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domingo, 9 de outubro de 2016

Urgência médica e Urgência psicanalítica

Proponho começar pelo princípio e o “princípio era o verbo”! 
O que nos diz o Aurélio sobre o verbo, digo, a palavra Urgência?
Os dicionários são sucintos, assim como exige a própria Urgência: “Qualidade de urgente; pressa; aperto”. Continuando nossa busca, encontro a palavra “Urgente”: “Que urge; que se deve fazer com rapidez. Iminente, impendente” e, finalmente, “imprescindível”. Mas ainda não basta, pois a palavra “Urge” exige esclarecimentos: “Ser urgente, ser imediatamente necessário. Estar iminente. Ser indispensável. Insistir, instar. Forçar, obrigar. Perseguir de perto. Empurrar, compelir e, finalmente, exigir, reclamar”. 
A urgência sempre nos remete a algo que exige uma resposta imediata. Em linguagem lacaniana pode-se dizer que a urgência nos diz de encontros onde a demanda exige o imediatamente necessário. 
Trabalhar o paralelo entre a Urgência Médica e Urgência Psicanalítica é a proposta do tema de hoje. Para levar adiante este trabalho, será necessário verificar o que pode um analista diante de uma urgência. Sabe-se que existem analistas que, por trabalharem em hospitais – Gerais ou Psiquiátricos são chamados a intervir em situações de urgência. Mas também se tem o que dizer das urgências psicanalíticas. Aquelas que podem ocorrer no transcurso de uma análise e que se costuma denominar acting-out e passagem ao ato
Um primeiro ponto se destaca: uma urgência sempre diz de 
alguém que sofre de uma forma aguda e intensa. A dor, na imensa maioria das vezes é o sinal explicito deste sofrimento. Dor física ou psíquica, não importa. Esta dor acontece e diz do rompimento da estabilidade da vida cotidiana de um determinado sujeito. É exatamente esta ruptura que grita na urgência, fazendo um apelo à restituição da estabilidade perdida. 
O analista, quando chamado a intervir, encontra-se muitas vezes no lugar de ser apenas uma testemunha de que ali se encontra algo que não caminha. Lacan já definiu, em várias passagens e de várias maneiras, que a ruptura da estabilidade que se sustenta num sentido qualquer acontece quando o sujeito se depara com um X que se coloca em seu caminho. Uma pedra, como disse nosso poeta Drummond. Um Real, para sermos fieis ao ensino de Lacan. 
Este é o ponto onde se pode testemunhar uma agitação, uma perplexidade ou até mesmo uma agressividade de quem tropeça na pedra no meio do caminho. Estas situações se por um lado podem se apresentar em situações que não caracterizariam uma emergência, sempre vem questionar a psicanálise em seus limites ao calarem o que antes falava. Não porque a palavra foi omitida ou postergada. Trata-se de um encontro com um indizível, com o S(A/)a falta no Outro na álgebra lacaniana. A falta um significante. Estes limites apontam o caráter de urgência de uma situação, sejam elas médicas ou psicanalíticas. O que nos alenta e nos coloca a trabalho é saber que estas situações são as que propiciam a que uma nova invenção possa acontecer. O próprio Freud inventou a psicanálise quando defrontado com situações limites. 
Por isso acreditamos que nossa aposta pode ser sempre 
renovada ali, onde o Real se apresenta como um X no caminho de um sujeito.
Quando se está diante de uma urgência médica, como pode o analista intervir. Sendo analista! Em outras palavras, fazendo valer os princípios da psicanálise mais do que nunca: Colocar-se em posição de escuta para fazer vir à luz os significantes do sujeito. 
Assim será possível restaurar o sentido que sustenta este sujeito na sua relação com o Outro e propiciar a ele a possibilidade de atuar, de alguma forma na sua própria recuperação física. 
Uma situação de urgência se caracteriza por uma ruptura da cadeia significante trazendo o mal-estar, o mais-além do princípio do prazer que aí se apresenta com sua face de horror. 
Vamos examinar uma situação que, certamente, pode ser classificada como urgência em um processo de análise. Sabe-se que o acting-out é um acontecimento onde o gozo irrompe na cena para dizer que o desejo do analista está fora da cena. Este é um momento em que o analista está adormecido nos braços do sujeito que ocupa a poltrona. Momento crucial, quando a interpretação urge e o apelo à retomada do significante em sua relação com a causa do desejo deve insistir como forma de se estabelecer a separação entre o desejo e o gozo do qual o sujeito que sofre busca ser aliviado. 
São situações em que re-introduzir a dimensão da palavra pode ser uma forma de restabelecer a possibilidade discursiva, ou seja, reordenar um lugar para o sujeito, ao mesmo tempo em que recoloca para ele o saber, a verdade e o objeto. A urgência diz de uma destruição da dimensão discursiva da linguagem, uma ruptura no enlaçamento borromeano. O tempo da urgência é um tempo sem Outro. É isso a ruptura da cadeia significante. O acting-out descrito 
acima é um exemplo disto e, para retomar o caminho da análise será necessário que o lugar de endereçamento da demanda seja restituído para que a demanda de análise possa ser restabelecida. 
Quando isto é possível transforma-se a urgência em porta de entrada, ou re-entrada no processo analítico. Uma passagem ao ato, por outro lado, mostra uma ausência do Outro, ausência de qualquer ancoragem significante, deixando cair um resto, o sujeito. 
Sujeito do gozo e não o sujeito dividido do desejo. Neste caso uma intervenção mais efetiva deve ser feita, muitas vezes com auxílio de um terceiro que possa restabelecer a possibilidade de uma intervenção analítica. Mas mesmo aqui, nesta situação extrema que se caracteriza, usualmente, por auto ou hetero-agressões o lugar do analista deve ser preservado com o objetivo de poder subjetivar o que escapou ao simbólico pelo ato.
A chave do que está em jogo na urgência, portanto, é esta ruptura que produz um significante fora do sentido, sinalizando a presença do Real. Este significante fora do sentido, que aparece fora da cadeia, pode ser o ponto por onde um trabalho de restabelecimento das coordenadas acontece. Esta recolocação do significante na trama do relato é um caminho possível. Em outras palavras, trata-se de uma oferta de um marco significante que possibilite a ação discursiva e a transmutação do gozo em demanda. Assim poderá acontecer uma leitura do texto que paciente traz fazendo surgir o dizer por detrás dos ditos. 
Este trabalho de localização de um significante que possa trazer indícios do sujeito já nos coloca na trilha de estabelecer uma clivagem entre gozo e desejo. Esta clivagem, como já foi enunciando acima, não é possível supor como estabelecida no momento da urgência, quando um significante fora do sentido é o que se apresenta. Na verdade, quem está em estado de urgência é comandado por uma ação sem sentido. Se por ventura nos procura, é por supor que podemos encaminha-lo numa certa direção. 
É fundamental saber que, numa situação de urgência, temos, por um lado um corpo que sofre, um corpo como sede muda de gozo, e por outro, a palavra do paciente como o que pode articular seu sofrimento. A esta articulação chamamos demanda. Demanda de significação que o analista não satisfaz, porque sabe que isso é impossível, pois toda demanda é demanda de nada que só o amor responde. Ao invés de satisfaze-la ele a reenvia a um Outro lugar onde ela pode retornar ao sujeito como mensagem invertida. Esta é a consequência que a posição de escuta e abstinência provoca: a articulação de uma demanda de saber a uma verdade sem saber. 
Saber fazer aí com o que lhe chega é função de quem recebe a urgência: restabelecer as coordenadas no que se disse, recolocando o sujeito para falar, advertido de que existe algo para ser escutado no que se diz.
Desde Freud sabemos que o inconsciente só existe se há alguém para escutá-lo. Escutá-lo, por si só já produz efeitos. Fazê-lo escutar implica em um passo a mais. Implica em ocupar uma posição sustentada em um desejo muito especial. Desejo do analista, conforme a formalização que nos legou Lacan. 
É a operação deste desejo que abre as portas para que se escute o que o paciente, na urgência, diz mais do que sabe que diz. Assim, será possível uma confrontação com o Eu, enquanto instância de desconhecimento.
Por existir uma mensagem não decifrada no dito do paciente, mesmo na urgência é fundamental que nossa intervenção se estruture em torno do que o paciente nos diz. Somente o paciente pode nos dizer onde está a borda do que foi rompido. Para isso é fundamental entrar no discurso do paciente, como nos diz Lacan. Cito o exemplo relatado no livro de Gerard Haddad (O dia que Lacan me adotou), quando ele, seguindo os passos de Lacan, entra no discurso do travesti para faze-lo falar de seu sofrimento e das razões de suas constantes passagens ao ato. Se, por acaso, nos afastamos desta direção vamos cair prisioneiros da própria urgência, agitados pela mesma pressa de quem nos procura: fazer alguma coisa sem saber o que e nem para que. Sem escutar de um Outro lugar, estaremos aprisionados pelos efeitos devastadores da urgência. Por isso, pode-se dizer que a definição de urgência não é alheia à abordagem que dela se faz.
O psicanalista pode encontrar-se com situações de urgência de vários tipos:
1 – Muitas vezes encontramos com uma urgência da própria instituição, quando ela parte da equipe ou de algum de seus membros diante de um fato que o angustia. 
2 – Esta segunda forma é, alguma maneira, um derivado da 
primeira: quando se depara com o urgente do impossível de 
suportar que se apresenta numa equipe que se supõe saber fazer com a angústia. 
3 – A urgência diante de uma dor que não cessa e que, de 
alguma forma o médico percebe que existe ali uma dimensão de mensagem.
4 – A urgência da psicose, que pode acontecer tanto em um local de atendimento psiquiátrico como em hospitais gerais, quando a presença de um fato orgânico desencadeia um “surto”.
Aqui, tanto quanto nas situações que tratamos em nossa exposição, carece deixar que a sequência significante possa restabelecer um sentido qualquer. Lacan nos diz, em seu Seminário sobre As Psicoses o seguinte: “Da mesma forma que em todo discurso, um delírio tem de ser julgado em primeiro lugar como um campo de significação que foi organizado por certo significante, de modo que a primeira regra de um bom interrogatório, e de uma boa investigação da psicose, poderia ser a de deixar falar o maior tempo possível.”

Para concluir reafirmamos que o analista não pode prometer nenhum bem estar moral. Ele oferece sua escuta e, a partir dela ele se autoriza a intervir. Sustentando esta intervenção está a ética do bem dizer e a estratégia que o artifício da transferência lhe oferece. Se o final da urgência coincide com a possibilidade de um tratamento analítico é porque aconteceu a presença de um sujeito, na medida em que um significante o representa para outro significante, possibilitando o retorno ao próprio sujeito da pergunta: Que Voui? Que Queres? Em outras palavras, assim pode- se deixar o sujeito no umbral de sua decisão de enfrentá-la: S(A/). 

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