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segunda-feira, 6 de julho de 2020

Entrada em Análise: Uma Interpretação Memorável (2ª Parte)


A CLÍNICA
Carlos procura análise pela terceira vez. Quanto às duas vezes anteriores alega ter feito “final de análise!”, conforme declarações de seus analistas. No entanto, seus sintomas persistem: mais uma vez se encontra envolvido em dívidas e conflitos familiares. Sendo um trabalhador que podemos qualificar de compulsivo, Carlos tem passado sua vida pagando as dívidas que faz além de, constantemente, pagar dívidas de seus pais. Isto não só na área financeira pois até mesmo seu sucesso profissional foi uma forma de “resgatar o nome do pai”, que, como explicitou certa vez, sempre fracassou em sua vida profissional.
Durante um bom tempo, veio às sessões regularmente e trabalhou bastante. Acredito que, como das outras vezes, foi gradativamente alimentando seu sintoma de sentido, a partir mesmo de seu saber e perspicácia. Com isto, eles foram sendo apaziguados, uma ‘melhora’ logo surgiu e, com ela, idéias de concluir mais esta análise. No entanto uma pequena dívida bancária, com o ‘cheque especial’, permanecia ali, sempre presente. Este momento prolongou-se até certo dia, quando Carlos, mais uma vez, disse que esquecera o dinheiro para pagar a sua sessão. Desta vez o analista pontuou que estes ‘esquecimentos’ estavam se tornando um ritual.
Esta intervenção no sintoma marcou um primeiro ponto de virada na história desta análise. Como pode alguém dizer isto de um sujeito que era tão honesto e tão cumpridor de seus deveres? Mas a verdade é que havia sido colocado o dedo na ferida, e o sintoma de Carlos não tardou a se manifestar novamente, reforçado, como nos diz Freud. Após fazer algumas contas, Carlos chegou a conclusão que, para saldar sua dívida com o ‘cheque especial’, era necessário cortar despesas aqui e ali e ter os recibos de sua análise. A esta demanda o analista respondeu com um simples: “aqui não há negociação”. J.A. Miller, em seu curso “Silet”, nos lembra que uma intervenção preciosa do analista é seu eventual ‘sem acordo’ (pas d’accord)(10), pois no inconsciente não há a menor possibilidade de uma harmonia, muito menos de uma negociação, pois falta o significante que poderia estabelecer a proporção sexual.
Esta intervenção do analista marcou, definitivamente, a reviravolta do curso desta análise e, algum tempo depois, um sonho veio testemunhar disto: Carlos sonhou que voltava de um lugar onde vivenciou uma situação que descreveu como muito prazerosa. Apesar de não conseguir identificá-la, acreditava ser uma situação sexual. Chega em sua casa e se depara com dois familiares seus que, muito tristes e num tom acusatório dizem: Ela morreu! Neste ponto acorda.
Logo que relatou este sonho, Carlos decidiu que este era um sonho que apontava para o final de sua análise. Mais uma vez, se lhe apresentou o “final de análise”, como uma saída antecipada. Na verdade, ele fez uma interrupção neste ponto para retornar logo em seguida. Este seu retorno nos propicia, hoje, a oportunidade de verificar que a intervenção do analista, ao apontar a falta de um significante que pudesse estabelecer uma “negociação”, produziu uma experiência que, podemos dizer, marcou uma segunda entrada em análise. Em outras palavras, as intervenções do analista promoveram uma retificação exatamente onde uma retificação deve ser feita: ao nível da pulsão. Nesta perspectiva é que o sonho de Carlos, ao dizer de um trajeto em torno de um vazio ali, onde durante toda a sua vida Carlos insistia em colocar uma mulher, marca o que poderíamos chamar de o lugar da verdade. Este lugar que delimita, no discurso do analista, um espaço onde um saber pode ser reinventado: “Descobri outro dia que, por mais que eu trabalhe, não poderei nunca dar à minha mãe o pedaço que faltou a meu pai”, disse Carlos recentemente, se referindo ao “não” que disse às novas demandas de sua mãe para quitar suas dívidas.
Esta segunda, ou verdadeira, entrada só aconteceu depois de um longo percurso até que acontecesse a passagem de um saber sobre o inconsciente para um consentimento com a experiência do inconsciente


A INTERPRETAÇÃO MEMORÁVEL

Esta intervenção que marcou uma passagem, promovendo uma verdadeira entrada em análise, abre-nos a possibilidade de trabalharmos, no âmbito da clínica apresentada, o que é uma interpretação memorável.
A expressão “interpretação memorável”, criada por Jacques-Alain Miller, chamou minha atenção para as “poucas ilustrações concretas” de interpretações que poderíamos chamar de memoráveis nos relatos de análises ao cartel do passe, acrescentando que talvez exista uma dificuldade estrutural para elucidar essa passagem para cada sujeito, pois o momento dessa mutação é difícil de apreender”
É a partir deste ponto que me ponho a trabalho para desenvolver uma hipótese dizendo que esta dificuldade se deve ao fato de que uma interpretação só se torna passível de ser memorável se ela for capaz de promover uma transmutação de registro, ou seja, traduzir “Traços de percepção (Wahrnemungszeichen)” em “Traços duradouros (Dauerspuren)” ou “Traços de memórias (Erinnerungspuren)”. Estando fazendo referência ao esquema do aparelho psíquico proposto por Freud na Carta 52 de sua correspondência a Fliess(11) permito-me introduzir, a partir do desenvolvimento de Lacan, a incidência do traço unário (Einziger Zug) entre as camadas dos “Traços de percepção” (Wahrnemungszeichen) e o “Inconsciente” (Unbewusst), na medida em que é a presença deste traço (Zug), após o assentimento primordial (Bejahung), o que vai possibilitar a estruturação do inconsciente (Unbewusst) a partir do seu limite: o “Unbegriff” - conceito criado por Lacan para nos dizer do UM do inconsciente.(12) 
Como já convocamos a “Carta 52”, continuaremos com sua referência para dizer que a interpretação vai se mostrar eficaz e permanecer como memorável quando ela for capaz de promover o “despertar de um novo desprazer”(der Erweckung(13) neuerlich Unlust(14)) ali onde “uma memória se comporta como um evento corriqueiro” (Die Erinnerung benimmt sich dann wieetwas Aktuelles) com a intenção de promover uma inibição à liberação de desprazer (Unlust)(15).
Minha proposta se sustenta em uma pesquisa (16) no texto freudiano, onde pude constatar que, ao contrário do que observamos nas traduções (português, inglês, espanhol ou francês), são utilizadas três palavras distintas para a palavra traço que, longe de ser apenas uma questão de retórica, vão nos apontar recortes conceituais diferentes, propiciando a uma formalização do que penso ser uma “interpretação memorável”
Zeichen - Freud utiliza este significante na Carta 52 quando nos diz: “o essencialmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços (Zeichen = indícios, insígnias).”
Ele aí está nos apresentando “Traços de percepção” (Wahrnemungszeichen), o primeiro registro (Niederschrift) “absolutamente incapaz de se tornar consciente, e organizado de acordo com associações por simultaneidade (Gleichzeitigkeitsassoziation)”(17). Estes traços “nós podemos”, nos diz Lacan, “dar-lhes imediatamente seu nome verdadeiro de significantes.”(18)
Zug - Este significante é utilizado por Freud em poucas ocasiões: “Uma criança é batida” e “Psicologia das massas - parte VII”, onde Lacan vai buscar o conceito de traço unário (EinzigerZug). Trata-se de um traço, de um puxão, de uma espécie de sulco inaugural que tem, como consequência lógica, a Bejahung primordial.
Spur - Esta é a palavra alemã para traço que Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Na Carta 52, vamos vê-lo utilizar Spur quando diz que, se na camada denominada “Percepção” (Wahrnemung) nenhum traço (kein Spur) do que acontece permanece, isto só será possível quando do segundo registro (Niederschrift): “Inconsciente” (Unbewusst), onde “traços do inconsciente (Unbewusstspuren) são algo equivalentes a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen), também inacessíveis à consciência”(19).  
Acrescento que é a incidência do traço unário (Einzeger Zug) o que promove a reorganização das “associações por simultâneidade” em “lembranças conceituais”, a partir mesmo da instalação do “UM”, do Unbegriff, do vazio como causa.
Freud é bastante claro, portanto, em dizer que é somente quando o traço (Spur) está registrado, é que vai ser possível o próximo passo: “a transcrição (Umschrift) ligada à representação de palavra”(20).
Ora, uma intervenção que se sustentar no deslizamento do sentido permanecerá apenas como traços de percepção (Wahrnemungszeichen) pois, sendo uma indicação, insígnia de um Outro que se apresenta como ideal [I(a)], vai impedir a que uma marca (Zug) possa produzir o  “despertar de um desprazer particular liberando um novo desprazer que, então, não pode mais ser inibido”(21). Este “despertar” só será possível pela ação de um corte, uma separação que, apontando para o vazio que o traço (Zug) deixou ao ser assimilado, vai abrir o caminho (bahnung) para que um traço de memória (Erinnerungsspur) possa se apresentar à transcrição (Umschrift), ligado-se á representação de palavra (Wortsvorstellung). Assim será possível à interpretação produzir ondas e promover uma construção que leve ao atravessamento da fantasia.
Em outras palavras, podemos dizer que é a partir deste sulco (Zug) produzido pelo corte que o esvaziamento do sentido vai ocorrer, apontando a “separação entre S1 e S que se inscreve sobre a linha inferior do ‘discurso analítico’”,  como nos esclarece J. A. Miller(22). É este corte que possibilita uma retificação no trajeto da satisfação pulsional, ao desviar o vetor do sentido, para a causa de desejo.                        
                                        a        $
                                        S2.  //   S1

(O S1 vai então se endereçar ao a, explicitado no matema do Discurso do Analista)
Esta é a intervenção de um analista que pode propiciar a um sujeito dar um passo a mais e confirmar a sua decisão pela análise, conforme o fragmento clínico que lhes apresentei acima.
Podemos, à luz da articulação que lhes apresento, dizer que a interpretação que estabeleceu, definitivamente, a reviravolta do curso desta análise abriu um vazio onde Carlos esperava a perpetuação de uma sequência plena de sentido, trazendo o “despertar de um desprazer” que estava apaziguado no “Automaton” de significantes regido por sua crença em ser “tão honesto”.
Em outras palavras, a partir do traço (Zug) que se reinscreveu, o que estava inibido sob as insígnias (Zeichen) do Outro, foi escutado e pode promover a transmutação de memórias conceptuais (begriffserinnerungen) em representação de palavras (wortvorstellungen), dando a Carlos condições de efetuar construções em suas sessões(23).
A operação da interpretação, separando Sdo S2, ou seja, estabelecendo o avesso da proposta do inconsciente, trouxe à luz o intervalo e a possibilidade de uma construção. Com isto, surgiu a esperança de poder ir mais além do sentido, mais além das insígnias ou traços (Zeichen) do Outro, que só fazem produzir um certo conforto. Mais que isso, a incidência da interpretação à maneira de um estilo que sulca a tábua de cera ao imprimir a letra, reabriu os caminhos e fez surgir, em Carlos, o desejo de ir mais além ....

Notas:
          

            10 - Miller, J.A. - “Silet”, Curso do dia 23/11/94.
            11 - Freud, S., “Aus den Anfängen der Psycoanalysis”, Imago Pub. London, 1950, pag. 185.
            12 - Lacan, J., - “Le Séminaire XI - Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse”, Seuil, Paris, 1973, pag. 28.
            13 – Nota(1): Erwecken pode significar tanto “despertar” quanto “ressuscitar”. No sentido figurativo é usado como “provocar”.
             14 - Nota (2): Lembro-lhes aqui que Unlust é um dos nomes freudianos para gozo
             15 - Freud, S., - Op. cit. pag. 188.
             16 - Rennó Lima, C. - “Uma brecha na fantasia” in Opção Lacaniana, nº11, pags. 55-59.
             17 - Freud, S., - Op. cit. pag. 186.
             18 - Lacan, J., - “Le Seminaire XI ...”, op. cit. pag. 46
             19 - Freud, S., - Op. cit. pag. 186.
             20 - Ibidem.
             21 - Idem, pag.188.
             22 - Miller, J.A., “L’interpretation à l’envers”, in Revue de La Cause Freudienne nº 32, Paris, 1996, pag. 12
             23 - Miller, J.A., - “L’interpretation a l’envers”, op. cit., pag. 13.


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