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terça-feira, 25 de junho de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura – II

A interpretação é algo estranho a muitos psicoterapeutas pelo fato mesmo de não se dar no encontro intersubjetivo (empatia, p.ex.) onde se estaria de olho no outro. O que eles não sabem é que a modificação não se produz ali, mas que se opera num lugar Outro e determina o sujeito. Esta é mais uma diferença da interpretação proposta por Lacan em seu “Relatório de Roma”. Lá está proposto que a interpretação atue sobre as ressonâncias semânticas, sobre o significado e não sobre o significante. Aqui, na “Direção do tratamento...” as “ressonâncias” são trocadas pelo despertar da função de código.
 
Ainda centrando sobre a questão do significante, Lacan vai trabalhar na terceira subdivisão como este significante vai questionar a ressonância semântica fazendo surgir, ao final de todos os sentidos um zero, um conjunto vazio. Explicita-se que toda interpretação revela que no conjunto dos significantes pode-se ativar, em qualquer momento, um conjunto a mais, esse conjunto a mais que é nada. Lacan nos diz isso na forma de um enigma: “A metáfora do flogístico que há pouco nos inspirou Glover retira seu caráter apropriado do erro que evoca: a significação emana tão pouco da vida quanto o flogístico, na combustão, escapa dos corpos. Antes, seria preciso falar dela como da combinação da vida com o átomo O do signo, do signo no que, antes de tudo, ele conota a presença com a ausência, introduzindo essencialmente o que as liga, pois, ao conotar a presença ou a ausência, ele institui a presença com base na ausência, assim como constitui a ausência na presença.” Assim Lacan nos diz que a significação é a combinação da vida com o que na época denomina o átomo zero do signo. Podemos dizer que a ressonância semântica soa melhor no vazio.
 
Esta passagem pode ficar um pouco mais clara se retomamos a citação anterior quando ele diz que o analista deve introduzir algo que torne possível sua tradução. Esse algo que se acrescenta é o nada. É assim que Lacan vai explorar o nada da pura diferença entre os dois significantes utilizando-se do exemplo do neto de Freud com seu jogo de carretel e o “Fort-Da” que balbucia.
 
Em outras palavras podemos dizer que o que se explicita com este texto é a sistematização da interpretação como o que, ao agregar um significante ao que vem constituído como bateria de significantes do invólucro formal do sintoma faz surgir a pura diferença, o nada que é o fundamento mesmo do conjunto dos significantes.
 
Por falar em significante penso ser importante, neste momento em que estamos falando da interpretação, re-visitar o significante e a lógica que o sustenta, assim como o seu lugar no discurso da psicanálise. É verdade que os temas mais comuns da psicanálise podem parecer ficar de fora quando se fala da lógica do significante. Um conceito, nós o sabemos, se constrói comparando termos, relacionando-os até que se possa gerar uma nomenclatura que esgote as diferenças entre os termos comparados: o conceito de árvore, por exemplo. Já o matema, como nos diz Lacan em “L'Etourdit”:  "... um puro matema, eu o entendo como o único que se pode transmitir: isso sem nenhum recurso a qualquer experiência ..."
 
Como mencionei acima o discurso, falando do discurso da psicanálise, é preciso que saibamos do que se trata. Para chegar até ele, será preciso passar pelos conceitos de língua e de fala, conceitos estes inseridos, obviamente no conceito de linguagem. Serei breve: A fala se resume ao puro exercício fonatório dos signos, enquanto que a língua é uma estrutura, um código que, independente da vontade do sujeito, existe, persiste e insiste. Saussure nos diz que "a língua não é mais que uma determinada parte da linguagem, ainda que uma parte essencial... é, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade" de falar, dos indivíduos. Temos, então a língua que é o lado, digamos, social da linguagem e a fala que ficaria do lado individual. O discurso seria uma noção intermediária. O discurso está entre fala e língua, e participa, de alguma forma, das propriedades de ambos: é algo que ao mesmo tempo é ser social e ser individual. Assim, "um discurso é nem mais nem menos que determinado grupo de fala decantado e sedimentado pela história" e, neste contexto, o Édipo, p. ex., seria um discurso. Quando dizemos que o Édipo é um discurso, estamos querendo dizer que o universal que faz o homem (ao nível da língua) se inscreve individual, acidental, pessoal e subjetivamente (ao nível da fala), porém com uma regularidade tal que se descobre formações comuns (ao nível de discurso). Uma definição mais abrangedora nos permitiria dizer que o "discurso é a realização individual de todo o social que há na língua." A partir do que acabamos de escutar podemos entender um pouco mais porque Lacan acaba por definir esta interseção da fala e da língua em quatro discursos.
Retomemos nosso trajeto em torno da lógica do significante. Miller nos chama a atenção para o fato de que este sintagma, lógica do significante é um verdadeiro pleonasmo, pois somente existe lógica do significante: "toda lógica implica em si mesma uma desvalorização do significado". Talvez por isso possamos dizer que é necessária uma formação lógica a todo psicanalista. Esta desvalorização do significado em favor do significante já se pode observar deste a lógica, digamos, antiga. No entanto, naquele tempo ela persistia atada à gramática e, por tanto, ligada a língua falada. Para Lacan a lógica que interessa à psicanálise é aquela estabelecida a partir dos trabalhos de Boole, quando foi estabelecida uma certa separação com relação à gramática.
 
Sabemos, como já mencionei a pouco, que Lacan vai buscar na lingüística de Saussure os elementos necessários para construir a sua lógica do significante. A própria teoria de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem nos diz disso. Mas é preciso distinguir lógica e lingüística. A lógica não leva em conta os efeitos do significado, ela se ocupa do significante puro, do significante na medida em que não quer significar nada. Esta definição é básica na obra de Lacan. É fundamental para que possamos suplantar as dificuldades iniciais com a teoria lacaniana. E uma destas dificuldades é, exatamente, esta possibilidade de pensar o significante sem o significado. Aliás, isso é fundamental para podermos nos colocar na posição de escuta, enquanto analistas e, a partir daí produzir interpretações. Certamente por isso Lacan disse, em uma conferência pronunciada por ocasião da abertura da Seção Clínica de Vincenes que ele, infelizmente, não era psicótico o bastante. Isso porque o psicótico tem uma forma muito especial de lidar com o significante. Ele mantém uma relação sustentada na impossibilidade do significante fazer cadeia, o que possibilita a que um sujeito possa ser representado por um significante para outro significante. Em outras palavras, o psicótico estaria na linguagem, pois se sabe muito bem que ele fala, mas não se estabeleceria socialmente fazendo laços através de uma estrutura de discurso.
 
Lacan também utiliza a cibernética como referencia essencial de seu discurso. Foi assim que ele, ao tentar pela primeira vez entender o desejo inconsciente como imortal, a partir mesmo da afirmação de Freud, utilizou o exemplo das mensagens que circulam na máquina cibernética e que não tem, em si mesmo, o princípio de sua detenção.
 
Miller nos chama a atenção para o fato de que o retorno a Freud de Lacan não é meramente um retorno às fontes, aos textos, mas sim uma re-atualização de um conjunto de referências freudianas onde, pode-se perceber que faltou uma referência à lógica. Isso é tanto mais interessante se lembrarmos que Freud foi contemporâneo ao famoso Círculo de Viena onde ferviam as referências lógico-matemáticas. Até mesmo uma irmã de Wittgenstein esteve no divã de Freud, mas parece que isso não foi o bastante para despertar seu interesse pelo positivismo lógico.
 
Deixemos de lado os caminhos de Lacan pelas referências que lhe serviram de base para sua elaboração da teoria da lógica do significante, apenas citaremos que ele, neste seu trajeto, lançou mão de várias contribuições, entre elas a de Poincaré, Frege e Gödel, entre outros.
 
No entanto, devemos tomar cuidado em não considerarmos a psicanálise como um tipo de lógica aplicada, mas sim, que podemos utilizar a lógica para entendermos vários pontos cruciais, como p. ex., a associação livre e a interpretação. A lógica matemática, para Lacan, é a ciência do real, pois permite captar o impossível, mais além das suas articulações. O impossível tem sempre uma articulação significante como referência e o único indício do real é o impossível, ou seja, o que não cessa de não se escrever.
 
Além desta possibilidade de podermos trabalhar de forma mais consistente com a associação livre, podemos perceber a importância desta lógica do significante ao tratarmos com os conceitos freudianos de identificação, repetição e até mesmo de desejo. O desejo que em sua substância é um vazio e do qual só podemos seguir suas marcas através das voltas e reviravoltas da lógica do significante.
 
Por isso Lacan pode dizer, em uma conferência pronunciada em Bruxelas, sobre a histeria que "entre o uso do significante, o peso da significação e a maneira como opera um significante, existe um mundo. É aí nossa prática: aproximar de como as palavras operam. O essencial do que disse Freud, é que há uma maior relação entre o uso da palavra em uma espécie do que de palavras à sua disposição e a sexualidade que reina nesta espécie. A sexualidade está inteiramente presa nessas palavras, está aí a passagem essencial que ele fez.”
 

terça-feira, 18 de junho de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura – I

"Esta operação S(A/) é o que se produz cada vez que, no sentido analítico, há uma interpretação. É ilusório, somente ex-siste de maneira transitória. É a ilusão de que existiria uma chave, uma palavra última. Isto não é verdade. Por isso Lacan podia dizer, às vezes, que a psicanálise era uma impostura. Ela o é, fundamentalmente, porque em todo conjunto de significantes há sempre ao menos um que falta. No entanto, cada vez que se produz a operação analítica que se chama interpretação, sua necessidade está determinada por esta lógica elementar: a interpretação é uma pseudo ‘última palavra’."
 
 
Nossas últimas postagens trataram das diferenças entre psicanálise e psicoterapias, sendo que do lado Psicanálise, colocamos a Psicanálise Aplicada à terapêutica e a Psicanálise
 
Hoje vamos iniciar mais uma etapa: “Qual é o lugar da interpretação?” Serão cinco lições dedicadas a esta segunda parte do texto: “A direção do tratamento...”. Continuaremos passo a passo e, dentro do possível, trazendo as elaborações freudianas, assim como os desenvolvimentos que o próprio Lacan promoveu, tanto do conceito como da prática da interpretação na análise.
 
Acerca disto, existe uma série de textos nos quais Lacan tratou do tema da interpretação. Podemos, no entanto, dizer que este texto: “A direção do tratamento...” é um texto que pode ser denominado “o” texto sobre a interpretação de Lacan.
 
No seu “Relatório de Roma”, como chamamos o texto “Função e campo da palavra e da linguagem...” Lacan introduz a idéia de que a interpretação pode ser uma pontuação.
 
Lembremos que este texto também é importante por Lacan ter falado oficialmente a respeito de sua prática com as chamadas sessões curtas. Nesta época ele estava muito preocupado em estabelecer os fundamentos da teoria da comunicação em psicanálise. Fundamentos que subverte o que estava estabelecido até então, pelo menos para a psicanálise, pois parte da constatação de que o poder da palavra está do lado daquele que escuta. Em outras palavras, ao falar estamos entregando ao outro a potência relativa ao entender ou ao não entender e, mais ainda, de decidir sobre o que se entende ou não. Por isso Lacan vai nos lembrar, de alguma maneira, que a boa fé do outro é uma esperança ineliminável do campo da fala. No entanto, neste mesmo texto e, talvez, mais explicitamente no texto sobre as “Variantes do tratamento padrão” - onde Lacan detalha a estrutura da fala -, vamos verificar uma outra face deste paradoxo com respeito à linguagem: é que a fala marca e ultrapassa também aquele que a pronuncia. Está aí o princípio, segundo o qual o sujeito acaba por receber sua própria mensagem invertida. Este fundamento traz uma nova luz à regra fundamental da psicanálise onde se coloca a possibilidade do sujeito escutar o que ele não queria dizer, ou que não sabia que ia dizer. Podemos dizer que o poder da palavra acaba por se traduzir em impotência daquele que fala, estando este mais a reboque do que na direção de sua fala. Talvez por isso é que podemos ler, na “Direção do tratamento...” esta menção de Lacan ao “lugar ínfimo que a interpretação ocupa na atualidade psicanalítica – não porque tenha perdido seu sentido, mas porque a abordagem desse sentido sempre atesta um embaraço.”
 
Lacan vai formalizar este movimento pelo seu grafo elementar, desenhado no andar inferior do Grafo do Desejo, onde a mensagem que definimos como sendo a mensagem do sujeito nada mais é do que o significado do Outro s(A), ou seja, a mensagem inclui a resposta do Outro. Isto quer dizer que a mensagem não é o enunciado proferido pelo locutor, mas sim o que do enunciado foi recebido e sancionado pela resposta do Outro.
 
Voltando ao texto “ A direção do tratamento...”, verifica-se que a crítica de Lacan à forma como a interpretação se apresenta na época em que escreve diz respeito à paixão que anima os analistas de então (talvez ainda hoje), qual seja, a remeter a interpretação a intervenções imaginárias. É preciso levar-se em conta que nesta época a psicanálise com psicóticos e com crianças tinha uma influência muito forte sobre o dispositivo analítico o que acabou levando a este estado de coisas em que já ninguém sabia mais o que era interpretação ou, como disse Lacan, “explicações, gratificações, respostas à demanda”, ou até mesmo, uma “confrontação” que acabava por não ser “a do sujeito com seu próprio dizer”. É neste ponto que vemos Lacan nos dar uma primeira definição de interpretação (neste texto “A direção do tratamento...”): “um dizer esclarecedor”, contrapondo-o ao “insight” inglês, que nos remete ao “ver” e não ao “escutar”. Predomínio do imaginário sobre o simbólico. Ao definir assim a interpretação vê-se excluída a definição da interpretação pela palavra. Lembremos que Lacan utiliza, durante um longo tempo, a definição da interpretação como “palavra plena”, em oposição à “palavra vazia” do sintoma. Este foi o tempo quando a intersubjetividade estava cotada como uma das maneiras de se estar no dispositivo analítico. Mas, neste texto, Lacan vai refazer este equívoco ao falar em “dizer esclarecedor” e não em palavra esclarecedora. É verdade que ele nunca utilizou esta expressão: palavra esclarecedora. Uma outra razão importante para se utilizar dizer e não palavra é que a palavra é obscurantista, é mal entendido e, se utilizamos o mal entendido como uma das formas de se chegar ao dizer é porque nos sustentamos na ambigüidade do significante.
 
E é exatamente do significante que Lacan vai falar nesta segunda subdivisão, ao dizer da falta que faz levar-se em conta “a natureza de uma transmutação no sujeito”. E ele explicita do que se trata: “Nenhum indicador basta, com efeito, para mostrar onde age a interpretação, quando não se admite radicalmente um conceito da função do significante que capte onde o sujeito se subordina a ele, a ponto de ser por ele subornado.” E continua, estabelecendo de uma forma muito clara o lugar do tempo da interpretação: “A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução — precisamente aquilo que a função do Outro permite no receptáculo do código, sendo a propósito dele que aparece o elemento que falta.” Esta presença do significante, ou melhor dizendo “Essa importância do significante na localização da verdade aparece em filigrana”, pois se por um lado a interpretação não está em lugar nenhum para muitos que se dizem psicanalista, para outros ela estaria em todos os lugares. É essa a critica contundente que faz Lacan ao artigo de Edward Glover sobre a interpretação inexata, aonde ele chega a dizer que todo o dispositivo analítico é uma interpretação ou que o sintoma é uma interpretação inexata do paciente. É aí que se faz valer a teoria do significante no que respeita uma articulação e um lugar de onde ele opera. O sujeito, portanto, estando subordinado ao significante – Lacan vai formalizar, mais tarde, quando matemiza o Discurso do Mestre (S1/$ – S2/a) - nos diz que, mesmo sendo mais livre na tática do que na estratégia e na política do tratamento, essa liberdade é uma liberdade totalmente assujeitada. Assujeitada a seus fins. Em “l’Etourdit” Lacan retoma de alguma maneira estas três propostas sobre a liberdade na direção do tratamento para dizer que a liberdade tática é livre aí onde lhe convêm para seus fins, fins que estão diretamente dependentes da demanda de significação que é a entrada na transferência, onde a estratégia se estabelece. A transferência, lembremos aqui, se instala a partir de uma busca de significação. Dizia a vocês nas últimas postagens que a instalação do Sujeito Suposto Saber acontece quando o sujeito não consegue mais sustentar seu sintoma como laço social e, por isso, ele parte em busca de uma nova significação que lhe restitua o "status quo ante". É por isso que no matema da transferência temos um “S” – que é um significante que se apresenta como fora do sentido, como se fosse um significante no real – tal como acontece com a psicose –, é um vazio que busca ser preenchido com uma significação, no caso um “Sq”. Por tudo isso é que o dispositivo inventado por Freud pode produzir esta coisa nova e rara que Lacan chama de um parceiro que pode responder. O único com o qual não falamos sozinhos. Esta é a diferença fundamental entre a perspectiva estrutural e a fenomenológica. Quando alguém diz: “eu falo sozinho”, o analista nada responde mais sabe que a ausência de diálogo tem seu limite na interpretação. Em outras palavras, o mal entendido está por todos os lados e a comunicação em lugar nenhum. Entretanto existe um dispositivo de exceção: a análise, o único onde o sujeito se fará escutar, ou pelo menos existe uma possibilidade.
 
A interpretação, portanto, só vai produzir efeitos quando este sujeito suposto saber está devidamente instalado e vamos vê-la funcionar quando esta demanda de significação declina.
 

terça-feira, 11 de junho de 2013

As estratégias do Psicanalista: Liquidação da transferência?

Este termo "liquidação da transferência" - mencionado na última postagem -, se ele tem um sentido, é o da liquidação permanente deste engano através do qual a transferência tende a exercer o fechamento do inconsciente. Ou seja, no duplo movimento da transferência onde o sujeito se engancha supondo um saber ao Outro - estabelecendo o amor de transferência - vamos ver acontecer o engodo do tamponamento da falta do Outro. Este mecanismo é o da relação narcísica onde o sujeito tenta se colocar no lugar em que ele acredita poder ser amado pelo Outro. É na relação de miragem, proposta pelo eixo a-a’, que o sujeito irá se referenciar para convencer-se amável.
Podemos tomar o esquema L, na tentativa de explicitar este mecanismo:
Vamos instalar o sujeito que chega no lugar de S, dizendo que ele aí está na mais pura ignorância do que lhe causa mal. O que este sujeito vem buscar no Outro a quem ele supõe um saber é um traço qualquer que possa dizer-lhe o que na verdade ele é. Este traço poderá ser tomado aqui na sua referência ao objeto 'a', na medida que é este traço que faz a borda deste objeto que, na verdade é um vazio no espelho. A partir daí, vai se estabelecer uma relação de transferência e o sujeito vai se identificar a este traço na esperança de que, assim colocado, seja amado pelo Outro que vai lhe fornecer a resposta para a questão de sua existência.
Alguns esclarecimentos são necessários: Na verdade a questão da existência do sujeito se coloca a partir de um Outro lugar, e não a partir de um outro sujeito como se tenta acreditar na relação transferencial, que se sustenta no eixo a - a', eixo narcísico, lugar do engodo amoroso.
Cada vez que o analista intervém, ele o faz como se fosse a boca do Outro (A) visando o sujeito do inconsciente (S), naquilo que ele tem de mais íntimo, kern unseres wessen, o coração do nosso ser, ou seja, o que não tem palavra S(A/), ou ainda a causa de desejo.
O que se espera liquidar, então, é esta suposição de saber que se estabelece no eixo da relação narcísica e que tende a exercer o fechamento do inconsciente.
Lacan chamou este eixo narcísico, imaginário, de muro da linguagem. Isto pode parecer estranho, colocar a linguagem no eixo imaginário, uma vez que a linguagem seria simbólica. No entanto, o que temos aqui é um muro da linguagem que se constitui pelo véu do sentido que impregna a fala do sujeito quando ele se dirige ao outro, exatamente para escamotear a sua relação ao Outro. Desta forma estará impedido o acesso do simbólico ao real, estabelecido, aqui, pelo eixo A - S. Ora, cada vez que o analista intervém, “é como proveniente do Outro da transferência que a sua fala continua a ser ouvida, e, com isso o momento do sujeito sair da transferência é adiado ad infinitum”. Mas, se o analista fala do lugar da “falta-a-ser” e não do “ser” ele promove uma brecha neste muro da linguagem, esburacando esta cortina de sentido que cega o sujeito. Este momento se traduz, na clínica, por aquela surpresa que têm, analista e analisante, quando o sujeito que está falando no divã, imerso e gozando de um sentido preestabelecido, percebe-se pego em um vazio que produz uma mudança. Este momento é fugaz, mas fundamental. É o momento em que podemos testemunhar do aparecimento do sujeito como resposta do real no estabelecimento de um novo sentido que se apresenta promovendo o fechamento do inconsciente. Podemos dizer que esta é consequência de um ato: relançar o sujeito em uma nova cadeia significante, uma nova série, produzindo no lugar da verdade um saber que possa sustentar a causa de desejo.
Retomando a questão da identificação, que é uma das balizas que podemos estabelecer entre a psicanálise e a psicoterapia, vamos observar que ela ocorre a partir da escolha que o sujeito faz de um certo traço no Outro. Não é um traço qualquer. É um traço tal que o sujeito acredita poder dizer do desejo deste Outro. É um traço que vai dizer que, deste ponto, o sujeito vai ser amado pelo Outro. Este traço idealizado vai constituir o núcleo de sua fantasia, a borda do enquadre da realidade para este sujeito, porque é a partir deste traço que vai se constituir sua fantasia fundamental e que vai dizer como o sujeito interpretou o desejo do Outro. Esse traço é o traço unário (Einzeger Zug). Em outras palavras, este traço é o S1 ao qual o sujeito se encontra assujeitado. É o mestre que dita o caminho que o sujeito deve seguir para ser amado. Quando Lacan diz que a interpretação deve visar, para além da significação, a qual significante o sujeito se encontra assujeitado, é a isso que ele alude. Ora, tudo isto poderá ser traduzido pela fórmula lacaniana: "o desejo é sua interpretação".
A identificação especular imediata é apenas a sustentação da identificação que está em jogo nesta entrada do S1, já que é esta identificação primeira que sustenta a perspectiva do sujeito no campo do Outro. Em outras palavras: eu desejo o que o Outro deseja que eu deseje. Esta é a perspectiva do sujeito no campo do Outro aonde a identificação especular poderá ser vista como algo que satisfaz. Esta identificação estabiliza a imagem e sustenta o sujeito no mundo de alguma maneira. Na verdade, sempre vão existir pontos de identificação, de ancoragem, afinal Lacan coloca no fim do seu Grafo do Desejo o matema I(A). Estes pontos de ancoragem deverão se sustentar na articulação lógica que vem se instalar ali onde a fantasia fundamental ditava as regras. Isto diz de um novo enlaçamento que se estrutura a partir da responsabilidade e não mais na hipotética garantia do Outro.
No percurso pelo grafo sempre se esbarra em pontos de ancoragens que a identificação sustenta. Na verdade cada ponto de estofo nada mais é que ponto de identificação a um significante.
Retornando ao percurso de uma análise, vamos dizer que o mal-estar, a partir da claudicação do sintoma, produz uma demanda ao Outro para que seja reconstituído o sintoma. Uma vez feito o percurso e experimentado o vazio no ponto onde a falta do Outro se apresenta, acontece a possibilidade de mudar o endereçamento da demanda que não será mais de reconstituição do sintoma, mas de relançamento do desejo de saber. Não mais de apaziguamento no sintoma, mas de uma inquietação produtiva.
De volta ao ponto do Ideal do Eu, o ponto no campo do Outro que o sujeito elege como sendo aquele aonde ele pode ser amado, será visto pelo Outro. É esse ponto que lhe permitirá se suportar numa situação dual. Caso não houvesse esse ponto de ancoragem, de identificação no campo do Outro, esta dualidade especular seria insuportável. É o que acontece na psicose, quando a “Bejahung” fundamental não acontece e, como conseqüência, falta ao sujeito este ponto, produzindo uma tendência a fazer desaparecer o intervalo entre um e outro, sempre que a dualidade especular ocorrer. Na psicose a saída é o delírio, a erotomania; na neurose é o amor. A diferença entre um e outro fica por conta da certeza que o psicótico tem. Para o neurótico, mesmo que seu amor seja tão intenso que fique como se fosse colado ao outro, vai existir uma certa distância colocada pela dúvida: será que ele me ama mesmo? Na psicose a certeza é plena: ele me ama, ou ele me odeia.
Na relação especular, o amor sustenta o engano, mas é nesta relação que se instala o significante necessário à introdução de uma perspectiva centrada sobre o ponto do ideal.  Este ponto, este traço, para que ele possa se tornar um ponto de visada do sujeito, tem que ser um traço que se refere ao objeto 'a'. Ele é o traço da borda de onde o objeto foi subtraído. O “I” é o significante que desenha o contorno nesta borda. É um significante qualquer, mas não pode ser qualquer um. É aquele eleito por estar mais próximo do objeto perdido, por isso Miller pôde matemizar assim este ideal: I(a). Sustentado por este traço vai se instalar o sujeito suposto saber a partir do significante da transferência. Todo o trabalho de análise, todo o trabalho da interpretação, vai na direção de promover a separação deste I do a, para reconstituir, no final, o I(A) na transferência de trabalho.
Nesta coalescência do traço com o objeto, um dando suporte ao outro, um fazendo o outro existir na sua ausência, como ponto de visada, é que vai se estabelecer o engano da transferência. Este engano pode-se dizer muito simplesmente, é o seguinte: se você tem o traço da borda do objeto, você tem o objeto. Neste ponto acontece algo de paradoxal, pois, ao perceber que as coisas não são bem assim, ao se deparar com o vazio deste objeto vai acontecer, como diz Lacan, a descoberta do analista, pois, se ao se dirigir ao sujeito suposto saber para se sustentar na alienação do seu sintoma o analisante encontrar um analista, ele vai se deparar com este vazio, com esta inconsistência do Outro.
Sabemos que toda intervenção do analista aponta para o final de análise. Em outras palavras, não há final de análise sem interpretação. Cumpre ressaltar que há intervenções do analista que não são interpretações. É preciso que haja pelo menos uma interpretação que faça descolar o I do a para que se possa alcançar o final de análise.  
Um analista é aquele que escuta por detrás dos ditos do analisante, como já afirmamos antes. É preciso que ele saiba que existe um para-além da demanda endereçada ao sujeito suposto saber, que é uma demanda de amor. É preciso que ele saiba que se a demanda de amor aponta para um mais-além, o desejo aponta para um mais-aquém. Por isso Lacan forjou esta frase tão contundente quando ele tratou do amor de transferência: "Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente eu amo em ti qualquer coisa mais do que tu, o objeto a, eu te mutilo". E Lacan continua dizendo que apesar desta fala apontar para o oral, ela nada tem a ver com a nutrição, pois seu acento recai totalmente neste efeito de mutilação. É o que vai nos apontar a possível continuação da fala do analisante: "Eu me dou a ti, mas esse dom de minha pessoa - mistério!, se transforma, inexplicavelmente em presente de merda".
Na verdade, se pensamos no agalma, este que sustenta a transferência, este que está dentro do Sileno e que ninguém viu, o que resta é nada. Quando, diz Lacan, após esta passagem em que o psicanalista se transforma em resto – onde o desejo do analista vai ser forjado -, podemos dizer que será possível dar-nos conta da vertigem que acontece quando estamos diante de uma página em branco. Se o sujeito não pode tocar nesta folha em branco, diz Lacan, é porque ele a toma como papel higiênico. Esta distância entre o ideal e o objeto criado, estabelecido pelo princípio de realidade é que promove esta desidealização aterrorizadora.
A liquidação da transferência é um assunto de destituição do sujeito suposto saber que se transforma num resto, exatamente este resto que nunca foi absorvido pelo saber suposto e que ao final, será elevado à condição de causa de desejo. É quando, finalmente, o analista estará reduzido ao representante da representação do objeto "a".

quinta-feira, 6 de junho de 2013

As estratégias do Psicanalista: Psicanálise Pura e Psicanálise Aplicada versus Psicoterapias (IV)

Para diferenciarmos a Psicanálise das Psicoterapias, utilizemos a “topologeria” lacaniana:
Não fazendo silêncio desde o lugar do Outro, ou seja, permitindo que “a análise se reduza a uma sugestão grosseira” o analista impede que o objeto "a" possa reinar como semblante. O que vai acontecer, como conseqüência, é o favorecimento a uma identificação a partir mesmo da ação da sugestão através do convencimento, como vimos acima. Este movimento dirige o vetor para o andar inferior do Grafo estabelecendo duas posições distintas para os dois sujeitos em questão: o 'terapeuta' e o paciente. Eles permanecerão, indefinidamente, cada qual do seu lado sem que as intervenções possam produzir efeito. Teremos então uma topologia da banda circular, com suas duas bordas e suas duas faces, para mostrar que estão presentes dois sujeitos e, portanto dois sentidos sem que nenhum, nunca, possa intervir sobre o outro.
Quando, no entanto, o desejo do analista opera fazendo reinar o objeto "a" ali onde uma resposta é esperada, o vetor é lançado na direção do andar superior do Grafo e, em função mesmo da não resposta, sofre uma meia torção e retorna, ao sujeito, levando sua própria mensagem invertida. A topologia que se desenha não é mais a da banda circular, mas sim a da Banda de Moebius, dizendo que em uma análise temos apenas um sujeito em questão, pois a estrutura desta superfície demonstra a existência de um só lado e de um só corte.
Esta articulação coloca uma questão e abre a possibilidade de discutir um outro aspecto desta diferenciação entre psicanálise e psicoterapias: trata-se do que encontramos no momento em que Lacan trabalha, especificamente no Seminário XI, o conceito de liquidação da transferência. Ali ele estabelece um dialogo com os conceitos estabelecidos pela IPA, no que diz respeito ao final de análise. O corpo teórico que sustenta o trabalho na IPA vai na direção de acreditar que ao final da análise a transferência poderia ser liquidada. Para tanto, seria fundamental que o analista levasse o sujeito à não deixar resto algum, já que a identificação, como é de nosso conhecimento, se estrutura em torno do eixo imaginário e a partir da idealização. Por isso Lacan nos diz que alguns preferem, em sua prática restringir-se a seu Eu e à realidade, da qual conhecem um pedaço. Mas, nesse caso, acontece um "eu x eu", uma luta mortífera de puro prestígio entre dois sujeitos.
 Deste embate só poderá surgir um "Eu" (moi), ali, onde um sujeito enquanto resposta do real deveria surgir. Teremos, então, um reforço da alienação e não a separação buscada.
Retomando o Grafo, lembro-lhes que Lacan, ao construí-lo, descreve o pequeno (d), como índice do estado de desamparo (detresse - hilflosigkeit) no qual se encontra a criança em seu primeiro encontro com o Outro. O passo seguinte é a passagem pelas demandas do Outro ($ <> D) onde vão se estruturar as pulsões em seu movimento de ir e vir em torno do vazio da falta no Outro S(A/). Uma relação muito especial vai se estabelecer a partir da interpretação que se faz desta falta, construindo-se uma cena ($<>a) que precisa ser reinterpretada, em análise, para que um "saber fazer aí com seu sintoma" possa advir em s(A). Isso só é possível porque uma nova referência ao desejo (d) pode ser sustentada. É por isso que afirmamos que só há um sujeito em questão na análise, o analisante, e que é somente a partir de um ponto fora da linha - que correlaciono, nesta situação, à função do desejo do analista - será possível sustentar o corte de uma linha sem pontos.
Retomo o que acabo de dizer por um outro caminho. Partindo do conceito de Sujeito Suposto Saber, Lacan vai nos dizer que esse sujeito, que supostamente sabe sobre o analisante, na verdade nada sabe. O que se liquida na transferência, portanto, é esta suposição de saber, já que durante o processo, a cada intervenção do analista, ela vai sendo desfeita. Em outras palavras, como nos diz Lacan, este sujeito suposto saber deve ser considerado liquidado exatamente no momento da análise em que se começa, a saber, alguma coisa. Por isso ele pode, neste momento, ser chamado de sujeito suposto vaporizado. Ainda uma outra forma de se dizer isto com Lacan: é que a sustentação da transferência se dá pelo fato do analista se colocar como um "X" para o analisante. Quando o analisante vai, passo a passo, esburacando este lugar, o analista vai perdendo esta aura de suposição de saber. A conseqüência disto é que o analista não vai mais ter o poder de relançar o sujeito para mais uma volta no seu percurso. Espera-se que este momento seja aquele que venha encerrar um tempo de compreender e o sujeito em questão possa fazer uma passagem a partir mesmo do resto em que o sujeito suposto saber se transforma.
Para além de suas vestimentas imaginárias, semblantes que o analista pode encarnar para um sujeito, o analisante o verá cair do lugar do Outro do saber para o lugar do “a”, objeto libidinal.
Esta passagem, como a conhecemos na teoria de Lacan, é a passagem de analisante a analista. Quando o sujeito deseja, ele mesmo pode prestar-se a sustentar este lugar de causa.

domingo, 2 de junho de 2013

As estratégias do Psicanalista: Psicanálise Pura e Psicanálise Aplicada versus Psicoterapias (III)


Passemos agora à segunda parte deste tema que foi iniciado nas duas postagens anteriores, quando trataremos a questão da Política do tratamento. Assim como temos feito até aqui, vamos seguindo Lacan passo a passo.
O primeiro parágrafo é bastante explícito: “O analista é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser”.
Com esta introdução ao tema da Política, Lacan continua sua discussão com os colegas da IPA para esclarecer que a direção do tratamento deve apontar para a falta a ser, como já pensava Freud, estabelecendo que a condição mesma da análise é esta brecha através da qual “toda ação intervêm na realidade”. Esta oposição entre dirigir a partir da falta-a-ser ou a partir do ser reabre uma questão bastante atual, tanto para a época quanto para hoje, quando se trabalha a noção de estrutura incluindo aí o nada, opondo-se a concepção estruturalista que vai à direção da adaptação a um todo. Lacan é muito claro nestes parágrafos, ao criticar a psicologia do Ego e seus conceitos de “ego autônomo” que “estaria ao abrigo dos conflitos da pessoa (non-coflictual sphere)” para estabelecer que o problema não é a adaptação ao todo, mas sim o sacrifico do nada. Com esta discussão abre-se espaço para dizer que esse ser, do qual o analista ficou encarregado no momento da instalação da transferência – vocês se lembram que trabalhamos o desdobramento da presença do analista que vai jogar com o morto a partida da análise -, então, esse "ser" deve ser levado, durante a análise, à "falta-a-ser". É importante dizer aqui que esse termo: "falta-a-ser" vai ser substituído, dez anos depois quando Lacan escreve sua "Proposição para o Analista da Escola", por “deser”.
A sétima e última subdivisão desta primeira parte pode ser pensada exatamente deste este ponto, segundo o qual o analista não pretende levar uma análise com seu ser, mas sim, desembaraçar-se do que suportou durante o percurso da análise. Por isso dizemos que a cada vez que um analista produz uma interpretação ou suporta um ato analítico ele visa um passo a mais na direção do "deser", ou, em outras palavras, ele trabalha no sentido da de-suposição do saber que o instalou como Sujeito Suposto Saber. Isto é possível apenas quando o analista sabe que “essa interpretação, quando ele a faz, é recebida como proveniente da pessoa que a transferência lhe imputa ser”, e que é fundamental que “ele interprete tal efeito, sem o que a análise se reduziria a uma sugestão grosseira”. Em outras palavras : é “pelo que o sujeito imputa ao analista ser (ser que está alhures) que é possível uma interpretação voltar ao lugar de onde pode ter peso na distribuição das respostas”.
Com isso em mente, vamos esclarecer um ponto que vem surgindo: A diferença entre Psicanálise Pura e Psicanálise Aplicada. Em primeiro lugar quero deixar bem claro que, se há uma diferença a ser feita, esta se localiza mais entre a psicanálise e as psicoterapias, pois tanto a psicanálise pura quanto a aplicada são psicanálise. Isto por si só já responde, grosso modo, a questão. Quando fazemos psicanálise, seja em nossos consultórios, seja em hospitais, em instituições públicas, como Centros de Saúde, Cersam, etc. “FAZEMOS PSICANÁLISE”! E, Lacan nos apresenta esta afirmação introduzindo o tema desta forma: “Assim, se admite a cura como um benefício adicional do tratamento psicanalítico, ele se precavém contra qualquer abuso do desejo de curar, e o faz de maneira tão habitual que, ao simples fato de uma inovação motivar-se neste, inquieta-se em seu foro íntimo, ou reage no foro do grupo através da pergunta automática que desponta de um 'será que isso ainda é psicanálise?'”
Esta questão se conclui na afirmação de que “uma psicanálise é aquilo que se espera de um analista".

Verifiquemos, então, as diferenças entre Psicanálise e Psicoterapia, com o objetivo explicito de fornecer balizas para que se possa referenciar a prática de cada um, lembrando mais uma vez que Lacan nunca cansou de afirmar que as psicoterapias são um grande mal na medida que bloqueiam, impedem toda e qualquer possibilidade de uma psicanálise. Este trabalho também visa repassar os conceitos que trabalhamos até aqui, visando a segunda parte do texto “A direção do tratamento...” onde retomaremos, de uma forma mais detalhada, “Qual é o lugar da interpretação?”

É a claudicação do saber, da crença no sintoma que abre um espaço para que um endereçamento possa ser feito a um Outro lugar, na esperança de que o estranho possa ser decifrado. Sim, decifrado, por que o sintoma, sendo a primeira mensagem cifrada, plena de sentido, traz em si o ciframento do gozo, que se apresenta como um ponto sem sentido, como um estranho, como um "x" no caminho do sujeito. Miller nos lembra a propósito do sintoma e a crença que sustenta este sintoma: “Lacan reenvia o sintoma analítico a um fato de crença. Como ele diz, acredita-se. Acredita-se que isso pode falar e que isso pode ser decifrado. Acredita-se no sentido”.
Esse "acredita-se" acentua a relatividade transferencial do sintoma. O “acredita-se nele", que tanto surpreendeu quando da sua formulação, é a conseqüência do sujeito suposto saber. Este momento de claudicação, portanto, possibilita que se instale, no ponto de inconsistência do Outro, um Sujeito a quem se supõe um saber sobre o que seria a sua verdade.É importante acrescentar que “quando se diz "suposto", ninguém supõe. Lacan tinha insistido nisso. O sujeito é suposto, mas ninguém supõe, ele é suposto ao significante.” Esta passagem que retiramos de J-A. Miller, nos diz, de forma clara que o sujeito, uma vez marcado pelo significante é um vazio. Vazio é diferente de nada. O nada antecede a constituição do sujeito e dele sabemos apenas no só-depois. Isso está muito claramente exposto por Lacan no seu Seminário XI, “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” quando ele nos lembra que “a ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir a ausência – como o grito não se perfila sobre o fundo de silêncio, mas, ao contrario, o faz surgir como silêncio” dentro desta lógica temporal que se depreende a partir do conceito de só-depois (Nachträlighkeit) que Freud descreveu.
Para que isto possa acontecer, uma escolha, forçada sem dúvida, deverá ser feita para que um significante qualquer venha se alojar aí, onde o saber falhou. Este significante será, ele mesmo, integrante do sintoma que se constituirá neste momento. É a transferência que, agora, pode sustentar estrategicamente a direção do tratamento, enquanto signo de um amor que possibilitará um giro de quarto de volta no discurso. Amor que se sustenta, exatamente na crença transferencial que vem na trilha da instalação do que se chama sintoma analítico. “O amor visa o sujeito”. Esta é a fórmula lacaniana que se contrapõe à fórmula do amor narcísico que visa apenas a imagem.
No entanto, para que as coisas possam continuar caminhando em função da política do tratamento, é fundamental que este lugar ao que se dirige o analisante em função do amor de transferência seja "cadaverizado", para usar uma expressão que Lacan utiliza em "A coisa freudiana", e que seja anulada a própria resistência do analista, o que equivale dizer que ele não vai simplesmente insistir na significação que o paciente tenta fazer valer nas suas proposições. Este ponto abre a possibilidade de inserir uma passagem que, acredito, é o eixo da tese defendida por Miller no texto ao qual nos referimos: “É preciso primeiramente perceber que é justamente porque se define o real como excluído do sentido que se pode colocar sentido sobre o real. Eu não digo "no real", eu digo "sobre". O "nó" supõe um campo, e não existe o “dentro” da rodela de barbante.” E ele continua na construção de um importante algoritmo que indica a importante disjunção entre o simbólico e o real que se esclarece a partir da introdução da teoria dos nós que nos indica que os dois “podem permanecer disjuntos entanto separados”... “Pode-se, sobre o real, colocar o saber, mas na perspectiva do real como excluído do sentido, aí colocar saber não é jamais senão uma metáfora. Escrevemos o sentido sobre o real: Sentido/Real”

Se tomarmos o Grafo do Desejo e colocarmos a claudicação do sintoma em s(A) teremos, no vetor que daí parte, um endereçamento ao (A), enquanto lugar. Se o analista se deixa levar pelo sentido que lhe é proposto, exaltando o Sq, o traço que lhe foi atribuído, ele estará favorecendo uma identificação e esvaziando sua palavra num discurso do convencimento que só vai se prestar a abrir caminho para a circulação no andar inferior do Grafo: s(A) ----- (A) ----- i(a) --- (m). No entanto, para que uma análise possa acontecer é fundamental que, no amor de transferência que se instala, pelo menos um dos dois saiba que não tem o que lhe está sendo atribuído. Isto é o que se espera de um analista: que coloque em operação o desejo do analista que foi constituído em análise.
É somente deste lugar que uma interpretação pode operar. A interpretação que deverá apontar para o vazio, assim como o dedo de São João no conhecido quadro de Leonardo Da Vinci. Em outras palavras, a interpretação, como Freud a apresenta, é onde as pontas que se tem, os clarões de verdade, nós os montamos como saber fazendo uma construção. Isso, do lado do analista. Freud, ele, pensando que essa construção deve ser comunicada ao paciente quando convém. No que ele se distingue de Lacan, no ato. Do lado do analisante, o mesmo termo de construção se impõe. Fala-se de construção do fantasia fundamental. O que indica que a fantasia fundamental é uma construção. Não é saber no real.

O que se objetiva, no final das contas, é uma primeira desarticulação do binário S1- S2 que, enquanto enunciado, enquanto sentido, sustenta sob a barra a relação de um sujeito com o objeto que ele escolheu a partir da interpretação que ele fez do desejo do Outro ($<>a). Objeto esse que ele acredita poder consistir o Outro. A interpretação, portanto, abre um buraco no sentido até então estabelecido. Este vazio cria um estado de desamparo (hilflösigkeit) não deixando outra saída ao sujeito senão o bem-dizer, pois, deslocando-se do eixo do enunciado para o da enunciação, ele se depara com a verdade que circula entre o gozo e a castração e que se elabora como uma relação do sujeito à pulsão. É neste ponto, e somente aí, que o sujeito poderá saber da causa de seu desejo, pois, pela via da fantasia, esta causa está dissimulada pelos benefícios secundários.
Este é o trajeto que vai preparar o momento em que um ato analítico poderá acontecer e possibilitar a que a experiência da fantasia  fundamental possa tornar-se pulsão.