Total de visualizações de página

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Os destinos do amor ao final de uma análise

“Na transferência, o analista é o sujeito suposto saber e não está errado supô-lo, se ele sabe em que consiste o inconsciente, por ser um saber que se articula com alíngua, não enlaçando-se a este saber, o corpo que ali fala somente pelo real com que se goza”(1)


Em seu primeiro encontro com o Outro, consequência da incidência de um significante, o sujeito tem que lidar com um real que não se subjetiva. Ponto de opacidade, nos diz Lacan, ponto de silêncio que indica o lugar onde poderá se edificar a determinação significante capaz de escrever o fenômeno sintomático, na esperança de se dar conta da impossibilidade que se instala na contingência deste primeiro encontro. 
O sintoma é o que vai representar, manifestar, significar a verdade deste encontro. Verdade que nos diz do real do gozo que é produzido pela inclusão do significante traumático no sujeito.
O sintoma pode ser tomado em duas vertentes: por um lado temos o sintoma como metáfora, na medida em que faz valer um significante do traumatismo, um significante que vai funcionar como um índex da memória do que foi encontrado como traumático. O sintoma como metáfora é um sintoma significante que está conectado ao gozo, sem sê-lo. Por outro lado, se seguirmos o desenvolvimento da teorização de Lacan, vamos tratar o sintoma como função da letra, como signo desta distância insuplantável com o real. É fundamental distinguirmos, aqui, a letra do significante pois esta se relaciona diretamente ao gozo, enquanto o significante está referido ao sentido gozado (jouis-sens). 
Um sujeito entra em análise pela via da transferência e, consequentemente, com a instalação do Sujeito Suposto Saber que é o pivô disto que Freud chamou de sintoma analítico. Esta via coloca em jogo o traço do “Ideal do eu” e sua articulação com a identificação oferecida pelo “eu ideal”. Esta possibilidade de identificação, que se qualifica como identificação ao pai, acontece por que o Sujeito Suposto Saber só faz nomear, explicitar o efeito de sentido que vem do Outro. Em contra partida, o sem-sentido é o que permanece separado do Outro, ficando silencioso neste processo de proliferação do sentido a partir do Sujeito Suposto Saber. Este sem-sentido, que habita o núcleo da fantasia, é o responsável pela paralisia do sujeito diante de uma frase. No exemplo que Freud constrói, a frase é: “bate-se numa criança”. O sujeito se detêm diante dela, na ânsia de restabelecer um elo perdido entre o sem-sentido que ela aponta e o Outro do discurso. Esta frase, podemos dizer, vale por um significante unário, um S1, que leva o sujeito a inquietar-se, a buscar um outro significante que possa fazer as vezes de S2, estabelecendo um sentido qualquer. Mas, existe, neste ponto, um paradoxo, pois este S1, além de não pedir uma outra palavra ou outra frase, um S2, ele se recusa a isso.
Um Sujeito Suposto Saber, portanto, designa a presença de um significante, ou seja, indica um efeito de sentido, enquanto o que denominamos de sentido-gozado (jouis-sens) é o que não pode ser traduzido em significantes, mas desliza sob o sentido da cadeia significante impregnando as respostas do sujeito com o sem-sentido. Este sentido-gozado não é suposto, mas experimentado. Quando acontece de alguém experimentá-lo, apenas julga que está aí e diz: é isso!
Neste ponto é fundamental esclarecermos que, seja qual for a vertente do sintoma que escolhermos, por um lado um “memorial de gozo” (o sintoma como metáfora), e por outro um “cativador de gozo” (o sintoma como função da letra), - até mesmo quando estamos falando da transferência como sintoma analítico -, vamos lidar com um sinal de que alguma coisa não anda pois há um real que se coloca como uma pedra no caminho do sujeito: o real da privação que se explicita no fato de que homens e mulheres, desde sempre, estão privados do elemento que poderia propiciar a escritura da relação sexual. 
Esta impossibilidade, que não cessa de se escrever, promove o sintoma como única possibilidade de se fazer laço, ao mesmo tempo que se permite uma leitura, uma vez que ele participa de uma escritura, função da letra. Por isso J-A. Miller, em seu curso “O Outro que não existe…”(2) nos diz que “o sintoma é uma mentira sobre o real ... especialmente um mentira sobre o real que a relação sexual não existe. (...) É bem por isso que Lacan pode dizer que é o sintoma que nós colocamos no lugar deste Outro que não existe. E, especialmente, é o sintoma que nós colocamos no lugar do outro sexo (...) talvez o único Outro que existe, é o sintoma.”
Há, portanto, um vazio sobre o qual o sintoma se apoia e vai construir seu envelope formal. Vazio que se instala no ponto mesmo em que a presença de um gozo singular, escandaloso foi recusado e recalcado pelo sujeito (Lacan nos lembra, em RSI(3), “O neurótico é alguém que não chega a atingir o que é para ele a miragem onde ele encontrará satisfação, a saber, uma perversão. Uma neurose é uma perversão que falhou - c’est une perversion ratée). Isto que é recalcado, Freud definiu como sendo a pulsão que se apresenta com seu caráter intratável, rebelde e refratário ao laço social. No entanto, este mecanismo falha e o sintoma vai surgir como uma forma de inscrever o que insiste como marcas da singularidade do sujeito e de suas fixações.
O sintoma, assim como a cena da fantasia fundamental, nada mais são do que envelopes da pulsão, modalidades de seu exercício, formas que o sujeito busca para apreender um objeto, no campo do Outro, que lhe sirva de parceiro(4).
Este objeto, que Lacan denominou “pequeno a”, se define a partir dos orifícios do corpo e marcam o ponto por onde o sentido não se deixa apreender nas malhas do discurso. É este objeto pequeno “a” que se apresenta no vazio em torno do qual a pulsão faz seu circuito desenhando uma escritura que situa a repetição do sintoma. 
Agora a clínica:
Uma cena que envolveu o ato de escrever e um olhar definiram um ponto de fixação de gozo, determinando um caminho e estabelecendo uma forma sintomática.
A busca da satisfação passava pelo conquista de ideais determinados pela demanda do Outro que, na impossibilidade de serem atendidas, deixavam permanecer um resto que se repetia no olhar de uma mulher. A marca da falta, presente neste olhar, era buscada como único sinal da existência de um Outro que pudesse ser inscrito na possibilidade da relação sexual. Sintoma que se fez valer, criando uma série cujo ponto de conclusão era postergado infinitamente. 
Lacan nos diz que “O Outro é uma matriz com duas entradas”(5). O objeto pequeno “a” constitui uma destas entradas. E a outra é o Um do significante. Dissolver a presença deste Outro era fundamental para que o sujeito pudesse se livrar das diretrizes que determinavam a fixação do circuito pulsional. 
 O sintoma, por comportar um efeito de sentido, sofre a ação da interpretação. O seu valor de gozo, no entanto, é antinômico ao sentido, só se deixando apreender pelo equívoco, de onde se deduz a função da letra. A redução do sintoma à letra é uma forma de renovar o estatuto do simbólico, resumindo a pulsão à função de furo.
Podemos ler o que acabamos de escrever,
A/ —>($<>a)
A —>   s(A)
tomando o Grafo do Desejo como referência, da seguinte forma: “não existe prática analítica sem que o efeito de sentido esteja parasitado pelo efeito de sentido-gozado.”(6) Esta afirmação implica uma posição ética do analista que se traduz nos seguintes termos: mais além da teoria que sustenta sua prática, o analista sempre se orienta pelo que pode perceber como efeito de sentido-gozado e que se apresenta, simplesmente, como antinômico ao efeito de sentido que se compreende. Em outras palavras, a atenção flutuante do analista deverá ser capaz de captar o que se apresenta como sem sentido dentro de todo o sentido que a palavra nos oferece à compreensão para, exatamente, evitar que o sintoma da identificação venha a se perpetuar. Assim, todas as vezes que manipulamos o significante produzimos sem sentido no sentido à compreender, ao mesmo tempo que o transformamos em sentido para gozar. Este sentido para gozar é o que vai nos tocar, de alguma forma, como por exemplo, no chiste, em cuja estrutura Lacan se inspirou para construir o  dispositivo do Passe. De uma maneira simples, podemos dizer que o momento do passe se define por uma transformação de um significante que, destacando-se do conjunto pleno de sentido, vai produzir um sem sentido, nos dizendo de uma pequena ponta do real que retorna ao sujeito, deslocando-o da posição que, até então, sustentava. Este é o momento em que se produz um significante novo capaz de transmitir o que do sem sentido, ou melhor ainda, o que deste encontro com o real foi elaborado. Em outras palavras, é o momento em que o corpo do significante permanece como um dizer que estava esquecido por trás dos ditos.
Foi sustentando-se nesta ética que a interpretação do analista, (Me refiro aqui ao pequeno fragmento exposto acima), pôde apontar o vazio e, assim, esclarecer o circuito que delimitava o objeto e que estava velado pela interpretação que o inconsciente havia feito do encontro traumático com o Outro sexo.
Este objeto, desde o congelamento do sentido na cena da fantasia fundamental, passou ser incrustado em todos aqueles que apresentassem um traço que pudesse repetir a cena fundamental, nos dizendo de um ponto de fixação pulsional. Ora, a pulsão é a força real da fantasia ao mesmo tempo que denuncia o limite do sintoma à ação do simbólico. O resto que escapa, foge, retorna sob a forma de mal estar e relança o vetor pulsional sempre na direção determinada pelo imperativo do super-eu. Desfazer este circuito, devolvendo ao objeto sua característica de ser qualquer um, mobilizando o seu valor de gozo é um dos objetivos de uma análise.
Neste seu objetivo, a estratégia da qual se utiliza a psicanálise consiste em oferecer, àquele a busca como solução, a possibilidade de que esta cena se repita na transferência, ao instalar, no ponto de não saber, um sujeito suposto saber da significação de seu sofrimento. Esta estratégia, se utiliza do fato de que o inconsciente existe e sua existência se sustenta, exatamente no fato da inexistência da relação sexual e que a sexualidade só se representa no inconsciente pela pulsão. Utilizando-se do objeto pequeno ‘a’, enquanto agalma, pode-se ter entrada ao Outro,  fazendo possível a construção desta cena fundamental, a partir mesmo da determinação de uma constante através da qual o sujeito se relaciona ao real do gozo. Balizada por esta construção, uma interpretação operou separando S1 do S2 e criou um intervalo onde reinava a opacidade própria do gozo do sintoma. Este foi o momento em que aconteceu a produção de um significante que indexou a falta, um nome que estabeleceu novos rumos, fazendo desaparecer os pontos de suspensão sintomáticas  e fazendo intervir a letra como borda ao real.  
O que se transmite do momento do passe e que indica que um analista pode advir no final de uma análise, é o corpo da letra. Assim, partindo do sintoma da identificação, o sujeito vai desconstruindo a palavra até que ela possa assumir o valor de letra, o valor de significante enquanto escrito: S(A/). O $, o verdadeiro significante de A - o que do significante permanece, uma vez que se eliminou a palavra. Esta é a escritura que permite ao ser falante subtrair-se aos artifícios do inconsciente, ao mesmo tempo que deixa claro o que do inconsciente pode se traduzir por uma letra: “que o deciframento se resuma ao que constitui a cifra, ao que faz com que o sintoma seja, antes de mais nada, algo que não cessa de escrever-se do real…”(7) Assim posto, uma nova identificação pode acontecer, uma identificação que não é ao inconsciente. Identificar-se ao inconsciente está fora de cogitação pois, como nos diz Lacan, “o inconsciente permanece, o inconsciente permanece Outro”. A identificação da qual se trata, quando falamos em final de análise, é à letra do sintoma, àquela que, uma vez rompido o circuito pre-estabelecido pelo sentido congelado da fantasia fundamental, poderá tornar-se um traço que desvela alíngua como corpo do simbólico(8) e enlaça o corpo do imaginário ao corpo do real fazendo consistir os três termos Real, Simbólico e Imaginário(9). Esse é o caminho que culmina na transformação da experiência da fantasia fundamental, em pulsão, ao restabelecer o vazio do lugar do objeto pulsional.

 O amor, resposta ao real da não relação sexual, sustentou o trabalho da transferência nesta relação ao Outro do saber, e se esvaziou pela ação da interpretação que desfez o mistério da diferença sexual.  Este foi o momento em que o “analisante fez do objeto ‘a’ o representante da representação de seu analista”(10), abrindo uma nova relação ao saber e ao consentimento com seu modo próprio de gozo. 
Esta passagem estabeleceu uma subversão do sintoma que, a partir de então, passou a se sustentar na alienação, não mais a um Outro do saber, um Outro sem barra, como define Lacan, mas sim ao Outro barrado, marcado pelo silêncio da pulsão.  Podemos dizer que aconteceu uma extração do objeto “a”, como causa de desejo, a partir do gozo que sustentava o sintoma. Como consequência o sujeito, por querer o que deseja, assumiu uma responsabilidade onde antes se esperava uma garantia. Responsabilidade que se verifica como a única posição política possível. Responsabilidade definida, por J-A. Miller da seguinte forma: “Se tudo fosse calculado, então não teríamos mais responsabilidade. Há uma responsabilidade, justamente, porque há um furo e que é necessário cobri-lo pelo ato, decidindo-se em função de seu julgamento íntimo”. 
Onde havia o trabalho de transferência, portanto, aconteceu a transferência de trabalho, dizendo de uma nova aliança com a pulsão. Esta nova aliança só pôde acontecer pela revitalização da marca (letra) do Nome Próprio propiciando um “saber aí fazer com o sintoma”. “Saber aí fazer com o sintoma” se constitui numa das fórmulas possíveis da liberdade. O ‘aí’ marca a suspensão de um ser que vai nomear o saber ou o fazer. É um ser que nomeia o ‘aí’ como o que vai para além de seu nome próprio, um nome para além da imagem de seu nome próprio. (...) É exatamente do nome próprio que nos fala Lacan a partir da fórmula “saber aí fazer com seu sintoma.
Produzido um nome, retificado o circuito pulsional, foi possível dizer ao analista que o endereçamento do sujeito não mais se dirigia a ele, mas sim ao trabalho de transmissão, estabelecendo os parâmetros de uma nova parceria. 

Notas:
1 - Lacan, J. “La tercera” in, Intervenciones y textos, n. 2, Ediciones Manantial, Bs.As. 1988. Pag. 89.
2 - Miller, J-A. L”Autre que n’existe pas et ses comités de éthique” Lição de 18/12/96,
3 - Lacan, J.  “RSI”, Lição de 18/02/75.
4 - Miller, J-A. L”Autre que n’existe pas…
5 - Lacan, J. “RSI” Lição de 21/01/1975
6 - Miller, J-A, Los signos del goce. Editorial Paidos, B. Aires, 1998, pag. 315.
7 - Lacan, J. “La tercera”, op. cit. Pag. 96. 
8 - “Nada, certamente, nos dá, de entrada, a idéia do elemento, no sentido que creio haver mencionado a pouco, sobre o grão de areia ... a idéia do elemento, a idéia acerca de que isso somente podia se contar e, nesta ordem nada nos detém: por mais numerosos que sejam os grãos de areia, já o disse Arquimedes, por mais numerosos que sejam, sempre os podemos calibrar – poi
s bem, tudo isso nos vem somente a partir de algo que não tem melhor suporte que a letra. Porém significa, também, que não há letra sem alíngua”.
9 -  “O significante estando integralmente definido por seu lugar, é im­possível de deslocá-lo; mas é possível deslocar uma letra.O si­gnificante advém somente da instância simbólica; mas a letra enlaça R,S e I, que são mutualmente heterogêneos”. Milner, J.C.,- J. Lacan , Penseé et savoir, in Connaissez-vous Lacan , pag 195
10 - Lacan, J. “Proposition du 9 october 1967.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Os destinos do sintoma

O sujeito nasce como efeito de um menos, um menos de gozo que advém da extração que o significante opera no campo do Outro. Esta operação instala, necessariamente, um certo mal-estar, um certo incomodo que vai gerar um movimento de busca incessante, ali mesmo onde algo se perdeu. É a partir deste ‘menos’, portanto, que se inicia o que Lacan denominou, de Automaton - a repetição da impossibilidade na cadeia significante. Esta repetição, ou seja isso que “não cessa de se escrever” é uma necessidade que vem dizer da impossibilidade que o próprio recalque originário (Urverdrängung) aponta. Contudo, todo este movimento só se sustenta por que há pontos de encontros que, pelo fato mesmo de serem sempre faltosos, acenam com a possibilidade de uma certa realização. É neste ponto que o sintoma vai surgir como tentativa de restabelecer o laço entre o sujeito e o Outro. Neste sentido, podemos dizer que ele é uma solução para evitar o encontro com a castração.
 Assim, entre o que “não cessa de não se escrever” (o impossível) e o que “não cessa de se escrever” (necessário) vamos nos deparar com um sujeito que, como nos diz Freud, tem que se haver com um dispêndio de energia adicional para lutar contra o desprazer (Unlust) ou sofrimento (Leiden) que esta situação pode criar. Sendo isso o que todo ser falante tem como fundamento de sua estrutura, existe, ainda conforme Freud, uma pré-condição para a formação de sintomas em todos nós. O sintoma, portanto, poderá ser definido como “o resultado de um conflito, que surge em virtude de um novo método de satisfazer a libido (libidobefriedigung). As duas forças que entraram em luta (que poderíamos aqui representar pelos dois movimentos: “não cessa de não se escrever” e “não cessa de se escrever”) encontram-se novamente no sintoma e se reconciliam, por assim dizer, através do acordo representado pelo sintoma formado.(1). Em outras palavras posso dizer-lhes que este “acordo” seria uma negociação feita de tal forma que o sujeito diria assim: “pago um preço para não saber que existe algo que ‘não cessa de não escrever’, e este preço é uma satisfação substitutiva que, ao mesmo tempo em que provoca um certo desprazer (Unlust), é onde posso obter minha satisfação.
O sintoma é, portanto, uma tentativa de criar uma harmonia ali, onde um menos se instalou provocando uma desarmonia.
É neste ponto que vamos ver uma discordância fundamental entre os conceitos de sintoma para a medicina e para a psicanálise. Se por um lado a posição médica se refere à noção de harmonia como um objetivo a alcançar, quando estamos diante de um sintoma - este aparecendo como o que perturba e destrói a harmonia -, o sentido do sintoma vai mudar se não nos referirmos mais a uma harmonia que ele venha perturbar, mas sim a que ele é harmônico a uma falta, a um menos que, na psicanálise costumamos chamar de castração. J.A.Miller(2) nos lembra que a palavra Sintoma tem no seu radical “sin” que quer dizer síntese, reunião, conjunto, mas também quer dizer o que vem junto, o que coincide. Desta forma, o sintoma é o que faz coincidir duas coisas, como já nos dizia Freud: a castração, que é “o ser do sintoma”(3) e o que Lacan vem denominar de “envelope formal do sintoma” - o envoltório significante. Este termo, utilizado por Lacan no texto “De nossos antecedentes”(4) surge de um certo retorno à psiquiatria clássica de Clarembault, e da “necessidade que levou Lacan à psicanálise”(5) por ocasião do seu famoso caso Aimée: “Pois a fidelidade ao envelope formal do sintoma, que é o verdadeiro traço clínico do qual tomamos o gosto, nos leva a este limite de onde ele retorna em efeitos de criação”(6).
Partindo desta frase de Lacan, Miller faz um extenso comentário no seu texto: “Reflexões sobre o envelope formal do sintoma” e nos chama a atenção para os dois eixos do sintoma: (1) se há um núcleo que podemos denominar de castração, de sofrimento,  de “mais de gozo” em consequência do “menos de gozo” da operação significante, há, no sintoma, (2) uma mensagem endereçada ao Outro que espera uma decifração.
Vamos retomar, em outras palavras, um possível trajeto na formação do sintoma: a partir de um ‘menos’ que se instala como consequência da extração do objeto “a” pela operação significante, vai surgir uma intenção de significação que produz uma resposta que, exatamente por ser da ordem do impossível, vai relançar a busca de significação. Esta busca de significação é explicada por J.A.Miller como sendo a “transformação da queixa que emerge do fundo do desprazer em mensagem (..) fazendo existir o sujeito de uma maneira nova no campo do Outro, e sob forma constituída”(7). No entanto, quando se formata uma queixa, ou como nos diz M. Silvestre: quando fazemos coincidir uma queixa e um sofrimento, vamos perceber que ela se desnatura, pois há o que se pode dizer e o que não se pode dizer pela própria impossibilidade do significante em dizer tudo. Esta dificuldade é o que faz com que a lógica própria ao Outro, ao estabelecer esta relação entre queixa e sofrimento, vá congelar e fixar a queixa numa certa cena. Em outras palavras, do que se trata aqui é de um certo percurso pulsional que estabelece uma certa correlação entre o sujeito e “um dos objetos que havia anteriormente abandonado”(8), porque “a libido é induzida a tomar o caminho da regressão pela fixação que deixou atras de si nesses pontos do seu desenvolvimento”(9), nos pontos em que queixa e sofrimento, gozo e mensagem, castração e envelope formal, se fizeram coincidir.(10)
Quando alguém vem à análise, esperamos dele um relato de sua infelicidade. Neste relato poderemos, então, perceber que há uma harmonia, há um arranjo que faz existir uma satisfação aí mesmo onde o sujeito se queixa de dor. Este é o paradoxo que Lacan define em Televisão ao dizer,  que a demanda “de um que sofre” nos diz que “o sujeito é feliz”, ou seja, “é mesmo sua definição pois que ele não pode nada dever senão ao momento oportuno (heur), à sorte (fortune) dito de outra forma, e todo momento oportuno é bom para isso que o mantém, ou seja, por que ele se repete”(11).
Talvez possamos afirmar, neste ponto, que “o sintoma analítico, entanto que formatado no campo do Outro, constituído como o que se instaura da cadeia significante, tem estrutura de ficção”(12).  Isto o demonstra muito bem o sintoma histérico, na medida em que, na histeria, vamos ver o sintoma como ser de verdade do sujeito pois ele é deslocado desde baixo e colocado em evidência. Em outras palavras, ela faz o objeto ‘a’, entanto real, vir ao lugar da verdade.
Acrescento, neste ponto, que é ao instalar-se como “ser de verdade” que o sintoma promove a construção de uma suposição de saber no campo do Outro. Partindo da premissa estrutural de que não há relação entre o sujeito e o Outro, o sujeito está, desde sempre, afastado de sua verdade. O laço possível, entre o sujeito e o Outro, se faz pelo sintoma. E se faz, com a criação de um “ser de saber” ali, onde a verdade lhe está vetada.
Estrutura de ficção, queixa, sofrimento, não importa como a ele nos referimos, a verdade é que o sintoma é o que vai dizer de algo que não vai bem e o “clamor da humanidade” é pelo apaziguamento do mal-estar que isso provoca. Por isso é fundamental que o analista não ceda de seu desejo.
Um passo a mais pode ser dado para desvelarmos um pouco da importância que o sintoma tem para cada sujeito. Por todas estas características que acabo de trabalhar, podemos perceber que o sintoma é o que cada um tem de mais particular, e também o de mais real. Por isso o sujeito neurótico se apega tanto a ele, como possibilidade única, de fazer frente ao que lhe está prescrito pelo Outro. Ao escutarmos o relato da infelicidade de alguém é fundamental termos em conta que esta infelicidade é o que há de mais particular, é o que sustenta este sujeito no mundo: “Eu sou assim”, nos dizem de várias maneiras os candidatos à análise. Talvez por isso é que, ao diferenciarmos o lugar do analista, do lugar do terapeuta, estamos dizendo que nosso compromisso não é com o movimento humanitário que, com seu clamor, espera poder uniformizar o que há de mais particular. Nosso compromisso é com a particularidade de cada um. Pôr-se a serviço desta verdade supõe um desejo que poderemos qualificar de inumano. Em outras palavras, Lacan vai afirmar que o mal-estar na civilização consiste em gozar da renuncia ao gozo. Sim, porque ao estabelecer uma solução de compromisso entre as duas forças opostas que estão em conflito, o sujeito renuncia à possibilidade de um gozo possível. Gozo possível somente na medida que o Outro é esvaziado de gozo pela entrada do significante, ou seja, na medida em que o sujeito deixa de acreditar que o Outro quer dele sua castração, que o Outro quer retirar-lhe o que ele tem de mais precioso: seu pequeno nada
Como já dissemos, o sintoma é o mais particular de cada um, é gozo e mensagem a ser decifrada e está submetida ao que costumamos chamar de horror da castração. Este menos, a castração, onde vamos encontrar a particularidade do sujeito, está sinalizado pela presença do traço unário (Einziger Zug), constituindo-se no que Lacan denominou “estilo". Estilo é o objeto ‘a’ entanto que marcado pelo traço unário, marcado pela incidência do “dizer verdadeiro” que deixou uma “ranhura” indelével. É esta ranhura do dizer verdadeiro que o sintoma tenta preencher, a partir mesmo da cena da fantasia fundamental que os significantes primários do sujeito construíram, ordenados a partir deste mesmo traço (Zug). O final de análise passa, necessariamente, por este traço unário. 
Vamos nos ater, no entanto, ao que um sujeito faz para evitar este encontro com a castração. Uma das estratégias utilizadas é a instalação de um princípio de consistência que é exterior ao sistema que o sustenta. Ou seja, há uma busca de garantia que venha de um Outro, não importa qual. Quando esta garantia, construída na ficção do sintoma, deixa de cumprir sua função, o sujeito vem buscá-la na análise. Neste caso, o que se espera é que um princípio de consistência venha restituir a harmonia perdida. Esta busca de recurso no Outro dá ensejo à produção de uma significação que Lacan deu o nome de Sujeito Suposto Saber. Com isto, busca-se a certeza em uma afirmação que possa dizer do verdadeiro e do falso para tal ou qual proposição. Na verdade, o que se busca a partir do Sujeito Suposto Saber é a constituição de um ponto de estofo que possa manifestar uma consistência do discurso estabelecido.  Este ponto de estofo vai estabelecer o lugar de onde o sujeito vai receber seu próprio discurso de forma invertida. O sujeito, portanto, recebe de volta uma significação, com a qual poderá ordenar o trajeto de sua existência: “sou assim”. Todo este processo só pode acontecer por que o ponto de estofo nos diz onde o desejo do Outro se coloca como ‘x’. Trata-se de um significante que busca dizer do que está para sempre recalcado (Urverdrängung), questionando o Outro no ponto em que nada pode ser dito, a saber, o desejo. 
O que chamei há pouco de “desejo inumano”, para designar o desejo do analista, é o que vai operar neste momento da análise, instalando ali, onde se espera uma consistência, a própria verificação da inconsistência do Outro. Este passo, por si só, vai estabelecer efeitos sobre o sintoma:
1 - No envelope formal do sintoma - s(A) sua composição significante - veremos efeitos terapêuticos quase que imediatos, pois, sendo o que, do sintoma, acreditamos poder nos dizer alguma coisa, é com alívio que recebemos, de volta, a própria mensagem invertida. No entanto, não podemos nos esquecer que no Grafo do Desejo, Lacan mostra a implicação da ficção da fantasia na mensagem do sintoma. Ou seja, este apaziguamento que a transferência instaura só se sustenta porque o significante da transferência entra obturando, cobrindo a “ranhura do dizer verdadeiro”.
2 - Ao mesmo tempo, vamos perceber se delinear o que Lacan chama de “ponto de fixão”, este nó de significações que denunciam o “sentido do gozo” (jouis-sens) desvestindo-o do envelope formal e do envelope imaginário: nó real de gozo, a geometria do real, onde impera o “more geométrico”.
3 - Dá-se, com a instalação da transferência o primeiro passo, portanto, para que a construção de um quadro, de uma cena, possibilite transformar-se em umbral por onde um atravessamento poderá acontecer e, uma identificação ao sintoma venha selar um longo processo.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Stories do Facebook - I

07.05.2020

J. A. Miller em seu artigo sobre "As saídas de Análise" nós diz que “poderíamos nos perguntar se não há sempre, em certo sentido, uma segunda entrada em análise. O sujeito entra em análise antes de efetivamente saber o que é uma análise; por isso é necessário que o analista intervenha para confirmar sua opção".
A confirmação desta opção, acredito, não se faz pela via do saber, mas sim por um consentimento com a experiência do inconsciente. Quando me refiro a consentimento, tenho em mente o que Lacan nos diz em seu Seminário VII - A Ética da Psicanálise: quando, uma vez cumprido o ato do assassinato do pai da horda primitiva, "se instaura um consentimento inaugural que é um tempo essencial na instituição da lei, quanto à qual a arte de Freud será vinculá-la ao assassinato do pai, de identificá-la à ambivalência que então funda as relações do filho com o pai, isto é, ao retorno do amor após efetuado o ato."

08.06.2020

Não nutrir o sintoma para que este prolifere, ou como usualmente escutamos: não responder às demandas do analisante propiciando a ele a oportunidade de escutar por detrás dos ditos, é função do analista. Uma interpretação não é, pois, aberta a todos os sentidos mas ao real que constitui o núcleo do sintoma e aí se coloca como um x impedindo que as coisas andem. 

09.06.2020

Um sujeito procura análise porque o saber constituído de seu sintoma claudica. Este é o momento em que “o sintoma se apresenta como impossível a assumir”, porque o rompimento de seu envelope formal coloca a céu aberto o que escapa à representação, à ação do pensamento (gedanken) e que permanece como um resto que Freud, no seu “Projeto ...” denominou de “a coisa” (das Ding). Em consequência, a angústia surge como sinal.

10.06.2020

Lacan, em seu percurso nos leva gradativamente a diferenciar o filosofar da “praxis” psicanalítica ao desenhar as diferenças entre o “penso” cartesiano e o “isso fala” freudiano. Sem deixar de frisar que o Cogito é um momento fundamental da história humana, posto que divide o sujeito num saber reflexivo e numa verdade recalcada. Lacan infere que Freud não inventa nem suprime o sujeito, mas se apodera dele ali onde o encontra, ou seja, no rebote da perspectiva cartesiana, que inaugura, depois de Galileu, a ciência moderna. Desta forma somos introduzidos à questão do sujeito tal como a psicanálise a subverte propriamente.

11.06.2020

Em outras palavras, é a partir do recalque originário, que trouxe como con­sequência a impossibilidade de um primeiro traço sofrer uma tra­dução, que se criou um pequeno intervalo entre os significantes que passaram a se ordenar a partir da história de cada sujeito. Esta ordenação não é aleató­ria e vai se sujeitar a uma estruturação que não é outra, senão a da linguagem. Isto é o que foi acres­centado ao legado freudiano: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” o que o autorizou a dizer que, “se o campo é freudiano, o inconsciente é lacaniano”

12.06.2020

Lacan, no seu retorno à Freud, se perguntou como poderia dar uma forma, formalizar isso que Freud chamou de atemporalidade do inconsciente. Para obter resultados foi à ciência que estuda as formas do pensamento. A lógica. Lacan pensou o tempo lógico antes do significante. Foi a partir do ponto em que ele, sabendo que o inconsciente é atemporal e que é estruturado a partir de um desejo indestrutível, pensou um tempo absolutamente particular: o tempo do sujeito do inconsciente, que é um outro tempo que não o cronológico. O trabalho do psicanalista talvez pudesse ser dito como sendo o de escutar alguém no seu tempo lógico para que ele possa tornar-se alguém no tempo cronológico. 

13.06.2020

Muitos sujeitos hoje, que apresentam o que chamamos de “novos sintomas”, diante da força unificadora da globalização, lançam mão de sintomas impermeáveis à intervenção do analista, na esperança de fazerem sobreviver uma singularidade ali, onde se está cada vez mais submetido às demandas de um discurso que tenta, de todas as formas, apagar a possibilidade da escolha e, consequentemente, do desejo.

14.06.2020

Gradativamente, durante seu ensino, Lacan vai nos levando a pensar o sujeito, não como uma “unidade” como quer a psicologia, mas como “sujeito do inconsciente” para dizê-lo sujeito da enunciação enquanto evanescente no enunciado, apenas apreendido na representação que lhe permite o significante.

16.06.2020

Seja qual for a vertente do sintoma que escolhermos, por um lado um “memorial de gozo” (o sintoma como metáfora), e por outro um “cativador de gozo” (o sintoma como função da letra), - até mesmo quando estamos falando da transferência como sintoma analítico -, vamos nos haver com um sinal de que alguma coisa não anda pois há um real que se coloca como uma pedra no caminho do sujeito: o real da privação que se explicita no fato de que homens e mulheres, desde sempre, estão privados do elemento que poderia propiciar a escritura da relação sexual.

17.06.2020

Em seu primeiro encontro com o Outro, consequência da incidência de um significante, o sujeito tem de lidar com um incurável, que não se subjetiva, que não permite que desejo e percepção coincidam. Ponto de opacidade e de silêncio, nos diz Lacan, que indica o lugar onde poderá se edificar a determinação significante capaz de escrever o fenômeno sintomático, na esperança de se “curar” a diferença que se instala na contingência deste primeiro encontro

18.06.2020

No Seminário XX, Mais Ainda, Lacan vai nos apresentar uma topologia para explicitar uma articulação entre gozo e sexualidade, uma vez que eles não poderão ser reduzidos ao orgasmo, seja masculino ou feminino. Uma articulação que encontra obstáculos postos em evidência pela psicanálise que afirma que “não há relação sexual”. Impasses que vão se resolver pelo recurso ao amor que vem ao lugar desta ausência. “O que vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor”. (S.XX, pag. 62)

19.06.2020

O sintoma, sendo a primeira mensagem cifrada, pleno de sentido, traz em si a cifra do gozo, que se apresenta como um ponto sem sentido.
Enquanto cifra, do gozo, o sintoma implica um endereçamento onde ele se decifra. Assim, de acordo com M. Silvestre, o que temos é: “de um lado, um sofrimento que o sujeito pode suportar com heroísmo estóico e sem dizer palavra. De outro, os portadores de sintomas que banham seu ambiente com eles, sem sofrerem eles mesmos absolutamente nada. Na medida em que os dois se conectam na mesma pessoa, isto pode produzir uma demanda de análise”.

20.06.2020

A queixa, quer dizer, a demanda, demanda de análise entre outras, e o sofrimento são duas coisas. Pode-se sofrer – mentalmente – e se recusar a qualquer queixa... Há uma distinção radical entre a queixa e o sofrimento. Ela é radical pois oferece uma escolha ao psicanalista: aquela de tratar a queixa ou de colocar em causa o sofrimento. (...) a queixa é uma fala, o sofrimento é uma paixão (...) o sintoma.”

21.06.2020

Podemos resumir a descoberta maior da psicanálise assim: no fundamento do nosso mundo, esse mundo ordenado pelos semblantes fálicos, não existem dois sexos, não existe uma mistura original, o que existe é a "não relação". Tal é o real da sexuação ao qual homem e mulher tem que se haver no encontro com o outro sexo.

23.06.2020

É pela via do saber que começa uma análise e neste começo está a transferência: o amor ao saber. Responder deste lugar de saber, no entanto, poderá produzir alguns efeitos, mas nunca uma análise. Por isso é importante distinguirmos a entrada em análise de seu começo, se quisermos dar conta desses alongamentos que se estiram sob o nome de uma análise, sem jamais iniciarem. Para que uma análise possa acontecer é fundamental a intervenção de um analista.

24.06.2020
J. A. Miller, em seu curso “Silet”, nos lembra que uma intervenção preciosa do analista é seu eventual ‘sem acordo’ (pas d’accord), pois no inconsciente não há a menor possibilidade de uma harmonia, muito menos de uma “negociação”, pois falta o significante que poderia estabelecer a proporção sexual.

25.06.2020

O objetivo do ato do psicanalista é desfazer o enlaçamento do Simbólico e Imaginário feito pelo sintoma aí mesmo onde, por estrutura, incide a falha na transmissão da castração. Esse é lugar aonde a fantasia se articula nos dizendo do desejo que a sustenta e do gozo que a mantêm. É neste ponto que uma passagem pode acontecer possibilitando ao “novo sujeito” que daí resulta efetuar um novo enlaçamento do Real, Simbólico e Imaginário.

26.06.2020

O Outro foi introduzido como uma forma de assegurar o ‘ao menos três’ da função simbólica. É no Outro que vai se manter o automatismo do simbólico, o ‘automaton’. É ele quem fala no lapsus quando o discurso se impõe à significação falha.

27.06.2020

A verdade, que se instala a partir da psicanálise está mais do lado do non-sens que do sentido, está na letra do inconsciente, nos dizendo da excentricidade de si a si mesmo, própria do sujeito, e que implica esta concepção e se explicita na fórmula: “ O inconsciente é o discurso do Outro”.

28.06.2020

Podemos dizer que um sujeito procura análise no momento em que se torna insuportável para ele sua divisão entre saber e verdade. Isto se dá no ponto aonde o deslizamento metonímico da cadeia significante se interrompe.

30.06.2020

A transferência, portanto, está no início do tratamento e se instala aí na tentativa mesmo de, atribuindo a um Outro o saber que falta, alcançar uma resposta que seja o saber último sobre esta sua verdade. É o Sujeito Suposto Saber que surge, fazendo valer um significante qualquer como aquele através do qual um sujeito poderia ser representado.

01.07.2020

Em seu primeiro encontro com o Outro, consequência da incidência de um significante, o sujeito tem de se haver com um real que não se subjetiva. Ponto de opacidade, nos diz Lacan, ponto de silêncio que indica o lugar onde poderá se edificar a determinação significante capaz de escrever o fenômeno sintomático, na esperança de se dar conta da impossibilidade que se instala na contingência deste primeiro encontro.

03.07.2020

“O Cogito é um momento fundamental da história humana, posto que divide o sujeito num sabe reflexivo e numa verdade recalcada ... Lacan infere que Freud não inventa nem suprime o sujeito, mas se apodera dele ali onde o encontra, ou seja, no rebote da perspectiva cartesiana, que inaugura, depois de Galileu, a ciência moderna” (Roudinesco, E., História da Psicanálise na França, vol II, pág. 324).

05.07.2020

No que diz respeito à interpretação, vamos delineá-la, com Lacan, como tendo a estrutura de “um saber entanto que verdade”, e se situando em algum lugar entre um enigma, que é o que podemos chamar de “uma enunciação da qual encarregamos que façam enunciado”, e uma citação, que colocamos como sendo “um enunciado solidamente apoiado no nome de um autor”.

07.07.2020
A fantasia do sujeito obsessivo demonstra o seu esforço na direção de manter intacto o Outro. Ainda que o desejo, que se constituiu na presença da falta de um significante,  esteja presente em todas  as  demandas.


08.07.2020

A liberdade, tão almejada, nunca passa de um sonho no horizonte de cada um dos seres falantes. Isto pode ser apreendido quando vislumbramos o fato de que a linguagem que nos constitui estabelece limites impondo sua sintaxe e estrutura ao mesmo tempo que nos diz da impossibilidade de se dizer tudo. Ha sempre um resto que permanece e que pode, quando possível, ser elevado à condição de causa de desejo.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Entrada em Análise: Uma Interpretação Memorável (2ª Parte)


A CLÍNICA
Carlos procura análise pela terceira vez. Quanto às duas vezes anteriores alega ter feito “final de análise!”, conforme declarações de seus analistas. No entanto, seus sintomas persistem: mais uma vez se encontra envolvido em dívidas e conflitos familiares. Sendo um trabalhador que podemos qualificar de compulsivo, Carlos tem passado sua vida pagando as dívidas que faz além de, constantemente, pagar dívidas de seus pais. Isto não só na área financeira pois até mesmo seu sucesso profissional foi uma forma de “resgatar o nome do pai”, que, como explicitou certa vez, sempre fracassou em sua vida profissional.
Durante um bom tempo, veio às sessões regularmente e trabalhou bastante. Acredito que, como das outras vezes, foi gradativamente alimentando seu sintoma de sentido, a partir mesmo de seu saber e perspicácia. Com isto, eles foram sendo apaziguados, uma ‘melhora’ logo surgiu e, com ela, idéias de concluir mais esta análise. No entanto uma pequena dívida bancária, com o ‘cheque especial’, permanecia ali, sempre presente. Este momento prolongou-se até certo dia, quando Carlos, mais uma vez, disse que esquecera o dinheiro para pagar a sua sessão. Desta vez o analista pontuou que estes ‘esquecimentos’ estavam se tornando um ritual.
Esta intervenção no sintoma marcou um primeiro ponto de virada na história desta análise. Como pode alguém dizer isto de um sujeito que era tão honesto e tão cumpridor de seus deveres? Mas a verdade é que havia sido colocado o dedo na ferida, e o sintoma de Carlos não tardou a se manifestar novamente, reforçado, como nos diz Freud. Após fazer algumas contas, Carlos chegou a conclusão que, para saldar sua dívida com o ‘cheque especial’, era necessário cortar despesas aqui e ali e ter os recibos de sua análise. A esta demanda o analista respondeu com um simples: “aqui não há negociação”. J.A. Miller, em seu curso “Silet”, nos lembra que uma intervenção preciosa do analista é seu eventual ‘sem acordo’ (pas d’accord)(10), pois no inconsciente não há a menor possibilidade de uma harmonia, muito menos de uma negociação, pois falta o significante que poderia estabelecer a proporção sexual.
Esta intervenção do analista marcou, definitivamente, a reviravolta do curso desta análise e, algum tempo depois, um sonho veio testemunhar disto: Carlos sonhou que voltava de um lugar onde vivenciou uma situação que descreveu como muito prazerosa. Apesar de não conseguir identificá-la, acreditava ser uma situação sexual. Chega em sua casa e se depara com dois familiares seus que, muito tristes e num tom acusatório dizem: Ela morreu! Neste ponto acorda.
Logo que relatou este sonho, Carlos decidiu que este era um sonho que apontava para o final de sua análise. Mais uma vez, se lhe apresentou o “final de análise”, como uma saída antecipada. Na verdade, ele fez uma interrupção neste ponto para retornar logo em seguida. Este seu retorno nos propicia, hoje, a oportunidade de verificar que a intervenção do analista, ao apontar a falta de um significante que pudesse estabelecer uma “negociação”, produziu uma experiência que, podemos dizer, marcou uma segunda entrada em análise. Em outras palavras, as intervenções do analista promoveram uma retificação exatamente onde uma retificação deve ser feita: ao nível da pulsão. Nesta perspectiva é que o sonho de Carlos, ao dizer de um trajeto em torno de um vazio ali, onde durante toda a sua vida Carlos insistia em colocar uma mulher, marca o que poderíamos chamar de o lugar da verdade. Este lugar que delimita, no discurso do analista, um espaço onde um saber pode ser reinventado: “Descobri outro dia que, por mais que eu trabalhe, não poderei nunca dar à minha mãe o pedaço que faltou a meu pai”, disse Carlos recentemente, se referindo ao “não” que disse às novas demandas de sua mãe para quitar suas dívidas.
Esta segunda, ou verdadeira, entrada só aconteceu depois de um longo percurso até que acontecesse a passagem de um saber sobre o inconsciente para um consentimento com a experiência do inconsciente


A INTERPRETAÇÃO MEMORÁVEL

Esta intervenção que marcou uma passagem, promovendo uma verdadeira entrada em análise, abre-nos a possibilidade de trabalharmos, no âmbito da clínica apresentada, o que é uma interpretação memorável.
A expressão “interpretação memorável”, criada por Jacques-Alain Miller, chamou minha atenção para as “poucas ilustrações concretas” de interpretações que poderíamos chamar de memoráveis nos relatos de análises ao cartel do passe, acrescentando que talvez exista uma dificuldade estrutural para elucidar essa passagem para cada sujeito, pois o momento dessa mutação é difícil de apreender”
É a partir deste ponto que me ponho a trabalho para desenvolver uma hipótese dizendo que esta dificuldade se deve ao fato de que uma interpretação só se torna passível de ser memorável se ela for capaz de promover uma transmutação de registro, ou seja, traduzir “Traços de percepção (Wahrnemungszeichen)” em “Traços duradouros (Dauerspuren)” ou “Traços de memórias (Erinnerungspuren)”. Estando fazendo referência ao esquema do aparelho psíquico proposto por Freud na Carta 52 de sua correspondência a Fliess(11) permito-me introduzir, a partir do desenvolvimento de Lacan, a incidência do traço unário (Einziger Zug) entre as camadas dos “Traços de percepção” (Wahrnemungszeichen) e o “Inconsciente” (Unbewusst), na medida em que é a presença deste traço (Zug), após o assentimento primordial (Bejahung), o que vai possibilitar a estruturação do inconsciente (Unbewusst) a partir do seu limite: o “Unbegriff” - conceito criado por Lacan para nos dizer do UM do inconsciente.(12) 
Como já convocamos a “Carta 52”, continuaremos com sua referência para dizer que a interpretação vai se mostrar eficaz e permanecer como memorável quando ela for capaz de promover o “despertar de um novo desprazer”(der Erweckung(13) neuerlich Unlust(14)) ali onde “uma memória se comporta como um evento corriqueiro” (Die Erinnerung benimmt sich dann wieetwas Aktuelles) com a intenção de promover uma inibição à liberação de desprazer (Unlust)(15).
Minha proposta se sustenta em uma pesquisa (16) no texto freudiano, onde pude constatar que, ao contrário do que observamos nas traduções (português, inglês, espanhol ou francês), são utilizadas três palavras distintas para a palavra traço que, longe de ser apenas uma questão de retórica, vão nos apontar recortes conceituais diferentes, propiciando a uma formalização do que penso ser uma “interpretação memorável”
Zeichen - Freud utiliza este significante na Carta 52 quando nos diz: “o essencialmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços (Zeichen = indícios, insígnias).”
Ele aí está nos apresentando “Traços de percepção” (Wahrnemungszeichen), o primeiro registro (Niederschrift) “absolutamente incapaz de se tornar consciente, e organizado de acordo com associações por simultaneidade (Gleichzeitigkeitsassoziation)”(17). Estes traços “nós podemos”, nos diz Lacan, “dar-lhes imediatamente seu nome verdadeiro de significantes.”(18)
Zug - Este significante é utilizado por Freud em poucas ocasiões: “Uma criança é batida” e “Psicologia das massas - parte VII”, onde Lacan vai buscar o conceito de traço unário (EinzigerZug). Trata-se de um traço, de um puxão, de uma espécie de sulco inaugural que tem, como consequência lógica, a Bejahung primordial.
Spur - Esta é a palavra alemã para traço que Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Na Carta 52, vamos vê-lo utilizar Spur quando diz que, se na camada denominada “Percepção” (Wahrnemung) nenhum traço (kein Spur) do que acontece permanece, isto só será possível quando do segundo registro (Niederschrift): “Inconsciente” (Unbewusst), onde “traços do inconsciente (Unbewusstspuren) são algo equivalentes a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen), também inacessíveis à consciência”(19).  
Acrescento que é a incidência do traço unário (Einzeger Zug) o que promove a reorganização das “associações por simultâneidade” em “lembranças conceituais”, a partir mesmo da instalação do “UM”, do Unbegriff, do vazio como causa.
Freud é bastante claro, portanto, em dizer que é somente quando o traço (Spur) está registrado, é que vai ser possível o próximo passo: “a transcrição (Umschrift) ligada à representação de palavra”(20).
Ora, uma intervenção que se sustentar no deslizamento do sentido permanecerá apenas como traços de percepção (Wahrnemungszeichen) pois, sendo uma indicação, insígnia de um Outro que se apresenta como ideal [I(a)], vai impedir a que uma marca (Zug) possa produzir o  “despertar de um desprazer particular liberando um novo desprazer que, então, não pode mais ser inibido”(21). Este “despertar” só será possível pela ação de um corte, uma separação que, apontando para o vazio que o traço (Zug) deixou ao ser assimilado, vai abrir o caminho (bahnung) para que um traço de memória (Erinnerungsspur) possa se apresentar à transcrição (Umschrift), ligado-se á representação de palavra (Wortsvorstellung). Assim será possível à interpretação produzir ondas e promover uma construção que leve ao atravessamento da fantasia.
Em outras palavras, podemos dizer que é a partir deste sulco (Zug) produzido pelo corte que o esvaziamento do sentido vai ocorrer, apontando a “separação entre S1 e S que se inscreve sobre a linha inferior do ‘discurso analítico’”,  como nos esclarece J. A. Miller(22). É este corte que possibilita uma retificação no trajeto da satisfação pulsional, ao desviar o vetor do sentido, para a causa de desejo.                        
                                        a        $
                                        S2.  //   S1

(O S1 vai então se endereçar ao a, explicitado no matema do Discurso do Analista)
Esta é a intervenção de um analista que pode propiciar a um sujeito dar um passo a mais e confirmar a sua decisão pela análise, conforme o fragmento clínico que lhes apresentei acima.
Podemos, à luz da articulação que lhes apresento, dizer que a interpretação que estabeleceu, definitivamente, a reviravolta do curso desta análise abriu um vazio onde Carlos esperava a perpetuação de uma sequência plena de sentido, trazendo o “despertar de um desprazer” que estava apaziguado no “Automaton” de significantes regido por sua crença em ser “tão honesto”.
Em outras palavras, a partir do traço (Zug) que se reinscreveu, o que estava inibido sob as insígnias (Zeichen) do Outro, foi escutado e pode promover a transmutação de memórias conceptuais (begriffserinnerungen) em representação de palavras (wortvorstellungen), dando a Carlos condições de efetuar construções em suas sessões(23).
A operação da interpretação, separando Sdo S2, ou seja, estabelecendo o avesso da proposta do inconsciente, trouxe à luz o intervalo e a possibilidade de uma construção. Com isto, surgiu a esperança de poder ir mais além do sentido, mais além das insígnias ou traços (Zeichen) do Outro, que só fazem produzir um certo conforto. Mais que isso, a incidência da interpretação à maneira de um estilo que sulca a tábua de cera ao imprimir a letra, reabriu os caminhos e fez surgir, em Carlos, o desejo de ir mais além ....

Notas:
          

            10 - Miller, J.A. - “Silet”, Curso do dia 23/11/94.
            11 - Freud, S., “Aus den Anfängen der Psycoanalysis”, Imago Pub. London, 1950, pag. 185.
            12 - Lacan, J., - “Le Séminaire XI - Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse”, Seuil, Paris, 1973, pag. 28.
            13 – Nota(1): Erwecken pode significar tanto “despertar” quanto “ressuscitar”. No sentido figurativo é usado como “provocar”.
             14 - Nota (2): Lembro-lhes aqui que Unlust é um dos nomes freudianos para gozo
             15 - Freud, S., - Op. cit. pag. 188.
             16 - Rennó Lima, C. - “Uma brecha na fantasia” in Opção Lacaniana, nº11, pags. 55-59.
             17 - Freud, S., - Op. cit. pag. 186.
             18 - Lacan, J., - “Le Seminaire XI ...”, op. cit. pag. 46
             19 - Freud, S., - Op. cit. pag. 186.
             20 - Ibidem.
             21 - Idem, pag.188.
             22 - Miller, J.A., “L’interpretation à l’envers”, in Revue de La Cause Freudienne nº 32, Paris, 1996, pag. 12
             23 - Miller, J.A., - “L’interpretation a l’envers”, op. cit., pag. 13.