“Na transferência, o analista é o sujeito suposto saber e não está errado supô-lo, se ele sabe em que consiste o inconsciente, por ser um saber que se articula com alíngua, não enlaçando-se a este saber, o corpo que ali fala somente pelo real com que se goza”(1)
Em seu primeiro encontro com o Outro, consequência da incidência de um significante, o sujeito tem que lidar com um real que não se subjetiva. Ponto de opacidade, nos diz Lacan, ponto de silêncio que indica o lugar onde poderá se edificar a determinação significante capaz de escrever o fenômeno sintomático, na esperança de se dar conta da impossibilidade que se instala na contingência deste primeiro encontro.
O sintoma é o que vai representar, manifestar, significar a verdade deste encontro. Verdade que nos diz do real do gozo que é produzido pela inclusão do significante traumático no sujeito.
O sintoma pode ser tomado em duas vertentes: por um lado temos o sintoma como metáfora, na medida em que faz valer um significante do traumatismo, um significante que vai funcionar como um índex da memória do que foi encontrado como traumático. O sintoma como metáfora é um sintoma significante que está conectado ao gozo, sem sê-lo. Por outro lado, se seguirmos o desenvolvimento da teorização de Lacan, vamos tratar o sintoma como função da letra, como signo desta distância insuplantável com o real. É fundamental distinguirmos, aqui, a letra do significante pois esta se relaciona diretamente ao gozo, enquanto o significante está referido ao sentido gozado (jouis-sens).
Um sujeito entra em análise pela via da transferência e, consequentemente, com a instalação do Sujeito Suposto Saber que é o pivô disto que Freud chamou de sintoma analítico. Esta via coloca em jogo o traço do “Ideal do eu” e sua articulação com a identificação oferecida pelo “eu ideal”. Esta possibilidade de identificação, que se qualifica como identificação ao pai, acontece por que o Sujeito Suposto Saber só faz nomear, explicitar o efeito de sentido que vem do Outro. Em contra partida, o sem-sentido é o que permanece separado do Outro, ficando silencioso neste processo de proliferação do sentido a partir do Sujeito Suposto Saber. Este sem-sentido, que habita o núcleo da fantasia, é o responsável pela paralisia do sujeito diante de uma frase. No exemplo que Freud constrói, a frase é: “bate-se numa criança”. O sujeito se detêm diante dela, na ânsia de restabelecer um elo perdido entre o sem-sentido que ela aponta e o Outro do discurso. Esta frase, podemos dizer, vale por um significante unário, um S1, que leva o sujeito a inquietar-se, a buscar um outro significante que possa fazer as vezes de S2, estabelecendo um sentido qualquer. Mas, existe, neste ponto, um paradoxo, pois este S1, além de não pedir uma outra palavra ou outra frase, um S2, ele se recusa a isso.
Um Sujeito Suposto Saber, portanto, designa a presença de um significante, ou seja, indica um efeito de sentido, enquanto o que denominamos de sentido-gozado (jouis-sens) é o que não pode ser traduzido em significantes, mas desliza sob o sentido da cadeia significante impregnando as respostas do sujeito com o sem-sentido. Este sentido-gozado não é suposto, mas experimentado. Quando acontece de alguém experimentá-lo, apenas julga que está aí e diz: é isso!
Neste ponto é fundamental esclarecermos que, seja qual for a vertente do sintoma que escolhermos, por um lado um “memorial de gozo” (o sintoma como metáfora), e por outro um “cativador de gozo” (o sintoma como função da letra), - até mesmo quando estamos falando da transferência como sintoma analítico -, vamos lidar com um sinal de que alguma coisa não anda pois há um real que se coloca como uma pedra no caminho do sujeito: o real da privação que se explicita no fato de que homens e mulheres, desde sempre, estão privados do elemento que poderia propiciar a escritura da relação sexual.
Esta impossibilidade, que não cessa de se escrever, promove o sintoma como única possibilidade de se fazer laço, ao mesmo tempo que se permite uma leitura, uma vez que ele participa de uma escritura, função da letra. Por isso J-A. Miller, em seu curso “O Outro que não existe…”(2) nos diz que “o sintoma é uma mentira sobre o real ... especialmente um mentira sobre o real que a relação sexual não existe. (...) É bem por isso que Lacan pode dizer que é o sintoma que nós colocamos no lugar deste Outro que não existe. E, especialmente, é o sintoma que nós colocamos no lugar do outro sexo (...) talvez o único Outro que existe, é o sintoma.”
Há, portanto, um vazio sobre o qual o sintoma se apoia e vai construir seu envelope formal. Vazio que se instala no ponto mesmo em que a presença de um gozo singular, escandaloso foi recusado e recalcado pelo sujeito (Lacan nos lembra, em RSI(3), “O neurótico é alguém que não chega a atingir o que é para ele a miragem onde ele encontrará satisfação, a saber, uma perversão. Uma neurose é uma perversão que falhou - c’est une perversion ratée). Isto que é recalcado, Freud definiu como sendo a pulsão que se apresenta com seu caráter intratável, rebelde e refratário ao laço social. No entanto, este mecanismo falha e o sintoma vai surgir como uma forma de inscrever o que insiste como marcas da singularidade do sujeito e de suas fixações.
O sintoma, assim como a cena da fantasia fundamental, nada mais são do que envelopes da pulsão, modalidades de seu exercício, formas que o sujeito busca para apreender um objeto, no campo do Outro, que lhe sirva de parceiro(4).
Este objeto, que Lacan denominou “pequeno a”, se define a partir dos orifícios do corpo e marcam o ponto por onde o sentido não se deixa apreender nas malhas do discurso. É este objeto pequeno “a” que se apresenta no vazio em torno do qual a pulsão faz seu circuito desenhando uma escritura que situa a repetição do sintoma.
Agora a clínica:
Uma cena que envolveu o ato de escrever e um olhar definiram um ponto de fixação de gozo, determinando um caminho e estabelecendo uma forma sintomática.
A busca da satisfação passava pelo conquista de ideais determinados pela demanda do Outro que, na impossibilidade de serem atendidas, deixavam permanecer um resto que se repetia no olhar de uma mulher. A marca da falta, presente neste olhar, era buscada como único sinal da existência de um Outro que pudesse ser inscrito na possibilidade da relação sexual. Sintoma que se fez valer, criando uma série cujo ponto de conclusão era postergado infinitamente.
Lacan nos diz que “O Outro é uma matriz com duas entradas”(5). O objeto pequeno “a” constitui uma destas entradas. E a outra é o Um do significante. Dissolver a presença deste Outro era fundamental para que o sujeito pudesse se livrar das diretrizes que determinavam a fixação do circuito pulsional.
O sintoma, por comportar um efeito de sentido, sofre a ação da interpretação. O seu valor de gozo, no entanto, é antinômico ao sentido, só se deixando apreender pelo equívoco, de onde se deduz a função da letra. A redução do sintoma à letra é uma forma de renovar o estatuto do simbólico, resumindo a pulsão à função de furo.
Podemos ler o que acabamos de escrever,
A/ —>($<>a)
A —> s(A)
tomando o Grafo do Desejo como referência, da seguinte forma: “não existe prática analítica sem que o efeito de sentido esteja parasitado pelo efeito de sentido-gozado.”(6) Esta afirmação implica uma posição ética do analista que se traduz nos seguintes termos: mais além da teoria que sustenta sua prática, o analista sempre se orienta pelo que pode perceber como efeito de sentido-gozado e que se apresenta, simplesmente, como antinômico ao efeito de sentido que se compreende. Em outras palavras, a atenção flutuante do analista deverá ser capaz de captar o que se apresenta como sem sentido dentro de todo o sentido que a palavra nos oferece à compreensão para, exatamente, evitar que o sintoma da identificação venha a se perpetuar. Assim, todas as vezes que manipulamos o significante produzimos sem sentido no sentido à compreender, ao mesmo tempo que o transformamos em sentido para gozar. Este sentido para gozar é o que vai nos tocar, de alguma forma, como por exemplo, no chiste, em cuja estrutura Lacan se inspirou para construir o dispositivo do Passe. De uma maneira simples, podemos dizer que o momento do passe se define por uma transformação de um significante que, destacando-se do conjunto pleno de sentido, vai produzir um sem sentido, nos dizendo de uma pequena ponta do real que retorna ao sujeito, deslocando-o da posição que, até então, sustentava. Este é o momento em que se produz um significante novo capaz de transmitir o que do sem sentido, ou melhor ainda, o que deste encontro com o real foi elaborado. Em outras palavras, é o momento em que o corpo do significante permanece como um dizer que estava esquecido por trás dos ditos.
Foi sustentando-se nesta ética que a interpretação do analista, (Me refiro aqui ao pequeno fragmento exposto acima), pôde apontar o vazio e, assim, esclarecer o circuito que delimitava o objeto e que estava velado pela interpretação que o inconsciente havia feito do encontro traumático com o Outro sexo.
Este objeto, desde o congelamento do sentido na cena da fantasia fundamental, passou ser incrustado em todos aqueles que apresentassem um traço que pudesse repetir a cena fundamental, nos dizendo de um ponto de fixação pulsional. Ora, a pulsão é a força real da fantasia ao mesmo tempo que denuncia o limite do sintoma à ação do simbólico. O resto que escapa, foge, retorna sob a forma de mal estar e relança o vetor pulsional sempre na direção determinada pelo imperativo do super-eu. Desfazer este circuito, devolvendo ao objeto sua característica de ser qualquer um, mobilizando o seu valor de gozo é um dos objetivos de uma análise.
Neste seu objetivo, a estratégia da qual se utiliza a psicanálise consiste em oferecer, àquele a busca como solução, a possibilidade de que esta cena se repita na transferência, ao instalar, no ponto de não saber, um sujeito suposto saber da significação de seu sofrimento. Esta estratégia, se utiliza do fato de que o inconsciente existe e sua existência se sustenta, exatamente no fato da inexistência da relação sexual e que a sexualidade só se representa no inconsciente pela pulsão. Utilizando-se do objeto pequeno ‘a’, enquanto agalma, pode-se ter entrada ao Outro, fazendo possível a construção desta cena fundamental, a partir mesmo da determinação de uma constante através da qual o sujeito se relaciona ao real do gozo. Balizada por esta construção, uma interpretação operou separando S1 do S2 e criou um intervalo onde reinava a opacidade própria do gozo do sintoma. Este foi o momento em que aconteceu a produção de um significante que indexou a falta, um nome que estabeleceu novos rumos, fazendo desaparecer os pontos de suspensão sintomáticas e fazendo intervir a letra como borda ao real.
O que se transmite do momento do passe e que indica que um analista pode advir no final de uma análise, é o corpo da letra. Assim, partindo do sintoma da identificação, o sujeito vai desconstruindo a palavra até que ela possa assumir o valor de letra, o valor de significante enquanto escrito: S(A/). O $, o verdadeiro significante de A - o que do significante permanece, uma vez que se eliminou a palavra. Esta é a escritura que permite ao ser falante subtrair-se aos artifícios do inconsciente, ao mesmo tempo que deixa claro o que do inconsciente pode se traduzir por uma letra: “que o deciframento se resuma ao que constitui a cifra, ao que faz com que o sintoma seja, antes de mais nada, algo que não cessa de escrever-se do real…”(7) Assim posto, uma nova identificação pode acontecer, uma identificação que não é ao inconsciente. Identificar-se ao inconsciente está fora de cogitação pois, como nos diz Lacan, “o inconsciente permanece, o inconsciente permanece Outro”. A identificação da qual se trata, quando falamos em final de análise, é à letra do sintoma, àquela que, uma vez rompido o circuito pre-estabelecido pelo sentido congelado da fantasia fundamental, poderá tornar-se um traço que desvela alíngua como corpo do simbólico(8) e enlaça o corpo do imaginário ao corpo do real fazendo consistir os três termos Real, Simbólico e Imaginário(9). Esse é o caminho que culmina na transformação da experiência da fantasia fundamental, em pulsão, ao restabelecer o vazio do lugar do objeto pulsional.
O amor, resposta ao real da não relação sexual, sustentou o trabalho da transferência nesta relação ao Outro do saber, e se esvaziou pela ação da interpretação que desfez o mistério da diferença sexual. Este foi o momento em que o “analisante fez do objeto ‘a’ o representante da representação de seu analista”(10), abrindo uma nova relação ao saber e ao consentimento com seu modo próprio de gozo.
Esta passagem estabeleceu uma subversão do sintoma que, a partir de então, passou a se sustentar na alienação, não mais a um Outro do saber, um Outro sem barra, como define Lacan, mas sim ao Outro barrado, marcado pelo silêncio da pulsão. Podemos dizer que aconteceu uma extração do objeto “a”, como causa de desejo, a partir do gozo que sustentava o sintoma. Como consequência o sujeito, por querer o que deseja, assumiu uma responsabilidade onde antes se esperava uma garantia. Responsabilidade que se verifica como a única posição política possível. Responsabilidade definida, por J-A. Miller da seguinte forma: “Se tudo fosse calculado, então não teríamos mais responsabilidade. Há uma responsabilidade, justamente, porque há um furo e que é necessário cobri-lo pelo ato, decidindo-se em função de seu julgamento íntimo”.
Onde havia o trabalho de transferência, portanto, aconteceu a transferência de trabalho, dizendo de uma nova aliança com a pulsão. Esta nova aliança só pôde acontecer pela revitalização da marca (letra) do Nome Próprio propiciando um “saber aí fazer com o sintoma”. “Saber aí fazer com o sintoma” se constitui numa das fórmulas possíveis da liberdade. O ‘aí’ marca a suspensão de um ser que vai nomear o saber ou o fazer. É um ser que nomeia o ‘aí’ como o que vai para além de seu nome próprio, um nome para além da imagem de seu nome próprio. (...) É exatamente do nome próprio que nos fala Lacan a partir da fórmula “saber aí fazer com seu sintoma.
Produzido um nome, retificado o circuito pulsional, foi possível dizer ao analista que o endereçamento do sujeito não mais se dirigia a ele, mas sim ao trabalho de transmissão, estabelecendo os parâmetros de uma nova parceria.
Notas:
1 - Lacan, J. “La tercera” in, Intervenciones y textos, n. 2, Ediciones Manantial, Bs.As. 1988. Pag. 89.
2 - Miller, J-A. L”Autre que n’existe pas et ses comités de éthique” Lição de 18/12/96,
3 - Lacan, J. “RSI”, Lição de 18/02/75.
4 - Miller, J-A. L”Autre que n’existe pas…
5 - Lacan, J. “RSI” Lição de 21/01/1975
6 - Miller, J-A, Los signos del goce. Editorial Paidos, B. Aires, 1998, pag. 315.
7 - Lacan, J. “La tercera”, op. cit. Pag. 96.
8 - “Nada, certamente, nos dá, de entrada, a idéia do elemento, no sentido que creio haver mencionado a pouco, sobre o grão de areia ... a idéia do elemento, a idéia acerca de que isso somente podia se contar e, nesta ordem nada nos detém: por mais numerosos que sejam os grãos de areia, já o disse Arquimedes, por mais numerosos que sejam, sempre os podemos calibrar – poi
s bem, tudo isso nos vem somente a partir de algo que não tem melhor suporte que a letra. Porém significa, também, que não há letra sem alíngua”.
9 - “O significante estando integralmente definido por seu lugar, é impossível de deslocá-lo; mas é possível deslocar uma letra.O significante advém somente da instância simbólica; mas a letra enlaça R,S e I, que são mutualmente heterogêneos”. Milner, J.C.,- J. Lacan , Penseé et savoir, in Connaissez-vous Lacan , pag 195
10 - Lacan, J. “Proposition du 9 october 1967.