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segunda-feira, 13 de julho de 2020

Os destinos do sintoma

O sujeito nasce como efeito de um menos, um menos de gozo que advém da extração que o significante opera no campo do Outro. Esta operação instala, necessariamente, um certo mal-estar, um certo incomodo que vai gerar um movimento de busca incessante, ali mesmo onde algo se perdeu. É a partir deste ‘menos’, portanto, que se inicia o que Lacan denominou, de Automaton - a repetição da impossibilidade na cadeia significante. Esta repetição, ou seja isso que “não cessa de se escrever” é uma necessidade que vem dizer da impossibilidade que o próprio recalque originário (Urverdrängung) aponta. Contudo, todo este movimento só se sustenta por que há pontos de encontros que, pelo fato mesmo de serem sempre faltosos, acenam com a possibilidade de uma certa realização. É neste ponto que o sintoma vai surgir como tentativa de restabelecer o laço entre o sujeito e o Outro. Neste sentido, podemos dizer que ele é uma solução para evitar o encontro com a castração.
 Assim, entre o que “não cessa de não se escrever” (o impossível) e o que “não cessa de se escrever” (necessário) vamos nos deparar com um sujeito que, como nos diz Freud, tem que se haver com um dispêndio de energia adicional para lutar contra o desprazer (Unlust) ou sofrimento (Leiden) que esta situação pode criar. Sendo isso o que todo ser falante tem como fundamento de sua estrutura, existe, ainda conforme Freud, uma pré-condição para a formação de sintomas em todos nós. O sintoma, portanto, poderá ser definido como “o resultado de um conflito, que surge em virtude de um novo método de satisfazer a libido (libidobefriedigung). As duas forças que entraram em luta (que poderíamos aqui representar pelos dois movimentos: “não cessa de não se escrever” e “não cessa de se escrever”) encontram-se novamente no sintoma e se reconciliam, por assim dizer, através do acordo representado pelo sintoma formado.(1). Em outras palavras posso dizer-lhes que este “acordo” seria uma negociação feita de tal forma que o sujeito diria assim: “pago um preço para não saber que existe algo que ‘não cessa de não escrever’, e este preço é uma satisfação substitutiva que, ao mesmo tempo em que provoca um certo desprazer (Unlust), é onde posso obter minha satisfação.
O sintoma é, portanto, uma tentativa de criar uma harmonia ali, onde um menos se instalou provocando uma desarmonia.
É neste ponto que vamos ver uma discordância fundamental entre os conceitos de sintoma para a medicina e para a psicanálise. Se por um lado a posição médica se refere à noção de harmonia como um objetivo a alcançar, quando estamos diante de um sintoma - este aparecendo como o que perturba e destrói a harmonia -, o sentido do sintoma vai mudar se não nos referirmos mais a uma harmonia que ele venha perturbar, mas sim a que ele é harmônico a uma falta, a um menos que, na psicanálise costumamos chamar de castração. J.A.Miller(2) nos lembra que a palavra Sintoma tem no seu radical “sin” que quer dizer síntese, reunião, conjunto, mas também quer dizer o que vem junto, o que coincide. Desta forma, o sintoma é o que faz coincidir duas coisas, como já nos dizia Freud: a castração, que é “o ser do sintoma”(3) e o que Lacan vem denominar de “envelope formal do sintoma” - o envoltório significante. Este termo, utilizado por Lacan no texto “De nossos antecedentes”(4) surge de um certo retorno à psiquiatria clássica de Clarembault, e da “necessidade que levou Lacan à psicanálise”(5) por ocasião do seu famoso caso Aimée: “Pois a fidelidade ao envelope formal do sintoma, que é o verdadeiro traço clínico do qual tomamos o gosto, nos leva a este limite de onde ele retorna em efeitos de criação”(6).
Partindo desta frase de Lacan, Miller faz um extenso comentário no seu texto: “Reflexões sobre o envelope formal do sintoma” e nos chama a atenção para os dois eixos do sintoma: (1) se há um núcleo que podemos denominar de castração, de sofrimento,  de “mais de gozo” em consequência do “menos de gozo” da operação significante, há, no sintoma, (2) uma mensagem endereçada ao Outro que espera uma decifração.
Vamos retomar, em outras palavras, um possível trajeto na formação do sintoma: a partir de um ‘menos’ que se instala como consequência da extração do objeto “a” pela operação significante, vai surgir uma intenção de significação que produz uma resposta que, exatamente por ser da ordem do impossível, vai relançar a busca de significação. Esta busca de significação é explicada por J.A.Miller como sendo a “transformação da queixa que emerge do fundo do desprazer em mensagem (..) fazendo existir o sujeito de uma maneira nova no campo do Outro, e sob forma constituída”(7). No entanto, quando se formata uma queixa, ou como nos diz M. Silvestre: quando fazemos coincidir uma queixa e um sofrimento, vamos perceber que ela se desnatura, pois há o que se pode dizer e o que não se pode dizer pela própria impossibilidade do significante em dizer tudo. Esta dificuldade é o que faz com que a lógica própria ao Outro, ao estabelecer esta relação entre queixa e sofrimento, vá congelar e fixar a queixa numa certa cena. Em outras palavras, do que se trata aqui é de um certo percurso pulsional que estabelece uma certa correlação entre o sujeito e “um dos objetos que havia anteriormente abandonado”(8), porque “a libido é induzida a tomar o caminho da regressão pela fixação que deixou atras de si nesses pontos do seu desenvolvimento”(9), nos pontos em que queixa e sofrimento, gozo e mensagem, castração e envelope formal, se fizeram coincidir.(10)
Quando alguém vem à análise, esperamos dele um relato de sua infelicidade. Neste relato poderemos, então, perceber que há uma harmonia, há um arranjo que faz existir uma satisfação aí mesmo onde o sujeito se queixa de dor. Este é o paradoxo que Lacan define em Televisão ao dizer,  que a demanda “de um que sofre” nos diz que “o sujeito é feliz”, ou seja, “é mesmo sua definição pois que ele não pode nada dever senão ao momento oportuno (heur), à sorte (fortune) dito de outra forma, e todo momento oportuno é bom para isso que o mantém, ou seja, por que ele se repete”(11).
Talvez possamos afirmar, neste ponto, que “o sintoma analítico, entanto que formatado no campo do Outro, constituído como o que se instaura da cadeia significante, tem estrutura de ficção”(12).  Isto o demonstra muito bem o sintoma histérico, na medida em que, na histeria, vamos ver o sintoma como ser de verdade do sujeito pois ele é deslocado desde baixo e colocado em evidência. Em outras palavras, ela faz o objeto ‘a’, entanto real, vir ao lugar da verdade.
Acrescento, neste ponto, que é ao instalar-se como “ser de verdade” que o sintoma promove a construção de uma suposição de saber no campo do Outro. Partindo da premissa estrutural de que não há relação entre o sujeito e o Outro, o sujeito está, desde sempre, afastado de sua verdade. O laço possível, entre o sujeito e o Outro, se faz pelo sintoma. E se faz, com a criação de um “ser de saber” ali, onde a verdade lhe está vetada.
Estrutura de ficção, queixa, sofrimento, não importa como a ele nos referimos, a verdade é que o sintoma é o que vai dizer de algo que não vai bem e o “clamor da humanidade” é pelo apaziguamento do mal-estar que isso provoca. Por isso é fundamental que o analista não ceda de seu desejo.
Um passo a mais pode ser dado para desvelarmos um pouco da importância que o sintoma tem para cada sujeito. Por todas estas características que acabo de trabalhar, podemos perceber que o sintoma é o que cada um tem de mais particular, e também o de mais real. Por isso o sujeito neurótico se apega tanto a ele, como possibilidade única, de fazer frente ao que lhe está prescrito pelo Outro. Ao escutarmos o relato da infelicidade de alguém é fundamental termos em conta que esta infelicidade é o que há de mais particular, é o que sustenta este sujeito no mundo: “Eu sou assim”, nos dizem de várias maneiras os candidatos à análise. Talvez por isso é que, ao diferenciarmos o lugar do analista, do lugar do terapeuta, estamos dizendo que nosso compromisso não é com o movimento humanitário que, com seu clamor, espera poder uniformizar o que há de mais particular. Nosso compromisso é com a particularidade de cada um. Pôr-se a serviço desta verdade supõe um desejo que poderemos qualificar de inumano. Em outras palavras, Lacan vai afirmar que o mal-estar na civilização consiste em gozar da renuncia ao gozo. Sim, porque ao estabelecer uma solução de compromisso entre as duas forças opostas que estão em conflito, o sujeito renuncia à possibilidade de um gozo possível. Gozo possível somente na medida que o Outro é esvaziado de gozo pela entrada do significante, ou seja, na medida em que o sujeito deixa de acreditar que o Outro quer dele sua castração, que o Outro quer retirar-lhe o que ele tem de mais precioso: seu pequeno nada
Como já dissemos, o sintoma é o mais particular de cada um, é gozo e mensagem a ser decifrada e está submetida ao que costumamos chamar de horror da castração. Este menos, a castração, onde vamos encontrar a particularidade do sujeito, está sinalizado pela presença do traço unário (Einziger Zug), constituindo-se no que Lacan denominou “estilo". Estilo é o objeto ‘a’ entanto que marcado pelo traço unário, marcado pela incidência do “dizer verdadeiro” que deixou uma “ranhura” indelével. É esta ranhura do dizer verdadeiro que o sintoma tenta preencher, a partir mesmo da cena da fantasia fundamental que os significantes primários do sujeito construíram, ordenados a partir deste mesmo traço (Zug). O final de análise passa, necessariamente, por este traço unário. 
Vamos nos ater, no entanto, ao que um sujeito faz para evitar este encontro com a castração. Uma das estratégias utilizadas é a instalação de um princípio de consistência que é exterior ao sistema que o sustenta. Ou seja, há uma busca de garantia que venha de um Outro, não importa qual. Quando esta garantia, construída na ficção do sintoma, deixa de cumprir sua função, o sujeito vem buscá-la na análise. Neste caso, o que se espera é que um princípio de consistência venha restituir a harmonia perdida. Esta busca de recurso no Outro dá ensejo à produção de uma significação que Lacan deu o nome de Sujeito Suposto Saber. Com isto, busca-se a certeza em uma afirmação que possa dizer do verdadeiro e do falso para tal ou qual proposição. Na verdade, o que se busca a partir do Sujeito Suposto Saber é a constituição de um ponto de estofo que possa manifestar uma consistência do discurso estabelecido.  Este ponto de estofo vai estabelecer o lugar de onde o sujeito vai receber seu próprio discurso de forma invertida. O sujeito, portanto, recebe de volta uma significação, com a qual poderá ordenar o trajeto de sua existência: “sou assim”. Todo este processo só pode acontecer por que o ponto de estofo nos diz onde o desejo do Outro se coloca como ‘x’. Trata-se de um significante que busca dizer do que está para sempre recalcado (Urverdrängung), questionando o Outro no ponto em que nada pode ser dito, a saber, o desejo. 
O que chamei há pouco de “desejo inumano”, para designar o desejo do analista, é o que vai operar neste momento da análise, instalando ali, onde se espera uma consistência, a própria verificação da inconsistência do Outro. Este passo, por si só, vai estabelecer efeitos sobre o sintoma:
1 - No envelope formal do sintoma - s(A) sua composição significante - veremos efeitos terapêuticos quase que imediatos, pois, sendo o que, do sintoma, acreditamos poder nos dizer alguma coisa, é com alívio que recebemos, de volta, a própria mensagem invertida. No entanto, não podemos nos esquecer que no Grafo do Desejo, Lacan mostra a implicação da ficção da fantasia na mensagem do sintoma. Ou seja, este apaziguamento que a transferência instaura só se sustenta porque o significante da transferência entra obturando, cobrindo a “ranhura do dizer verdadeiro”.
2 - Ao mesmo tempo, vamos perceber se delinear o que Lacan chama de “ponto de fixão”, este nó de significações que denunciam o “sentido do gozo” (jouis-sens) desvestindo-o do envelope formal e do envelope imaginário: nó real de gozo, a geometria do real, onde impera o “more geométrico”.
3 - Dá-se, com a instalação da transferência o primeiro passo, portanto, para que a construção de um quadro, de uma cena, possibilite transformar-se em umbral por onde um atravessamento poderá acontecer e, uma identificação ao sintoma venha selar um longo processo.

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