Um sujeito procura análise porque o saber constituído de seu sintoma claudica. Este é o momento em que “o sintoma se apresenta como impossível a assumir”(1), porque o rompimento de seu envelope formal coloca a céu aberto o que escapa à representação, à ação do pensamento (gedanken) e que permanece como um resto que Freud, no seu “Projeto...”(2) denomina de “a coisa” (das Ding). Em consequência, a angústia surge como sinal.
Buscar um analista torna-se, então, uma das saídas possíveis. Busca-se, no analista, um saber que possa restituir a eficácia do envelope rompido, na esperança de que seja devolvido, ao sujeito, sua certeza de ser na singularidade própria de seu sintoma. É Albert Camus, numa passagem que só os escritores criativos produzem, quem diz muito bem do que se trata: “Ele não era nada senão esse coração angustiado, ávido de viver, revoltado contra a ordem mortal do mundo que o tinha acompanhado durante quarenta anos, esse coração que batia sempre com a mesma força contra o muro que o separava de toda e qualquer vida, querendo ir mais longe, ir além e sobretudo saber, saber antes de morrer, saber finalmente para ser, uma só vez, um só segundo, mas para sempre.” (3)
É, portanto, pela via do saber que começa uma análise e neste começo está a transferência: o amor ao saber.
Responder deste lugar de saber, no entanto, poderá produzir alguns efeitos, mas nunca uma análise. Por isso é importante distinguirmos, com Gerard Miller, “a entrada em análise de seu começo (...) se quisermos dar conta desses alongamentos que se estiram sob o nome de uma análise, sem jamais iniciarem” (4).
Para que uma análise possa acontecer é fundamental a intervenção de um analista.
Novamente uma distinção se faz necessária. Quando Lacan nos diz , em sua conferência intitulada “A terceira”, que “chama sintoma ao que vem do real” (5), ele explicita que este, o sintoma, só se acalma se lhe nutrem de sentido, de tal maneira que só há duas saídas: ou o sintoma prolifera ou se reinventa. Ora, proliferar o sintoma não é bem o objetivo de uma análise, assim como não o é, extinguí-lo. O fundamental é que não nos esqueçamos de que na base do sintoma está uma impossibilidade que, sendo de estrutura, define-se por: “não há relação sexual” - dizer que Lacan extrai dos ditos freudianos. É a partir mesmo desta impossibilidade que o sentido insiste no ‘automaton’ da cadeia significante.
Não nutrir o sintoma para que este prolifere ou, como usualmente escutamos: não responder às demandas do analisante, propiciando a ele a oportunidade de escutar por detrás dos ditos, é função do analista. Uma interpretação não é, pois, aberta a todos os sentidos(6), mas ao real que constitui o núcleo do sintoma e aí se coloca como um x, impedindo que as coisas andem. Ao visar este núcleo, este para-além da significação, a interpretação, ou o dizer silencioso do analista - e aqui me refiro ao silêncio da falta de palavras [S(A/)] - é que vai promover uma volta a mais a partir mesmo do um-a-menos de sua resposta.
Esta volta a mais só será possível se o analista não ceder de seu desejo, permitindo que os efeitos do reinado do objeto ‘a’, enquanto semblante, levem o sujeito à experiência de desamparo (Hilflösigkeit), condição primordial ao surgimento do desejo. É o que pretendo mostrar ao desenhar, sobre a topologia do Grafo do Desejo, um Oito Interior. (Vide figuras abaixo)
Grafo do Desejo
Oito interior
Esta volta a mais, podemos dizê-la correlativa de um tempo para compreender na medida que, frente a frente com a demanda do Outro, e não mais submetido a um “querer” do analista, o analisante poderá dizer, como o fez outro dia uma cliente: “Saí daqui preocupada com a última sessão. Parece que eu estava sempre querendo falar coisas que lhe interessassem.” Este é um sinal claro da presença de uma transferência e, mais ainda, de um certo saber que aponta para um mais-além da demanda, dizendo que uma análise poderá acontecer.
No entanto, muitas vezes este percurso é paralisado, é interrompido, ou pode até ir um pouco além deste ponto, quando o saber que o sujeito adquiriu durante este tempo de compreender apresenta-se como suficiente. Com a intenção de manter-se não sabendo, o analisante faz a opção pelo luto do analista para, assim, poder sustentar seus ideais e a crença num Outro. Esta é a esperança de poder evitar saber da perda forçada que a entrada na linguagem impõe ao sujeito.
Podemos denominar este momento de uma saída terapêutica aí, onde uma análise didática poderia ter começado.
Em sua “Nota aos Italianos”, Lacan já dizia desta possibilidade ao afirmar que a humanidade não deseja saber e que “não há analista, senão quando um desejo lhe vem” (7).
Quando, ao contrário, um passo a mais pode ser dado, vamos ter o que pode ser chamado de uma “segunda entrada em análise”. Este termo, introduzido por Gerard Miller é relembrado por J. A. Miller em seu artigo sobre “As saídas de Análise”: “poderíamos nos perguntar se não há sempre, em certo sentido, uma segunda entrada em análise. O sujeito entra em análise antes de efetivamente saber o que é uma análise; por isso é necessário que o analista intervenha para confirmar sua opção” (8).
A confirmação desta opção, acredito, não se faz pela via do saber, mas sim por umconsentimento com a experiência do inconsciente. Quando me refiro a consentimento, tenho em mente o que Lacan nos diz em seu Seminário VII - “A Ética da Psicanálise”: quando, uma vez cumprido o ato do assassinato do pai da horda primitiva, “se instaura um consentimento inaugural que é um tempo essencial na instituição da lei, quanto à qual a arte de Freud será vinculá-la ao assassinato do pai, de identificá-la à ambivalência que então funda as relações do filho com o pai, isto é, ao retorno do amor após efetuado o ato.”(9)
Destaco o “retorno do amor” para dizer que aqui também, nesta passagem, o amor de transferência se enlaça neste ponto onde o sujeito vê, para além do narcisismo, o Outro como a própria presença da morte, espreitando. É o momento em que, já não mais podendo ter a garantia da sobrevivência deste Outro de suas virtudes, o sujeito encontra no amor o signo que vai sustentar o giro de quarto de volta do discurso. É quando uma segunda entrada em análise poderá acontecer.
(Continua...)
Notas:
1 - Soler, C. - “Variáveis do fim da análise”. Papirus Ed., Campinas, SP. 1995. Pag. 73
2 - Freud, S. - “Aus den Anfängen der Psychoanalyse” Imago Pub. London, 1950. Pag.
3 - Camus, A. - “O primeiro homem”. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1994. Pag. 26
4 - Miller, G. - “La seconde entrée in analyse”, in Actes de l’Ecole, nº 3, Paris. 1982. Pag. 46
5 - Lacan, J. - “La Tercera”, in Intervenciones y textos, Ed. Manantial, B. Aires, 1988. Pag. 84
6 - Lacan, J. - “Le Séminaire XI - Les quatre concepts ...” Ed. du Seuil, Paris. 1973. Pag. 226
7 - Lacan, J. - “Nota aos Italianos”, in Opção Lacaniana, nº 11, Ed. Eolia, SP Nov 1994. Pag. 6
8 - Miller, J. A. - “As saídas de análise”, in Opção Lacaniana, nº 7/8. Pag.
9 - Lacan, J. - “Le Séminaire VII - L’éthique de la psychanalyse”. Ed. du Seuil, Paris, 1986, pag. 207
9 - Lacan, J. - “Le Séminaire VII - L’éthique de la psychanalyse”. Ed. du Seuil, Paris, 1986, pag. 207