Passemos agora à segunda parte deste tema que foi iniciado nas duas postagens anteriores, quando trataremos a questão da Política do tratamento. Assim como temos feito até aqui, vamos seguindo Lacan passo a passo.
O primeiro parágrafo é bastante explícito: “O analista é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser”.
Com esta introdução ao tema da Política, Lacan continua sua discussão com os colegas da IPA para esclarecer que a direção do tratamento deve apontar para a falta a ser, como já pensava Freud, estabelecendo que a condição mesma da análise é esta brecha através da qual “toda ação intervêm na realidade”. Esta oposição entre dirigir a partir da falta-a-ser ou a partir do ser reabre uma questão bastante atual, tanto para a época quanto para hoje, quando se trabalha a noção de estrutura incluindo aí o nada, opondo-se a concepção estruturalista que vai à direção da adaptação a um todo. Lacan é muito claro nestes parágrafos, ao criticar a psicologia do Ego e seus conceitos de “ego autônomo” que “estaria ao abrigo dos conflitos da pessoa (non-coflictual sphere)” para estabelecer que o problema não é a adaptação ao todo, mas sim o sacrifico do nada. Com esta discussão abre-se espaço para dizer que esse ser, do qual o analista ficou encarregado no momento da instalação da transferência – vocês se lembram que trabalhamos o desdobramento da presença do analista que vai jogar com o morto a partida da análise -, então, esse "ser" deve ser levado, durante a análise, à "falta-a-ser". É importante dizer aqui que esse termo: "falta-a-ser" vai ser substituído, dez anos depois quando Lacan escreve sua "Proposição para o Analista da Escola", por “deser”.
A sétima e última subdivisão desta primeira parte pode ser pensada exatamente deste este ponto, segundo o qual o analista não pretende levar uma análise com seu ser, mas sim, desembaraçar-se do que suportou durante o percurso da análise. Por isso dizemos que a cada vez que um analista produz uma interpretação ou suporta um ato analítico ele visa um passo a mais na direção do "deser", ou, em outras palavras, ele trabalha no sentido da de-suposição do saber que o instalou como Sujeito Suposto Saber. Isto é possível apenas quando o analista sabe que “essa interpretação, quando ele a faz, é recebida como proveniente da pessoa que a transferência lhe imputa ser”, e que é fundamental que “ele interprete tal efeito, sem o que a análise se reduziria a uma sugestão grosseira”. Em outras palavras : é “pelo que o sujeito imputa ao analista ser (ser que está alhures) que é possível uma interpretação voltar ao lugar de onde pode ter peso na distribuição das respostas”.
Com isso em mente, vamos esclarecer um ponto que vem surgindo: A diferença entre Psicanálise Pura e Psicanálise Aplicada. Em primeiro lugar quero deixar bem claro que, se há uma diferença a ser feita, esta se localiza mais entre a psicanálise e as psicoterapias, pois tanto a psicanálise pura quanto a aplicada são psicanálise. Isto por si só já responde, grosso modo, a questão. Quando fazemos psicanálise, seja em nossos consultórios, seja em hospitais, em instituições públicas, como Centros de Saúde, Cersam, etc. “FAZEMOS PSICANÁLISE”! E, Lacan nos apresenta esta afirmação introduzindo o tema desta forma: “Assim, se admite a cura como um benefício adicional do tratamento psicanalítico, ele se precavém contra qualquer abuso do desejo de curar, e o faz de maneira tão habitual que, ao simples fato de uma inovação motivar-se neste, inquieta-se em seu foro íntimo, ou reage no foro do grupo através da pergunta automática que desponta de um 'será que isso ainda é psicanálise?'”
Esta questão se conclui na afirmação de que “uma psicanálise é aquilo que se espera de um analista".
Verifiquemos, então, as diferenças entre Psicanálise e Psicoterapia, com o objetivo explicito de fornecer balizas para que se possa referenciar a prática de cada um, lembrando mais uma vez que Lacan nunca cansou de afirmar que as psicoterapias são um grande mal na medida que bloqueiam, impedem toda e qualquer possibilidade de uma psicanálise. Este trabalho também visa repassar os conceitos que trabalhamos até aqui, visando a segunda parte do texto “A direção do tratamento...” onde retomaremos, de uma forma mais detalhada, “Qual é o lugar da interpretação?”
É a claudicação do saber, da crença no sintoma que abre um espaço para que um endereçamento possa ser feito a um Outro lugar, na esperança de que o estranho possa ser decifrado. Sim, decifrado, por que o sintoma, sendo a primeira mensagem cifrada, plena de sentido, traz em si o ciframento do gozo, que se apresenta como um ponto sem sentido, como um estranho, como um "x" no caminho do sujeito. Miller nos lembra a propósito do sintoma e a crença que sustenta este sintoma: “Lacan reenvia o sintoma analítico a um fato de crença. Como ele diz, acredita-se. Acredita-se que isso pode falar e que isso pode ser decifrado. Acredita-se no sentido”.
Esse "acredita-se" acentua a relatividade transferencial do sintoma. O “acredita-se nele", que tanto surpreendeu quando da sua formulação, é a conseqüência do sujeito suposto saber. Este momento de claudicação, portanto, possibilita que se instale, no ponto de inconsistência do Outro, um Sujeito a quem se supõe um saber sobre o que seria a sua verdade.É importante acrescentar que “quando se diz "suposto", ninguém supõe. Lacan tinha insistido nisso. O sujeito é suposto, mas ninguém supõe, ele é suposto ao significante.” Esta passagem que retiramos de J-A. Miller, nos diz, de forma clara que o sujeito, uma vez marcado pelo significante é um vazio. Vazio é diferente de nada. O nada antecede a constituição do sujeito e dele sabemos apenas no só-depois. Isso está muito claramente exposto por Lacan no seu Seminário XI, “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” quando ele nos lembra que “a ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir a ausência – como o grito não se perfila sobre o fundo de silêncio, mas, ao contrario, o faz surgir como silêncio” dentro desta lógica temporal que se depreende a partir do conceito de só-depois (Nachträlighkeit) que Freud descreveu.
Para que isto possa acontecer, uma escolha, forçada sem dúvida, deverá ser feita para que um significante qualquer venha se alojar aí, onde o saber falhou. Este significante será, ele mesmo, integrante do sintoma que se constituirá neste momento. É a transferência que, agora, pode sustentar estrategicamente a direção do tratamento, enquanto signo de um amor que possibilitará um giro de quarto de volta no discurso. Amor que se sustenta, exatamente na crença transferencial que vem na trilha da instalação do que se chama sintoma analítico. “O amor visa o sujeito”. Esta é a fórmula lacaniana que se contrapõe à fórmula do amor narcísico que visa apenas a imagem.
No entanto, para que as coisas possam continuar caminhando em função da política do tratamento, é fundamental que este lugar ao que se dirige o analisante em função do amor de transferência seja "cadaverizado", para usar uma expressão que Lacan utiliza em "A coisa freudiana", e que seja anulada a própria resistência do analista, o que equivale dizer que ele não vai simplesmente insistir na significação que o paciente tenta fazer valer nas suas proposições. Este ponto abre a possibilidade de inserir uma passagem que, acredito, é o eixo da tese defendida por Miller no texto ao qual nos referimos: “É preciso primeiramente perceber que é justamente porque se define o real como excluído do sentido que se pode colocar sentido sobre o real. Eu não digo "no real", eu digo "sobre". O "nó" supõe um campo, e não existe o “dentro” da rodela de barbante.” E ele continua na construção de um importante algoritmo que indica a importante disjunção entre o simbólico e o real que se esclarece a partir da introdução da teoria dos nós que nos indica que os dois “podem permanecer disjuntos entanto separados”... “Pode-se, sobre o real, colocar o saber, mas na perspectiva do real como excluído do sentido, aí colocar saber não é jamais senão uma metáfora. Escrevemos o sentido sobre o real: Sentido/Real”
Se tomarmos o Grafo do Desejo e colocarmos a claudicação do sintoma em s(A) teremos, no vetor que daí parte, um endereçamento ao (A), enquanto lugar. Se o analista se deixa levar pelo sentido que lhe é proposto, exaltando o Sq, o traço que lhe foi atribuído, ele estará favorecendo uma identificação e esvaziando sua palavra num discurso do convencimento que só vai se prestar a abrir caminho para a circulação no andar inferior do Grafo: s(A) ----- (A) ----- i(a) --- (m). No entanto, para que uma análise possa acontecer é fundamental que, no amor de transferência que se instala, pelo menos um dos dois saiba que não tem o que lhe está sendo atribuído. Isto é o que se espera de um analista: que coloque em operação o desejo do analista que foi constituído em análise.
É somente deste lugar que uma interpretação pode operar. A interpretação que deverá apontar para o vazio, assim como o dedo de São João no conhecido quadro de Leonardo Da Vinci. Em outras palavras, a interpretação, como Freud a apresenta, é onde as pontas que se tem, os clarões de verdade, nós os montamos como saber fazendo uma construção. Isso, do lado do analista. Freud, ele, pensando que essa construção deve ser comunicada ao paciente quando convém. No que ele se distingue de Lacan, no ato. Do lado do analisante, o mesmo termo de construção se impõe. Fala-se de construção do fantasia fundamental. O que indica que a fantasia fundamental é uma construção. Não é saber no real.
O que se objetiva, no final das contas, é uma primeira desarticulação do binário S1- S2 que, enquanto enunciado, enquanto sentido, sustenta sob a barra a relação de um sujeito com o objeto que ele escolheu a partir da interpretação que ele fez do desejo do Outro ($<>a). Objeto esse que ele acredita poder consistir o Outro. A interpretação, portanto, abre um buraco no sentido até então estabelecido. Este vazio cria um estado de desamparo (hilflösigkeit) não deixando outra saída ao sujeito senão o bem-dizer, pois, deslocando-se do eixo do enunciado para o da enunciação, ele se depara com a verdade que circula entre o gozo e a castração e que se elabora como uma relação do sujeito à pulsão. É neste ponto, e somente aí, que o sujeito poderá saber da causa de seu desejo, pois, pela via da fantasia, esta causa está dissimulada pelos benefícios secundários.
Este é o trajeto que vai preparar o momento em que um ato analítico poderá acontecer e possibilitar a que a experiência da fantasia fundamental possa tornar-se pulsão.
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