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segunda-feira, 15 de junho de 2020

Sobre a realidade psíquica e o desejo do analista - Revisitando o Seminário XI

Vou partir da noção de realidade psíquica como realidade sexual para saber da pulsão e seu circuito, com a intenção de esclarecer o que está escrito ao final do Seminário XI: “... após a distinção do sujeito em relação ao objeto“a", a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão”.
O incons­ciente, enquanto um campo aberto por Freud aponta para o “não nascido”, para uma brecha, para “uma forma desconhecida do Un, do Unbewusste, cujo limite é o Unbegriff - não um não conceito, mas o conceito da falta”. 
Em outras palavras, é a partir do recalque originário, que trouxe como con­sequência a impossibilidade de um primeiro traço sofrer uma tra­dução, que se criou um pequeno intervalo entre os significantes que passaram a se ordenar a partir da história de cada sujeito. Esta ordenação não é aleató­ria e vai se sujeitar a uma estruturação que não é outra, senão a da linguagem. Isto é o que foi acres­centado ao legado freudiano: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” o que autorizou Lacan a dizer que, “se o campo é freudiano, o inconsciente é lacaniano”.
Ora, é exatamente esta brecha, este intervalo, o responsável pela repetição. A repetição, este outro con­ceito clínico importante, se escla­rece sob os termos aristotélicos de automaton e  tiquê: o automaton representado, de maneira sucinta, pela cadeia significante e a tiquê se apresentando nos seus intervalos como um encontro sempre faltoso.
Na verdade, este encontro sempre faltoso é que vai designar o lugar do Real. Lugar este que se instaura pelo trauma inicial e que vai se constituir na fantasia fundamental, na medida que a fantasia funda­mental é esta tela que vai dissimular o que aí permanece como motor da repetição. 
Assim, se colocando entre o sonho e o despertar, este Real pode se repre­sentar pelo acidente como o da vela que tomba, no sonho relatado pela paciente de Freud, ou pelo pequeno barulho da batida à porta, descrito no seminário XI, ou ainda por este pouco de realidade que vai nos dizer que não so­nhamos mais. “Mas, por outro lado, esta realidade não é pouca, pois isso que nos acorda é a outra realidade es­condida por detrás da falta disso que se constrói no lugar de representação - é o “Trieb”, nos diz Freud...”Trieb a vir”.
Por outro lado temos o olhar como objeto pequeno a, a partir da divisão entre o olho e o olhar. Esta divisão que nos interessa, nada tem a ver com as formas impostas pelo mundo, em direção às quais vai nos dirigir a fenomeno­logia, no que diz respeito ao visível e o invisível. “o olhar vai apresentar-se a nós sob a forma de uma estranha contingência simbólica disso que encontramos no horizonte e como fim de nossa experiência, a saber, a falta constitutiva da angús­tia de castração”.
Divisão entre olho e olhar é como se manifesta a pulsão ao nível do campo escópico. Em outras palavras, podemos dizer que esta divisão se demonstra na medida em que olhar, en­quanto objeto a, vem simbolizar a falta central, expressa no fenômeno da castração, e se reduz, por sua natureza, a uma função punti­forme, evanescente, deixando o sujeito na ignorância disso que existe para além da aparência”. 
Uma outra questão presente no Seminário XI passa pela certeza cartesiana, e coloca em questão a verdade do “eu minto”, para constatar que um entrelaçamento “entre o campo do inconsciente e o momento de Freud, onde este campo se revelou”. Campo este que não é qualquer e que se organiza como um campo magnético, onde sua subsistência se assegura por “ser um campo que, por sua natureza, se perde”. É aqui que a presença do analista vai se tornar irredutível, como testemunha desta perda ... que é “uma perda seca, que não se salda por nenhum ganho” 
Sustentado no que acabo de citar, e configurando a sua nova aliança com a descoberta de Freud, Lacan vai nos dizer que: ”isto que é a causa do inconsciente deve ser fundamen­talmente concebida como uma causa perdida. E é essa a única chance que temos de ganhá-la”. 
Uma brecha, uma falha na tradução de um traço, um conceito de falta (Unbewusste - Unbegriff), um lugar que se abre à representação, ao significante enquanto Vorstellunngsrepräsentantz e que vai promo­ver a instalação de uma tela protetora na medida em que um sujeito, constituído pelos efeitos da fala vai estabelecer uma relação com este resto que permaneceu sem tradução. A partir daí uma realidade vai se constituir e só a análise vai ter condições de sabê-la pois, é na transferência que esta realidade vai ser colocada em ato. E, ao analista, cabe apenas persistir como testemunha desta perda pura em que se cons­titui o inconsciente a cada vez que um sujeito se apresenta como consequência dos efeitos da fala. Sujeito que estará, a partir daí, para sempre representado por um significante, para outro significante. E será apenas na psicanálise que se pode constatar esta presença da realidade do inconsciente, ”que nossa intervenção não somente traz à luz, mas até um certo ponto a engendra”. E a engendra, pela via da trans­ferência. A partir dessa afirmação, um passo a mais pode ser dado: “A realidade do inconsci­ente é ... a realidade sexual”.
Impossível negar os progressos da ciência no que diz respeito à sexuali­dade. “Hoje sabemos um pouco mais sobre o sexo, do que em 1900”, assim com também é inegável que a espécie só subsiste sob a forma de seus indivíduos que, através da reprodução vão perpetuá-la até sua ex­tinção. Desta forma, um indivíduo de qualquer espécie é transitório e mortal, o que nos leva a associar, como o fez Freud no texto “Para Além do Princípio do Prazer”, sexualidade e morte. Em algumas espécies vemos isto se demonstrar de forma imediata e drástica. 
Para além das funções de reprodução se associam à diferenciação sexual caracteres e funções secundárias que vão ser bem delimitadas pelo estruturalismo moderno. Quando se colocam essas características e fun­ções sexuais em oposição à geração natural, à linhagem biológica, para se dizer das trocas fundamentais, estas se dão ao nível do significante, nos termos de uma combinatória. 
O trabalho desenvolvido por Levi-Strauss nos coloca  diante da seguinte  questão:  o significante não teria chegado ao mundo do homem quando da integração desta combi­natória à realidade sexual? 
Foi só depois que, pela realidade sexual, o significante entrou no mundo, que o homem começou a pensar.
Há, sem dúvidas, uma afinidade entre os enigmas da sexualidade com o jogo dos significantes, aí incluído o que fica excluído como resto. 
Neste ponto do Seminário XI é feita uma alusão às ciências primitivas como demonstração desta afini­dade e, ilustrando esta sua afirmação com a as­trologia chinesa, nos diz que “a ciência primitiva seria, ...uma espécie de técnica sexual”. 
Ao se questionar  sobre aonde nos leva todo este discurso e se devemos considerar o inconsciente como uma remi­niscência das funções arcaicas do pensamento com a realidade sexual,  passamos rapidamente pela tentativa junguiana de eliminar o conceito da libido, exaltando esta conjunção histórica sob a égide dos arquétipos. Ora, “a libido é a presença efetiva, como tal, do desejo ... que não é uma substância, que está aí no nível do processo primário, e que comanda, até mesmo, a maneira de nossa abordagem”. 
A introdução, como tal, do desejo, vai abrir espaço para  começar a seguinte discussão: “É ao nível da análise que deverá se revelar isso que aí é desse ponto nodal pelo qual a pulsação do inconsciente está ligada à realidade sexual. Esse ponto nodal se chama desejo. (...) Desejo este que se situa na dependência da de­manda - a qual, por se articular em significantes, deixa um resto metonímico que corre sob ela, elemento que não é indeterminado, que é uma condição, ao mesmo tempo, absoluta e inapreensível, elemento neces­sariamente em impasse, impossível, desconhecido, elemento que se chama desejo. É isto que faz a junção com o campo definido por Freud como aquele da instância sexual ao nível do pro­cesso primário”. 
“A função do desejo é resíduo por detrás do significante no sujeito.” 
Uma vez trazida à tona esta idéia de desejo, ponto nodal onde a pulsação do inconsciente esta ligada à realidade sexual, vai se introduzir a noção do ter­ceiro, que se apresentando sob a forma da lei, da interdi­ção, vai se fazer presente, vai incidir mesmo quando estamos a nível do processo primário, quando a descarga motora está impedida, levando como consequência, à uma regressão à percepção na tentativa da ratificação alucinatória. Nesse caso o que vemos é que se alucinam os objetos interditados, como no caso da pequena Anna Freud . 
Este terceiro, sem dúvidas, é o sujeito que deseja, e que deseja sexual­mente e que vai poder decidir da identidade desta percepção. É, pois, do ponto de onde o sujeito deseja  que vai ser dada a conotação da realidade na alucina­ção. (vide a teoria dos sonhos)
É a partir daí que podemos dizer, com Freud, que a diferença entre princí­pio do prazer e princípio de realidade é que este, o princípio da realidade, comporta um investimento de libido desexualizada. 
Talvez agora fique um pouco mais claro que é na transferência que vai se inscrever o peso da realidade sexual. Ou seja, aquilo que corre sob o que se passa a nível do discurso analí­tico (a -->$) e que sendo desconhecido em grande parte e, até um certo ponto, velada, vai tomar a forma de uma demanda.
                                 

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