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segunda-feira, 8 de junho de 2020

Do sintoma da identificação à identificação ao sinthoma


“Na transferência, o analista é o sujeito suposto saber e não está errado supô-lo, se ele sabe em que consiste o inconsciente, por ser um saber que se articula com alíngua, não enlaçando-se a este saber, o corpo que ali fala somente pelo real com que se goza”(1) 


Um sujeito entra em análise pela via da transferência e, consequentemente, com a instalação do Sujeito Suposto Saber que é o pivô disto que Freud chamou de sintoma analítico. Esta via coloca em jogo o traço do “Ideal do eu” e sua articulação com a identificação oferecida pelo “eu ideal”. Esta possibilidade de identificação, que se qualifica como identificação ao pai, acontece por que o Sujeito Suposto Saber só faz nomear, explicitar o efeito de sentido que vem do Outro. Em contra partida, o sem-sentido é o que permanece separado do Outro, ficando silencioso neste processo de proliferação do sentido a partir do Sujeito Suposto Saber. Este sem-sentido, que habita o núcleo da fantasia, é o responsável pela paralisia do sujeito diante de uma frase. No exemplo que Freud constrói, a frase é: “bate-se numa criança”. O sujeito se detêm diante dela, na ânsia de restabelecer um elo perdido entre o sem-sentido que ela aponta e o Outro do discurso. Esta frase, podemos dizer, vale por um significante unário, um S1, que leva o sujeito a inquietar-se, a buscar um outro significante que possa fazer as vezes de S2, estabelecendo um sentido qualquer. Mas, existe, neste ponto, um paradoxo, pois este S1, além de não pedir uma outra palavra ou outra frase, um S2, ele se recusa a isso.
Um Sujeito Suposto Saber, portanto, designa a presença de um significante, ou seja, indica um efeito de sentido, enquanto o que denominamos de sentido-gozado (jouis-sens) é o que não pode ser traduzido em significantes, mas desliza sob o sentido da cadeia significante impregnando as respostas do sujeito com o sem-sentido. Este sentido-gozado não é suposto, é experimentado. 
Para abordarmos este sentido-gozado, que está no cerne de nossa questão neste percurso que vai do sintoma da identificação à identificação ao sintoma, será necessário distinguir, do sentido-gozado, o que lhe permite acesso na teoria analítica: a fantasia. Fantasia que está, de alguma forma, articulada ao Outro.
Partindo do andar inferior do grafo: As(A), podemos seguir Lacan e buscar a posição do Outro no efeito de sentido, quando se trata da fantasia:

A/ ($<>a)
A   s(A)
Nestes dois esquemas, que nos fornece Miller em seu seminário Los Signos del Gozo, podemos perceber uma diferença fundamental que se apresenta em relação ao Outro. Enquanto na relação de sentido temos um Outro sem barra – o que indica a alienação - o Outro que corresponde à fantasia é um Outro modificado, um Outro barrado – que aponta para a separação. Nesta perspectiva a fantasia se coloca como o que responde, no sujeito, à angústia produzida pela presença do desejo do Outro. A barra sobre este Outro é que nos diz que ele é desejante. A fantasia pode, inclusive, ser considerada como a colocação em cena do desejo do Outro ou, mais especificamente, cena que nos diz como é a interpretação que se fez do desejo do Outro. É por isso, talvez, que podemos falar, com Lacan, que a fantasia fundamental é a colocação em cena dos significantes primordiais do sujeito.
Podemos ler o que acabamos de escrever, citando J-A. Miller quando se refere ao Grafo do desejo, da seguinte forma: “não existe prática analítica sem que o efeito de sentido esteja parasitado pelo efeito de sentido-gozado.”(2) Esta afirmação implica uma posição ética do analista que se pode traduzir, em termos freudianos, na atenção flutuante do analista que deverá ser capaz de captar o que se apresenta como sem sentido dentro de todo o sentido que a palavra se oferece à compreensão para, exatamente, evitar que o sintoma da identificação venha a se perpetuar. Assim, todas as vezes que manipulamos o significante produzimos sem sentido no sentido à compreender, ao mesmo tempo que o transformamos em sentido para gozar. Este sentido para gozar é o que vai nos tocar, de alguma forma, como por exemplo, no chiste, em cuja estrutura Lacan se inspirou para construir o  dispositivo do Passe. De uma maneira simples, podemos dizer que o momento do passe se define por uma transformação de um significante que, destacando-se do conjunto pleno de sentido, vai produzir um sem sentido, nos dizendo de uma pequena ponta do real que retorna ao sujeito, deslocando-o da posição que, até então, sustentava. Este é o momento em que se produz um significante novo capaz de transmitir o que do sem sentido, ou melhor ainda, o que deste encontro com o real foi elaborado. Em outras palavras, é o momento em que o corpo do significante permanece como um dizer que estava esquecido por detrás dos ditos.
Uma outra elaboração se impõe na medida em que trabalhamos com a perspectiva da fantasia como uma formação imaginária(3) que se veste do gozo, este da ordem do real:
($<>a)
a

Duas vertentes podem ser destacadas da fórmula da fantasia a partir da perspectiva do objeto a: uma diz respeito ao objeto a na sua função de dividir, a outra, inversamente, na sua função de complementar.
Se existe uma falta no Outro, e inclusive a falta do Outro, a fantasia estaria aí para fazer-se de tampão. Deste ponto de vista, a idéia de um atravessamento da fantasia iria implicar em ultrapassar isto que tampona a falta no Outro, para, consequentemente, acomodar-se a ela. 
Ora, a própria escritura da fórmula da fantasia, por Lacan, implica esta vertente do tamponamento, desta vez de um sujeito que, como falta a ser, se vê compelido a buscar uma figura imaginária, o objeto a, para complementá-lo. Até mesmo quando Lacan trata o objeto a como real, a problemática do tamponamento persiste. No entanto, passo a passo, uma outra vertente vai se impondo, inversa a precedente: o objeto não tampona, mas divide, barra. Esta divisão é que vai servir de ponto de partida ao discurso do analista, onde o objeto a vai aparecer como divisor e não como tampão:
a $
S2 // S1
Esta nova perspectiva nos abre caminho para esclarecer que: (cito J-A. Miller) “quando se trata do objeto a como divisor, quando o que está em jogo não é a encenação da fantasia, mas o gozo que a habita, não se pode afirmar que a é sentido-gozado, efeito de sentido, porque o escrevemos como causa. É quando assinala-se ao objeto a função de causa da divisão do sujeito que, a partir daí resultará sensível aos efeitos de sentido, pois a não será efeito. Deste modo não o convertemos em efeito de sentido, mas sim na referência dos efeitos de sentido e, mais ainda, na referência dos efeitos de sentido-gozado”(4).
O que se transmite do momento do passe, portanto, e que indica que um analista pôde advir no final de uma análise, é o corpo da letra. Assim, partindo do sintoma da identificação o sujeito vai desconstruindo a palavra até que ela possa assumir o valor de letra, o valor de significante enquanto escrito: S(A/) “O S, o verdadeiro significante de A - o que do significante permanece, uma vez que se eliminou a palavra”(5). Esta é a escritura que permite ao ser falante subtrair-se aos artifícios do inconsciente, ao mesmo tempo que deixa claro o que do inconsciente pode se traduzir por uma letra: “que o desciframento se resuma ao que constitui a cifra, ao que faz com que o sintoma seja, antes de mais nada, algo que não cessa de escrever-se do real…”(6) Assim posto, uma nova identificação pode acontecer, uma identificação que não é ao inconsciente. Identificar-se ao inconsciente está fora de cogitação pois, como nos diz Lacan, “o inconsciente permanece, o inconsciente permanece Outro”(7). A identificação da qual se trata, quando falamos em final de análise, é à letra do sinthoma, àquela que, uma vez rompido o circuito pre-estabelecido pelo sentido congelado da fantasia fundamental, poderá tornar-se um traço que desvela alíngua como corpo do simbólico(8) e enlaça o corpo do imaginário ao corpo do real fazendo consistir os três termos Real, Simbólico e Imaginário. Esse é o caminho que culmina na transformação da experiência da fantasia fundamental, em pulsão, ao restabelecer o vazio do lugar do objeto pulsional.

NOTAS:

1 - Lacan, J. “La tercera” in, Intervenciones y textos, n. 2, Ediciones Manantial, Bs.As. 1988. Pag. 89.
2 - Miller, J-A, Los signos del goce. Editorial Paidos, B. Aires, 1998, pag. 315. (Lição do dia 06 de maio de 1987
3 - Lacan, J. Subversão do Sujeito... JZE, Rio de Janeiro, 1998. Pags. 830-831
4 - Miller, J-A., “Los signos del goce”, Editorial Paidós, Buenos Aires, 1998. Pag. 318. . (Lição do dia 06 de maio de 1987
5 - Idem, Pag. 298.
6  Lacan, J. “La tercera”, op. cit. Pag. 96. 
7 - Lacan, J. “L’insu que sait de l’une-bevue s’aile a mourre”. Seminário 1976-1977, inédito.
8 - “Nada, certamente, nos dá, de entrada, a idéia do elemento, no sentido que creio haver mencionado a pouco, sobre o grão de areia ... a idéia do elemento, a idéia acerca de que isso somente podia se contar e, nesta ordem nada nos detém: por mais numerosos que sejam os grãos de areia, já o disse Arquimedes, por mais numerosos que sejam, sempre os podemos calibrar – pois bem, tudo isso nos vem somente a partir de algo que não tem melhor suporte que a letra. Porém significa, também, que não há letra sem alíngua. (Lacan, J. “La tercera”, op. cit. Pag. 95)

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