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terça-feira, 18 de junho de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura – I

"Esta operação S(A/) é o que se produz cada vez que, no sentido analítico, há uma interpretação. É ilusório, somente ex-siste de maneira transitória. É a ilusão de que existiria uma chave, uma palavra última. Isto não é verdade. Por isso Lacan podia dizer, às vezes, que a psicanálise era uma impostura. Ela o é, fundamentalmente, porque em todo conjunto de significantes há sempre ao menos um que falta. No entanto, cada vez que se produz a operação analítica que se chama interpretação, sua necessidade está determinada por esta lógica elementar: a interpretação é uma pseudo ‘última palavra’."
 
 
Nossas últimas postagens trataram das diferenças entre psicanálise e psicoterapias, sendo que do lado Psicanálise, colocamos a Psicanálise Aplicada à terapêutica e a Psicanálise
 
Hoje vamos iniciar mais uma etapa: “Qual é o lugar da interpretação?” Serão cinco lições dedicadas a esta segunda parte do texto: “A direção do tratamento...”. Continuaremos passo a passo e, dentro do possível, trazendo as elaborações freudianas, assim como os desenvolvimentos que o próprio Lacan promoveu, tanto do conceito como da prática da interpretação na análise.
 
Acerca disto, existe uma série de textos nos quais Lacan tratou do tema da interpretação. Podemos, no entanto, dizer que este texto: “A direção do tratamento...” é um texto que pode ser denominado “o” texto sobre a interpretação de Lacan.
 
No seu “Relatório de Roma”, como chamamos o texto “Função e campo da palavra e da linguagem...” Lacan introduz a idéia de que a interpretação pode ser uma pontuação.
 
Lembremos que este texto também é importante por Lacan ter falado oficialmente a respeito de sua prática com as chamadas sessões curtas. Nesta época ele estava muito preocupado em estabelecer os fundamentos da teoria da comunicação em psicanálise. Fundamentos que subverte o que estava estabelecido até então, pelo menos para a psicanálise, pois parte da constatação de que o poder da palavra está do lado daquele que escuta. Em outras palavras, ao falar estamos entregando ao outro a potência relativa ao entender ou ao não entender e, mais ainda, de decidir sobre o que se entende ou não. Por isso Lacan vai nos lembrar, de alguma maneira, que a boa fé do outro é uma esperança ineliminável do campo da fala. No entanto, neste mesmo texto e, talvez, mais explicitamente no texto sobre as “Variantes do tratamento padrão” - onde Lacan detalha a estrutura da fala -, vamos verificar uma outra face deste paradoxo com respeito à linguagem: é que a fala marca e ultrapassa também aquele que a pronuncia. Está aí o princípio, segundo o qual o sujeito acaba por receber sua própria mensagem invertida. Este fundamento traz uma nova luz à regra fundamental da psicanálise onde se coloca a possibilidade do sujeito escutar o que ele não queria dizer, ou que não sabia que ia dizer. Podemos dizer que o poder da palavra acaba por se traduzir em impotência daquele que fala, estando este mais a reboque do que na direção de sua fala. Talvez por isso é que podemos ler, na “Direção do tratamento...” esta menção de Lacan ao “lugar ínfimo que a interpretação ocupa na atualidade psicanalítica – não porque tenha perdido seu sentido, mas porque a abordagem desse sentido sempre atesta um embaraço.”
 
Lacan vai formalizar este movimento pelo seu grafo elementar, desenhado no andar inferior do Grafo do Desejo, onde a mensagem que definimos como sendo a mensagem do sujeito nada mais é do que o significado do Outro s(A), ou seja, a mensagem inclui a resposta do Outro. Isto quer dizer que a mensagem não é o enunciado proferido pelo locutor, mas sim o que do enunciado foi recebido e sancionado pela resposta do Outro.
 
Voltando ao texto “ A direção do tratamento...”, verifica-se que a crítica de Lacan à forma como a interpretação se apresenta na época em que escreve diz respeito à paixão que anima os analistas de então (talvez ainda hoje), qual seja, a remeter a interpretação a intervenções imaginárias. É preciso levar-se em conta que nesta época a psicanálise com psicóticos e com crianças tinha uma influência muito forte sobre o dispositivo analítico o que acabou levando a este estado de coisas em que já ninguém sabia mais o que era interpretação ou, como disse Lacan, “explicações, gratificações, respostas à demanda”, ou até mesmo, uma “confrontação” que acabava por não ser “a do sujeito com seu próprio dizer”. É neste ponto que vemos Lacan nos dar uma primeira definição de interpretação (neste texto “A direção do tratamento...”): “um dizer esclarecedor”, contrapondo-o ao “insight” inglês, que nos remete ao “ver” e não ao “escutar”. Predomínio do imaginário sobre o simbólico. Ao definir assim a interpretação vê-se excluída a definição da interpretação pela palavra. Lembremos que Lacan utiliza, durante um longo tempo, a definição da interpretação como “palavra plena”, em oposição à “palavra vazia” do sintoma. Este foi o tempo quando a intersubjetividade estava cotada como uma das maneiras de se estar no dispositivo analítico. Mas, neste texto, Lacan vai refazer este equívoco ao falar em “dizer esclarecedor” e não em palavra esclarecedora. É verdade que ele nunca utilizou esta expressão: palavra esclarecedora. Uma outra razão importante para se utilizar dizer e não palavra é que a palavra é obscurantista, é mal entendido e, se utilizamos o mal entendido como uma das formas de se chegar ao dizer é porque nos sustentamos na ambigüidade do significante.
 
E é exatamente do significante que Lacan vai falar nesta segunda subdivisão, ao dizer da falta que faz levar-se em conta “a natureza de uma transmutação no sujeito”. E ele explicita do que se trata: “Nenhum indicador basta, com efeito, para mostrar onde age a interpretação, quando não se admite radicalmente um conceito da função do significante que capte onde o sujeito se subordina a ele, a ponto de ser por ele subornado.” E continua, estabelecendo de uma forma muito clara o lugar do tempo da interpretação: “A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução — precisamente aquilo que a função do Outro permite no receptáculo do código, sendo a propósito dele que aparece o elemento que falta.” Esta presença do significante, ou melhor dizendo “Essa importância do significante na localização da verdade aparece em filigrana”, pois se por um lado a interpretação não está em lugar nenhum para muitos que se dizem psicanalista, para outros ela estaria em todos os lugares. É essa a critica contundente que faz Lacan ao artigo de Edward Glover sobre a interpretação inexata, aonde ele chega a dizer que todo o dispositivo analítico é uma interpretação ou que o sintoma é uma interpretação inexata do paciente. É aí que se faz valer a teoria do significante no que respeita uma articulação e um lugar de onde ele opera. O sujeito, portanto, estando subordinado ao significante – Lacan vai formalizar, mais tarde, quando matemiza o Discurso do Mestre (S1/$ – S2/a) - nos diz que, mesmo sendo mais livre na tática do que na estratégia e na política do tratamento, essa liberdade é uma liberdade totalmente assujeitada. Assujeitada a seus fins. Em “l’Etourdit” Lacan retoma de alguma maneira estas três propostas sobre a liberdade na direção do tratamento para dizer que a liberdade tática é livre aí onde lhe convêm para seus fins, fins que estão diretamente dependentes da demanda de significação que é a entrada na transferência, onde a estratégia se estabelece. A transferência, lembremos aqui, se instala a partir de uma busca de significação. Dizia a vocês nas últimas postagens que a instalação do Sujeito Suposto Saber acontece quando o sujeito não consegue mais sustentar seu sintoma como laço social e, por isso, ele parte em busca de uma nova significação que lhe restitua o "status quo ante". É por isso que no matema da transferência temos um “S” – que é um significante que se apresenta como fora do sentido, como se fosse um significante no real – tal como acontece com a psicose –, é um vazio que busca ser preenchido com uma significação, no caso um “Sq”. Por tudo isso é que o dispositivo inventado por Freud pode produzir esta coisa nova e rara que Lacan chama de um parceiro que pode responder. O único com o qual não falamos sozinhos. Esta é a diferença fundamental entre a perspectiva estrutural e a fenomenológica. Quando alguém diz: “eu falo sozinho”, o analista nada responde mais sabe que a ausência de diálogo tem seu limite na interpretação. Em outras palavras, o mal entendido está por todos os lados e a comunicação em lugar nenhum. Entretanto existe um dispositivo de exceção: a análise, o único onde o sujeito se fará escutar, ou pelo menos existe uma possibilidade.
 
A interpretação, portanto, só vai produzir efeitos quando este sujeito suposto saber está devidamente instalado e vamos vê-la funcionar quando esta demanda de significação declina.
 

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