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segunda-feira, 29 de junho de 2020

Entrada em Análise: Uma Interpretação Memorável (1ª Parte)

Um sujeito procura análise porque o saber constituído de seu sintoma claudica. Este é o momento em que “o sintoma se  apresenta como impossível a assumir”(1), porque o rompimento de seu envelope formal coloca a céu aberto o que escapa à representação, à ação do pensamento (gedanken) e que permanece como um resto que Freud, no seu “Projeto...”(2) denomina de “a coisa” (das Ding). Em consequência, a angústia surge como sinal.
Buscar um analista torna-se, então, uma das saídas possíveis. Busca-se, no analista, um saber que possa restituir a eficácia do envelope rompido, na esperança de que seja devolvido, ao sujeito, sua certeza de ser na singularidade própria de seu sintoma. É Albert Camus, numa passagem que só os escritores criativos produzem, quem diz muito bem do que se trata: “Ele não era nada senão esse coração angustiado, ávido de viver, revoltado contra a ordem mortal do mundo que o tinha acompanhado durante quarenta anos, esse coração que batia sempre com a mesma força contra o muro que o separava de toda e qualquer vida, querendo ir mais longe, ir além e sobretudo saber, saber antes de morrer, saber finalmente para ser, uma só vez, um só segundo, mas para sempre.” (3)
É, portanto, pela via do saber que começa uma análise e neste começo está a transferência: o amor ao saber. 
Responder deste lugar de saber, no entanto, poderá produzir alguns efeitos, mas nunca uma análise. Por isso é importante distinguirmos, com Gerard Miller, “a entrada em análise de seu começo (...) se quisermos dar conta desses alongamentos que se estiram sob o nome de uma análise, sem jamais iniciarem” (4).
Para que uma análise possa acontecer é fundamental a intervenção de um analista. 
Novamente uma distinção se faz necessária. Quando Lacan  nos diz , em sua conferência intitulada “A terceira”, que “chama sintoma ao que vem do real” (5), ele explicita que este, o sintoma, só se acalma se lhe nutrem de sentido, de tal maneira que só há duas saídas: ou o sintoma prolifera ou se reinventa. Ora, proliferar o sintoma não é bem o objetivo de uma análise, assim como não o é, extinguí-lo.  O fundamental é que não nos esqueçamos de que na base do sintoma está uma impossibilidade que, sendo de estrutura, define-se por: “não há relação sexual” - dizer que Lacan extrai dos ditos freudianos. É a partir mesmo desta impossibilidade que o sentido insiste no ‘automaton’ da cadeia significante.
Não nutrir o sintoma para que este prolifere ou, como usualmente escutamos: não responder às demandas do analisante, propiciando a ele a oportunidade de escutar por detrás dos ditos, é função do analista. Uma interpretação não é, pois, aberta a todos os sentidos(6), mas ao real que constitui o núcleo do sintoma e aí se coloca como um x, impedindo que as coisas andem. Ao visar este núcleo, este para-além da significação, a interpretação, ou o dizer silencioso do analista - e aqui me refiro ao silêncio da falta de palavras [S(A/)] - é que vai promover uma volta a mais a partir mesmo do um-a-menos de sua resposta.
Esta volta a mais só será possível se o analista não ceder de seu desejo, permitindo que os efeitos do reinado do objeto ‘a’, enquanto semblante, levem o sujeito à experiência de desamparo (Hilflösigkeit), condição primordial ao surgimento do desejo. É o que pretendo mostrar ao desenhar, sobre a topologia do Grafo do Desejo, um Oito Interior. (Vide figuras abaixo)

                                                  
                    Grafo do Desejo
                  
                  
                              Oito interior
Esta volta a mais, podemos dizê-la correlativa de um tempo para compreender na medida que, frente a frente com a demanda do Outro, e não mais submetido a um “querer” do analista, o analisante poderá dizer, como o fez outro dia uma cliente: “Saí daqui preocupada com a última sessão. Parece que eu estava sempre querendo falar coisas que lhe interessassem.” Este é um sinal claro da presença de uma transferência e, mais ainda, de um certo saber que aponta para um mais-além da demanda, dizendo que uma análise poderá acontecer. 
No entanto, muitas vezes este percurso é paralisado, é interrompido, ou pode até ir um pouco além deste ponto, quando o saber que o sujeito adquiriu durante este tempo de compreender apresenta-se como suficiente. Com a intenção de manter-se não sabendo, o analisante faz a opção pelo luto do analista para, assim, poder sustentar seus ideais e a crença num Outro. Esta é a esperança de poder evitar saber da perda forçada que a entrada na linguagem impõe ao sujeito.
Podemos denominar este momento de uma saída terapêutica aí, onde uma análise didática poderia ter começado.
Em sua “Nota aos Italianos”, Lacan já dizia desta possibilidade ao afirmar que a humanidade não deseja saber e que “não há analista, senão quando um desejo lhe vem” (7).
Quando, ao contrário, um passo a mais pode ser dado, vamos ter o que pode ser chamado de uma “segunda entrada em análise”. Este termo, introduzido por Gerard Miller é relembrado por J. A. Miller em seu artigo sobre “As saídas de Análise”: “poderíamos nos perguntar se não há sempre, em certo sentido, uma segunda entrada em análise. O sujeito entra em análise antes de efetivamente saber o que é uma análise; por isso é necessário que o analista intervenha para confirmar sua opção” (8).
A confirmação desta opção, acredito, não se faz pela via do saber, mas sim por umconsentimento com a experiência do inconsciente. Quando me refiro a consentimento, tenho em mente o que Lacan nos diz em seu Seminário VII - “A Ética da Psicanálise”: quando, uma vez cumprido o ato do assassinato do pai da horda primitiva, “se instaura um consentimento inaugural que é um tempo essencial na instituição da lei, quanto à qual a arte de Freud será vinculá-la ao assassinato do pai, de identificá-la à ambivalência que então funda as relações do filho com o pai, isto é, ao retorno do amor após efetuado o ato.”(9)
Destaco o “retorno do amor” para dizer que aqui também, nesta passagem, o amor de transferência se enlaça neste ponto onde o sujeito vê, para além do narcisismo, o Outro como a própria presença da morte, espreitando. É o momento em que, já não mais podendo ter a garantia da sobrevivência deste Outro de suas virtudes, o sujeito encontra no amor o signo que vai sustentar o giro de quarto de volta do discurso. É quando uma segunda entrada em análise poderá acontecer.
(Continua...)


Notas:

1 - Soler, C. - “Variáveis do fim da análise”. Papirus Ed., Campinas, SP. 1995. Pag. 73
2 - Freud, S. - “Aus den Anfängen der Psychoanalyse” Imago Pub. London, 1950. Pag. 
3 - Camus, A. - “O primeiro homem”. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1994. Pag. 26
              4 - Miller, G. - “La seconde entrée in analyse”, in Actes de l’Ecole, nº 3, Paris. 1982. Pag. 46
              5 - Lacan, J. - “La Tercera”, in Intervenciones y textos, Ed. Manantial, B. Aires, 1988. Pag. 84  
              6 - Lacan, J. - “Le Séminaire XI - Les quatre concepts ...” Ed. du Seuil, Paris. 1973. Pag. 226
              7 - Lacan, J. - “Nota aos Italianos”, in Opção Lacaniana, nº 11, Ed. Eolia, SP Nov 1994. Pag. 6
           8 - Miller, J. A. - “As saídas de análise”, in Opção Lacaniana, nº 7/8. Pag.
           9 - Lacan, J. - “Le Séminaire VII - L’éthique de la psychanalyse”. Ed. du Seuil, Paris, 1986, pag.        207



segunda-feira, 22 de junho de 2020

ENTRADA EM ANÁLISE E O GRAFO DO DESEJO

Em seu texto, “Amanhã a psicanálise”, Michel Silvestre nos diz que “a queixa, quer dizer, a demanda, demanda de análise entre outras, e o sofrimento são duas coisas. Pode-se sofrer – mentalmente – e se recusar a qualquer queixa... Há uma distinção radical entre a queixa e o sofrimento. Ela é radical pois oferece uma escolha ao psicanalista: aquela de tratar a queixa ou de colocar em causa o sofrimento. (...) a queixa é uma fala, o sofrimento é uma paixão (...) o sintoma.” Continua M. Silvestre, “ é isso que claudica, mas é também isso que se soma ao sofrimento para aí fazer uma queixa. O sintoma implica um endereço onde ele se decifra (...) temos, portanto, de um lado, um sofrimento que o sujeito pode suportar com um heroísmo estóico e sem dizer palavra. De outro, os portadores de sintomas que banham seu ambiente com eles, mas sem sofrerem, eles mesmos, absolutamente nada. Na medida em que os dois se conectam na mesma pessoa, isso pode produzir uma demanda de análise.”
Esta longa citação tem como proposta dizer-lhes que é preciso algo mais, talvez o que Lacan chamou de “um-mal-a-mais” para que a nossa intervenção como analista se justifique.
É disto que tratarei agora, tomando como referência o grafo do desejo tal como Lacan o elaborou em sua forma final no texto “subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente Freudiano”.

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Comecemos por instalar o sintoma aí mesmo onde Lacan o instalou no seu grafo: s(A) ponto onde a interseção de duas demandas vai produzir a significação do Outro. Este ponto, que vem a ser s(A) somente no “a posterior”, é de onde parte o endereçamento para onde um decifração poderá ocorrer, ao A. “Lugar mais que espaço”, o A tem sua inconsistência estrutural pois traz no seu seio sua própria contradição na forma deste objeto que lhe é o mais íntimo e o mais estranho: o objeto a.
É pois aí, neste ponto de extimidade que denuncia a falta do significante que podeira apaziguar o mal-estar do sintoma é que vamos ver instalar-se o sujeito suposto Saber na esperança de se fazer restaurar a consistência perdida. Este sujeito se faz presente enquanto um significante qualquer que poderia produzir uma representação total do sujeito em questão.
Sabemos, desde Freud, que o fato de um sujeito buscar análise não implica dizer que ele entrou em análise. Este circuito que acabo de lhes descrever pode muito bem permanecer assim de modo circular através de um curto-circuito pelo i(a) que é a imagem especular do objeto e reforçando o eu (moi) para, então, relançar a demanda fechando o circuito.
No entanto, algo precisa acontecer para que este circuito seja interrompido e o vetor seja lançado para o outro andar do grafo, aquele onde Lacan nos diz referir-se à enunciação.
Freud esclarece que, se num primeiro momento o sujeito se coloca a repetir suas experiência para não rememora-las, o fato de as estar rememorando depois de um tempo ainda não é indicativo de que um certo umbral foi ultrapassado para que possamos dizer que está acontecendo uma análise. É somente quando há uma mudança de posição do sujeito na sua relação ao gozo do sintoma que vamos ver acontecer o que Freud chamou de “Durcharbeit” ou perlaboração.
O que vai sustentar esta passagem, ou melhor, este salto, é o desejo do analista. A partir de não responder ás demandas, um vazio vai ser mantido e o sujeito vai, fatalmente, se deparar com sua própria demanda fundamental. É o que nos indica, no grafo do desejo, o matema  $ D.
É neste ponto que o sujeito vai se deparar com sua própria castração e com a questão do Outro que lhe retorna do lugar de onde ele espera um oráculo, sob o libelo de um Che voui? Que queres? É isto que lhe conduz melhor ao caminho do seu desejo.
Este vetor vai completar sua volta esbarrando no matema $ a  que Lacan diz ser a maneira como o desejo se articula para o sujeito. É esta a interpretação que se faz da falta no Outro S(A/)   e que põe a nu a estrutura que sustenta, na sua articulação, o desejo do sujeito em questão.
É assim que uma análise pode acontecer e uma retificação a nível da pulsão, que sustenta a articulação do sujeito e seu objeto, pode ser feita Uma nova interpretação do encontro com Outro surge, então, no horizonte promovendo uma nova aliança pulsional e abrindo para o sujeito a possibilidade dele exercitar a mais humana das condições: a possibilidade de escolher. Poder escolher é o que diferencia a pulsão, tal como Freud a apresenta, do instinto, onde não esta colocada nenhuma possibilidade de escolha.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Sobre a realidade psíquica e o desejo do analista - Revisitando o Seminário XI

Vou partir da noção de realidade psíquica como realidade sexual para saber da pulsão e seu circuito, com a intenção de esclarecer o que está escrito ao final do Seminário XI: “... após a distinção do sujeito em relação ao objeto“a", a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão”.
O incons­ciente, enquanto um campo aberto por Freud aponta para o “não nascido”, para uma brecha, para “uma forma desconhecida do Un, do Unbewusste, cujo limite é o Unbegriff - não um não conceito, mas o conceito da falta”. 
Em outras palavras, é a partir do recalque originário, que trouxe como con­sequência a impossibilidade de um primeiro traço sofrer uma tra­dução, que se criou um pequeno intervalo entre os significantes que passaram a se ordenar a partir da história de cada sujeito. Esta ordenação não é aleató­ria e vai se sujeitar a uma estruturação que não é outra, senão a da linguagem. Isto é o que foi acres­centado ao legado freudiano: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” o que autorizou Lacan a dizer que, “se o campo é freudiano, o inconsciente é lacaniano”.
Ora, é exatamente esta brecha, este intervalo, o responsável pela repetição. A repetição, este outro con­ceito clínico importante, se escla­rece sob os termos aristotélicos de automaton e  tiquê: o automaton representado, de maneira sucinta, pela cadeia significante e a tiquê se apresentando nos seus intervalos como um encontro sempre faltoso.
Na verdade, este encontro sempre faltoso é que vai designar o lugar do Real. Lugar este que se instaura pelo trauma inicial e que vai se constituir na fantasia fundamental, na medida que a fantasia funda­mental é esta tela que vai dissimular o que aí permanece como motor da repetição. 
Assim, se colocando entre o sonho e o despertar, este Real pode se repre­sentar pelo acidente como o da vela que tomba, no sonho relatado pela paciente de Freud, ou pelo pequeno barulho da batida à porta, descrito no seminário XI, ou ainda por este pouco de realidade que vai nos dizer que não so­nhamos mais. “Mas, por outro lado, esta realidade não é pouca, pois isso que nos acorda é a outra realidade es­condida por detrás da falta disso que se constrói no lugar de representação - é o “Trieb”, nos diz Freud...”Trieb a vir”.
Por outro lado temos o olhar como objeto pequeno a, a partir da divisão entre o olho e o olhar. Esta divisão que nos interessa, nada tem a ver com as formas impostas pelo mundo, em direção às quais vai nos dirigir a fenomeno­logia, no que diz respeito ao visível e o invisível. “o olhar vai apresentar-se a nós sob a forma de uma estranha contingência simbólica disso que encontramos no horizonte e como fim de nossa experiência, a saber, a falta constitutiva da angús­tia de castração”.
Divisão entre olho e olhar é como se manifesta a pulsão ao nível do campo escópico. Em outras palavras, podemos dizer que esta divisão se demonstra na medida em que olhar, en­quanto objeto a, vem simbolizar a falta central, expressa no fenômeno da castração, e se reduz, por sua natureza, a uma função punti­forme, evanescente, deixando o sujeito na ignorância disso que existe para além da aparência”. 
Uma outra questão presente no Seminário XI passa pela certeza cartesiana, e coloca em questão a verdade do “eu minto”, para constatar que um entrelaçamento “entre o campo do inconsciente e o momento de Freud, onde este campo se revelou”. Campo este que não é qualquer e que se organiza como um campo magnético, onde sua subsistência se assegura por “ser um campo que, por sua natureza, se perde”. É aqui que a presença do analista vai se tornar irredutível, como testemunha desta perda ... que é “uma perda seca, que não se salda por nenhum ganho” 
Sustentado no que acabo de citar, e configurando a sua nova aliança com a descoberta de Freud, Lacan vai nos dizer que: ”isto que é a causa do inconsciente deve ser fundamen­talmente concebida como uma causa perdida. E é essa a única chance que temos de ganhá-la”. 
Uma brecha, uma falha na tradução de um traço, um conceito de falta (Unbewusste - Unbegriff), um lugar que se abre à representação, ao significante enquanto Vorstellunngsrepräsentantz e que vai promo­ver a instalação de uma tela protetora na medida em que um sujeito, constituído pelos efeitos da fala vai estabelecer uma relação com este resto que permaneceu sem tradução. A partir daí uma realidade vai se constituir e só a análise vai ter condições de sabê-la pois, é na transferência que esta realidade vai ser colocada em ato. E, ao analista, cabe apenas persistir como testemunha desta perda pura em que se cons­titui o inconsciente a cada vez que um sujeito se apresenta como consequência dos efeitos da fala. Sujeito que estará, a partir daí, para sempre representado por um significante, para outro significante. E será apenas na psicanálise que se pode constatar esta presença da realidade do inconsciente, ”que nossa intervenção não somente traz à luz, mas até um certo ponto a engendra”. E a engendra, pela via da trans­ferência. A partir dessa afirmação, um passo a mais pode ser dado: “A realidade do inconsci­ente é ... a realidade sexual”.
Impossível negar os progressos da ciência no que diz respeito à sexuali­dade. “Hoje sabemos um pouco mais sobre o sexo, do que em 1900”, assim com também é inegável que a espécie só subsiste sob a forma de seus indivíduos que, através da reprodução vão perpetuá-la até sua ex­tinção. Desta forma, um indivíduo de qualquer espécie é transitório e mortal, o que nos leva a associar, como o fez Freud no texto “Para Além do Princípio do Prazer”, sexualidade e morte. Em algumas espécies vemos isto se demonstrar de forma imediata e drástica. 
Para além das funções de reprodução se associam à diferenciação sexual caracteres e funções secundárias que vão ser bem delimitadas pelo estruturalismo moderno. Quando se colocam essas características e fun­ções sexuais em oposição à geração natural, à linhagem biológica, para se dizer das trocas fundamentais, estas se dão ao nível do significante, nos termos de uma combinatória. 
O trabalho desenvolvido por Levi-Strauss nos coloca  diante da seguinte  questão:  o significante não teria chegado ao mundo do homem quando da integração desta combi­natória à realidade sexual? 
Foi só depois que, pela realidade sexual, o significante entrou no mundo, que o homem começou a pensar.
Há, sem dúvidas, uma afinidade entre os enigmas da sexualidade com o jogo dos significantes, aí incluído o que fica excluído como resto. 
Neste ponto do Seminário XI é feita uma alusão às ciências primitivas como demonstração desta afini­dade e, ilustrando esta sua afirmação com a as­trologia chinesa, nos diz que “a ciência primitiva seria, ...uma espécie de técnica sexual”. 
Ao se questionar  sobre aonde nos leva todo este discurso e se devemos considerar o inconsciente como uma remi­niscência das funções arcaicas do pensamento com a realidade sexual,  passamos rapidamente pela tentativa junguiana de eliminar o conceito da libido, exaltando esta conjunção histórica sob a égide dos arquétipos. Ora, “a libido é a presença efetiva, como tal, do desejo ... que não é uma substância, que está aí no nível do processo primário, e que comanda, até mesmo, a maneira de nossa abordagem”. 
A introdução, como tal, do desejo, vai abrir espaço para  começar a seguinte discussão: “É ao nível da análise que deverá se revelar isso que aí é desse ponto nodal pelo qual a pulsação do inconsciente está ligada à realidade sexual. Esse ponto nodal se chama desejo. (...) Desejo este que se situa na dependência da de­manda - a qual, por se articular em significantes, deixa um resto metonímico que corre sob ela, elemento que não é indeterminado, que é uma condição, ao mesmo tempo, absoluta e inapreensível, elemento neces­sariamente em impasse, impossível, desconhecido, elemento que se chama desejo. É isto que faz a junção com o campo definido por Freud como aquele da instância sexual ao nível do pro­cesso primário”. 
“A função do desejo é resíduo por detrás do significante no sujeito.” 
Uma vez trazida à tona esta idéia de desejo, ponto nodal onde a pulsação do inconsciente esta ligada à realidade sexual, vai se introduzir a noção do ter­ceiro, que se apresentando sob a forma da lei, da interdi­ção, vai se fazer presente, vai incidir mesmo quando estamos a nível do processo primário, quando a descarga motora está impedida, levando como consequência, à uma regressão à percepção na tentativa da ratificação alucinatória. Nesse caso o que vemos é que se alucinam os objetos interditados, como no caso da pequena Anna Freud . 
Este terceiro, sem dúvidas, é o sujeito que deseja, e que deseja sexual­mente e que vai poder decidir da identidade desta percepção. É, pois, do ponto de onde o sujeito deseja  que vai ser dada a conotação da realidade na alucina­ção. (vide a teoria dos sonhos)
É a partir daí que podemos dizer, com Freud, que a diferença entre princí­pio do prazer e princípio de realidade é que este, o princípio da realidade, comporta um investimento de libido desexualizada. 
Talvez agora fique um pouco mais claro que é na transferência que vai se inscrever o peso da realidade sexual. Ou seja, aquilo que corre sob o que se passa a nível do discurso analí­tico (a -->$) e que sendo desconhecido em grande parte e, até um certo ponto, velada, vai tomar a forma de uma demanda.
                                 

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Do sintoma da identificação à identificação ao sinthoma


“Na transferência, o analista é o sujeito suposto saber e não está errado supô-lo, se ele sabe em que consiste o inconsciente, por ser um saber que se articula com alíngua, não enlaçando-se a este saber, o corpo que ali fala somente pelo real com que se goza”(1) 


Um sujeito entra em análise pela via da transferência e, consequentemente, com a instalação do Sujeito Suposto Saber que é o pivô disto que Freud chamou de sintoma analítico. Esta via coloca em jogo o traço do “Ideal do eu” e sua articulação com a identificação oferecida pelo “eu ideal”. Esta possibilidade de identificação, que se qualifica como identificação ao pai, acontece por que o Sujeito Suposto Saber só faz nomear, explicitar o efeito de sentido que vem do Outro. Em contra partida, o sem-sentido é o que permanece separado do Outro, ficando silencioso neste processo de proliferação do sentido a partir do Sujeito Suposto Saber. Este sem-sentido, que habita o núcleo da fantasia, é o responsável pela paralisia do sujeito diante de uma frase. No exemplo que Freud constrói, a frase é: “bate-se numa criança”. O sujeito se detêm diante dela, na ânsia de restabelecer um elo perdido entre o sem-sentido que ela aponta e o Outro do discurso. Esta frase, podemos dizer, vale por um significante unário, um S1, que leva o sujeito a inquietar-se, a buscar um outro significante que possa fazer as vezes de S2, estabelecendo um sentido qualquer. Mas, existe, neste ponto, um paradoxo, pois este S1, além de não pedir uma outra palavra ou outra frase, um S2, ele se recusa a isso.
Um Sujeito Suposto Saber, portanto, designa a presença de um significante, ou seja, indica um efeito de sentido, enquanto o que denominamos de sentido-gozado (jouis-sens) é o que não pode ser traduzido em significantes, mas desliza sob o sentido da cadeia significante impregnando as respostas do sujeito com o sem-sentido. Este sentido-gozado não é suposto, é experimentado. 
Para abordarmos este sentido-gozado, que está no cerne de nossa questão neste percurso que vai do sintoma da identificação à identificação ao sintoma, será necessário distinguir, do sentido-gozado, o que lhe permite acesso na teoria analítica: a fantasia. Fantasia que está, de alguma forma, articulada ao Outro.
Partindo do andar inferior do grafo: As(A), podemos seguir Lacan e buscar a posição do Outro no efeito de sentido, quando se trata da fantasia:

A/ ($<>a)
A   s(A)
Nestes dois esquemas, que nos fornece Miller em seu seminário Los Signos del Gozo, podemos perceber uma diferença fundamental que se apresenta em relação ao Outro. Enquanto na relação de sentido temos um Outro sem barra – o que indica a alienação - o Outro que corresponde à fantasia é um Outro modificado, um Outro barrado – que aponta para a separação. Nesta perspectiva a fantasia se coloca como o que responde, no sujeito, à angústia produzida pela presença do desejo do Outro. A barra sobre este Outro é que nos diz que ele é desejante. A fantasia pode, inclusive, ser considerada como a colocação em cena do desejo do Outro ou, mais especificamente, cena que nos diz como é a interpretação que se fez do desejo do Outro. É por isso, talvez, que podemos falar, com Lacan, que a fantasia fundamental é a colocação em cena dos significantes primordiais do sujeito.
Podemos ler o que acabamos de escrever, citando J-A. Miller quando se refere ao Grafo do desejo, da seguinte forma: “não existe prática analítica sem que o efeito de sentido esteja parasitado pelo efeito de sentido-gozado.”(2) Esta afirmação implica uma posição ética do analista que se pode traduzir, em termos freudianos, na atenção flutuante do analista que deverá ser capaz de captar o que se apresenta como sem sentido dentro de todo o sentido que a palavra se oferece à compreensão para, exatamente, evitar que o sintoma da identificação venha a se perpetuar. Assim, todas as vezes que manipulamos o significante produzimos sem sentido no sentido à compreender, ao mesmo tempo que o transformamos em sentido para gozar. Este sentido para gozar é o que vai nos tocar, de alguma forma, como por exemplo, no chiste, em cuja estrutura Lacan se inspirou para construir o  dispositivo do Passe. De uma maneira simples, podemos dizer que o momento do passe se define por uma transformação de um significante que, destacando-se do conjunto pleno de sentido, vai produzir um sem sentido, nos dizendo de uma pequena ponta do real que retorna ao sujeito, deslocando-o da posição que, até então, sustentava. Este é o momento em que se produz um significante novo capaz de transmitir o que do sem sentido, ou melhor ainda, o que deste encontro com o real foi elaborado. Em outras palavras, é o momento em que o corpo do significante permanece como um dizer que estava esquecido por detrás dos ditos.
Uma outra elaboração se impõe na medida em que trabalhamos com a perspectiva da fantasia como uma formação imaginária(3) que se veste do gozo, este da ordem do real:
($<>a)
a

Duas vertentes podem ser destacadas da fórmula da fantasia a partir da perspectiva do objeto a: uma diz respeito ao objeto a na sua função de dividir, a outra, inversamente, na sua função de complementar.
Se existe uma falta no Outro, e inclusive a falta do Outro, a fantasia estaria aí para fazer-se de tampão. Deste ponto de vista, a idéia de um atravessamento da fantasia iria implicar em ultrapassar isto que tampona a falta no Outro, para, consequentemente, acomodar-se a ela. 
Ora, a própria escritura da fórmula da fantasia, por Lacan, implica esta vertente do tamponamento, desta vez de um sujeito que, como falta a ser, se vê compelido a buscar uma figura imaginária, o objeto a, para complementá-lo. Até mesmo quando Lacan trata o objeto a como real, a problemática do tamponamento persiste. No entanto, passo a passo, uma outra vertente vai se impondo, inversa a precedente: o objeto não tampona, mas divide, barra. Esta divisão é que vai servir de ponto de partida ao discurso do analista, onde o objeto a vai aparecer como divisor e não como tampão:
a $
S2 // S1
Esta nova perspectiva nos abre caminho para esclarecer que: (cito J-A. Miller) “quando se trata do objeto a como divisor, quando o que está em jogo não é a encenação da fantasia, mas o gozo que a habita, não se pode afirmar que a é sentido-gozado, efeito de sentido, porque o escrevemos como causa. É quando assinala-se ao objeto a função de causa da divisão do sujeito que, a partir daí resultará sensível aos efeitos de sentido, pois a não será efeito. Deste modo não o convertemos em efeito de sentido, mas sim na referência dos efeitos de sentido e, mais ainda, na referência dos efeitos de sentido-gozado”(4).
O que se transmite do momento do passe, portanto, e que indica que um analista pôde advir no final de uma análise, é o corpo da letra. Assim, partindo do sintoma da identificação o sujeito vai desconstruindo a palavra até que ela possa assumir o valor de letra, o valor de significante enquanto escrito: S(A/) “O S, o verdadeiro significante de A - o que do significante permanece, uma vez que se eliminou a palavra”(5). Esta é a escritura que permite ao ser falante subtrair-se aos artifícios do inconsciente, ao mesmo tempo que deixa claro o que do inconsciente pode se traduzir por uma letra: “que o desciframento se resuma ao que constitui a cifra, ao que faz com que o sintoma seja, antes de mais nada, algo que não cessa de escrever-se do real…”(6) Assim posto, uma nova identificação pode acontecer, uma identificação que não é ao inconsciente. Identificar-se ao inconsciente está fora de cogitação pois, como nos diz Lacan, “o inconsciente permanece, o inconsciente permanece Outro”(7). A identificação da qual se trata, quando falamos em final de análise, é à letra do sinthoma, àquela que, uma vez rompido o circuito pre-estabelecido pelo sentido congelado da fantasia fundamental, poderá tornar-se um traço que desvela alíngua como corpo do simbólico(8) e enlaça o corpo do imaginário ao corpo do real fazendo consistir os três termos Real, Simbólico e Imaginário. Esse é o caminho que culmina na transformação da experiência da fantasia fundamental, em pulsão, ao restabelecer o vazio do lugar do objeto pulsional.

NOTAS:

1 - Lacan, J. “La tercera” in, Intervenciones y textos, n. 2, Ediciones Manantial, Bs.As. 1988. Pag. 89.
2 - Miller, J-A, Los signos del goce. Editorial Paidos, B. Aires, 1998, pag. 315. (Lição do dia 06 de maio de 1987
3 - Lacan, J. Subversão do Sujeito... JZE, Rio de Janeiro, 1998. Pags. 830-831
4 - Miller, J-A., “Los signos del goce”, Editorial Paidós, Buenos Aires, 1998. Pag. 318. . (Lição do dia 06 de maio de 1987
5 - Idem, Pag. 298.
6  Lacan, J. “La tercera”, op. cit. Pag. 96. 
7 - Lacan, J. “L’insu que sait de l’une-bevue s’aile a mourre”. Seminário 1976-1977, inédito.
8 - “Nada, certamente, nos dá, de entrada, a idéia do elemento, no sentido que creio haver mencionado a pouco, sobre o grão de areia ... a idéia do elemento, a idéia acerca de que isso somente podia se contar e, nesta ordem nada nos detém: por mais numerosos que sejam os grãos de areia, já o disse Arquimedes, por mais numerosos que sejam, sempre os podemos calibrar – pois bem, tudo isso nos vem somente a partir de algo que não tem melhor suporte que a letra. Porém significa, também, que não há letra sem alíngua. (Lacan, J. “La tercera”, op. cit. Pag. 95)