe que diz. Assim, será possível uma confrontação com o Eu, enquanto instância de desconhecimento.
Por existir uma mensagem não decifrada no dito do paciente, mesmo na urgência é fundamental que nossa intervenção se estruture em torno do que o paciente nos diz. Somente o paciente pode nos dizer onde está a borda do que foi rompido. Para isso é fundamental entrar no discurso do paciente, como nos diz Lacan. Cito o exemplo relatado no livro de Gerard Haddad (O dia que Lacan me adotou), quando ele, seguindo os passos de Lacan, entra no discurso do travesti para faze-lo falar de seu sofrimento e das razões de suas constantes passagens ao ato. Se, por acaso, nos afastamos desta direção vamos cair prisioneiros da própria urgência, agitados pela mesma pressa de quem nos procura: fazer alguma coisa sem saber o que e nem para que. Sem escutar de um Outro lugar, estaremos aprisionados pelos efeitos devastadores da urgência. Por isso, pode-se dizer que a definição de urgência não é alheia à abordagem que dela se faz.
O psicanalista pode encontrar-se com situações de urgência de vários tipos:
1 – Muitas vezes encontramos com uma urgência da própria instituição, quando ela parte da equipe ou de algum de seus membros diante de um fato que o angustia. 
2 – Esta segunda forma é, alguma maneira, um derivado da 
primeira: quando se depara com o urgente do impossível de 
suportar que se apresenta numa equipe que se supõe saber fazer com a angústia. 
3 – A urgência diante de uma dor que não cessa e que, de 
alguma forma o médico percebe que existe ali uma dimensão de mensagem.
4 – A urgência da psicose, que pode acontecer tanto em um local de atendimento psiquiátrico como em hospitais gerais, quando a presença de um fato orgânico desencadeia um “surto”.
Aqui, tanto quanto nas situações que tratamos em nossa exposição, carece deixar que a sequência significante possa restabelecer um sentido qualquer. Lacan nos diz, em seu Seminário sobre As Psicoses o seguinte: “Da mesma forma que em todo discurso, um delírio tem de ser julgado em primeiro lugar como um campo de significação que foi organizado por certo significante, de modo que a primeira regra de um bom interrogatório, e de uma boa investigação da psicose, poderia ser a de deixar falar o maior tempo possível.”

Para concluir reafirmamos que o analista não pode prometer nenhum bem estar moral. Ele oferece sua escuta e, a partir dela ele se autoriza a intervir. Sustentando esta intervenção está a ética do bem dizer e a estratégia que o artifício da transferência lhe oferece. Se o final da urgência coincide com a possibilidade de um tratamento analítico é porque aconteceu a presença de um sujeito, na medida em que um significante o representa para outro significante, possibilitando o retorno ao próprio sujeito da pergunta: Que Voui? Que Queres? Em outras palavras, assim pode- se deixar o sujeito no umbral de sua decisão de enfrentá-la: S(A/).