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terça-feira, 25 de junho de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura – II

A interpretação é algo estranho a muitos psicoterapeutas pelo fato mesmo de não se dar no encontro intersubjetivo (empatia, p.ex.) onde se estaria de olho no outro. O que eles não sabem é que a modificação não se produz ali, mas que se opera num lugar Outro e determina o sujeito. Esta é mais uma diferença da interpretação proposta por Lacan em seu “Relatório de Roma”. Lá está proposto que a interpretação atue sobre as ressonâncias semânticas, sobre o significado e não sobre o significante. Aqui, na “Direção do tratamento...” as “ressonâncias” são trocadas pelo despertar da função de código.
 
Ainda centrando sobre a questão do significante, Lacan vai trabalhar na terceira subdivisão como este significante vai questionar a ressonância semântica fazendo surgir, ao final de todos os sentidos um zero, um conjunto vazio. Explicita-se que toda interpretação revela que no conjunto dos significantes pode-se ativar, em qualquer momento, um conjunto a mais, esse conjunto a mais que é nada. Lacan nos diz isso na forma de um enigma: “A metáfora do flogístico que há pouco nos inspirou Glover retira seu caráter apropriado do erro que evoca: a significação emana tão pouco da vida quanto o flogístico, na combustão, escapa dos corpos. Antes, seria preciso falar dela como da combinação da vida com o átomo O do signo, do signo no que, antes de tudo, ele conota a presença com a ausência, introduzindo essencialmente o que as liga, pois, ao conotar a presença ou a ausência, ele institui a presença com base na ausência, assim como constitui a ausência na presença.” Assim Lacan nos diz que a significação é a combinação da vida com o que na época denomina o átomo zero do signo. Podemos dizer que a ressonância semântica soa melhor no vazio.
 
Esta passagem pode ficar um pouco mais clara se retomamos a citação anterior quando ele diz que o analista deve introduzir algo que torne possível sua tradução. Esse algo que se acrescenta é o nada. É assim que Lacan vai explorar o nada da pura diferença entre os dois significantes utilizando-se do exemplo do neto de Freud com seu jogo de carretel e o “Fort-Da” que balbucia.
 
Em outras palavras podemos dizer que o que se explicita com este texto é a sistematização da interpretação como o que, ao agregar um significante ao que vem constituído como bateria de significantes do invólucro formal do sintoma faz surgir a pura diferença, o nada que é o fundamento mesmo do conjunto dos significantes.
 
Por falar em significante penso ser importante, neste momento em que estamos falando da interpretação, re-visitar o significante e a lógica que o sustenta, assim como o seu lugar no discurso da psicanálise. É verdade que os temas mais comuns da psicanálise podem parecer ficar de fora quando se fala da lógica do significante. Um conceito, nós o sabemos, se constrói comparando termos, relacionando-os até que se possa gerar uma nomenclatura que esgote as diferenças entre os termos comparados: o conceito de árvore, por exemplo. Já o matema, como nos diz Lacan em “L'Etourdit”:  "... um puro matema, eu o entendo como o único que se pode transmitir: isso sem nenhum recurso a qualquer experiência ..."
 
Como mencionei acima o discurso, falando do discurso da psicanálise, é preciso que saibamos do que se trata. Para chegar até ele, será preciso passar pelos conceitos de língua e de fala, conceitos estes inseridos, obviamente no conceito de linguagem. Serei breve: A fala se resume ao puro exercício fonatório dos signos, enquanto que a língua é uma estrutura, um código que, independente da vontade do sujeito, existe, persiste e insiste. Saussure nos diz que "a língua não é mais que uma determinada parte da linguagem, ainda que uma parte essencial... é, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade" de falar, dos indivíduos. Temos, então a língua que é o lado, digamos, social da linguagem e a fala que ficaria do lado individual. O discurso seria uma noção intermediária. O discurso está entre fala e língua, e participa, de alguma forma, das propriedades de ambos: é algo que ao mesmo tempo é ser social e ser individual. Assim, "um discurso é nem mais nem menos que determinado grupo de fala decantado e sedimentado pela história" e, neste contexto, o Édipo, p. ex., seria um discurso. Quando dizemos que o Édipo é um discurso, estamos querendo dizer que o universal que faz o homem (ao nível da língua) se inscreve individual, acidental, pessoal e subjetivamente (ao nível da fala), porém com uma regularidade tal que se descobre formações comuns (ao nível de discurso). Uma definição mais abrangedora nos permitiria dizer que o "discurso é a realização individual de todo o social que há na língua." A partir do que acabamos de escutar podemos entender um pouco mais porque Lacan acaba por definir esta interseção da fala e da língua em quatro discursos.
Retomemos nosso trajeto em torno da lógica do significante. Miller nos chama a atenção para o fato de que este sintagma, lógica do significante é um verdadeiro pleonasmo, pois somente existe lógica do significante: "toda lógica implica em si mesma uma desvalorização do significado". Talvez por isso possamos dizer que é necessária uma formação lógica a todo psicanalista. Esta desvalorização do significado em favor do significante já se pode observar deste a lógica, digamos, antiga. No entanto, naquele tempo ela persistia atada à gramática e, por tanto, ligada a língua falada. Para Lacan a lógica que interessa à psicanálise é aquela estabelecida a partir dos trabalhos de Boole, quando foi estabelecida uma certa separação com relação à gramática.
 
Sabemos, como já mencionei a pouco, que Lacan vai buscar na lingüística de Saussure os elementos necessários para construir a sua lógica do significante. A própria teoria de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem nos diz disso. Mas é preciso distinguir lógica e lingüística. A lógica não leva em conta os efeitos do significado, ela se ocupa do significante puro, do significante na medida em que não quer significar nada. Esta definição é básica na obra de Lacan. É fundamental para que possamos suplantar as dificuldades iniciais com a teoria lacaniana. E uma destas dificuldades é, exatamente, esta possibilidade de pensar o significante sem o significado. Aliás, isso é fundamental para podermos nos colocar na posição de escuta, enquanto analistas e, a partir daí produzir interpretações. Certamente por isso Lacan disse, em uma conferência pronunciada por ocasião da abertura da Seção Clínica de Vincenes que ele, infelizmente, não era psicótico o bastante. Isso porque o psicótico tem uma forma muito especial de lidar com o significante. Ele mantém uma relação sustentada na impossibilidade do significante fazer cadeia, o que possibilita a que um sujeito possa ser representado por um significante para outro significante. Em outras palavras, o psicótico estaria na linguagem, pois se sabe muito bem que ele fala, mas não se estabeleceria socialmente fazendo laços através de uma estrutura de discurso.
 
Lacan também utiliza a cibernética como referencia essencial de seu discurso. Foi assim que ele, ao tentar pela primeira vez entender o desejo inconsciente como imortal, a partir mesmo da afirmação de Freud, utilizou o exemplo das mensagens que circulam na máquina cibernética e que não tem, em si mesmo, o princípio de sua detenção.
 
Miller nos chama a atenção para o fato de que o retorno a Freud de Lacan não é meramente um retorno às fontes, aos textos, mas sim uma re-atualização de um conjunto de referências freudianas onde, pode-se perceber que faltou uma referência à lógica. Isso é tanto mais interessante se lembrarmos que Freud foi contemporâneo ao famoso Círculo de Viena onde ferviam as referências lógico-matemáticas. Até mesmo uma irmã de Wittgenstein esteve no divã de Freud, mas parece que isso não foi o bastante para despertar seu interesse pelo positivismo lógico.
 
Deixemos de lado os caminhos de Lacan pelas referências que lhe serviram de base para sua elaboração da teoria da lógica do significante, apenas citaremos que ele, neste seu trajeto, lançou mão de várias contribuições, entre elas a de Poincaré, Frege e Gödel, entre outros.
 
No entanto, devemos tomar cuidado em não considerarmos a psicanálise como um tipo de lógica aplicada, mas sim, que podemos utilizar a lógica para entendermos vários pontos cruciais, como p. ex., a associação livre e a interpretação. A lógica matemática, para Lacan, é a ciência do real, pois permite captar o impossível, mais além das suas articulações. O impossível tem sempre uma articulação significante como referência e o único indício do real é o impossível, ou seja, o que não cessa de não se escrever.
 
Além desta possibilidade de podermos trabalhar de forma mais consistente com a associação livre, podemos perceber a importância desta lógica do significante ao tratarmos com os conceitos freudianos de identificação, repetição e até mesmo de desejo. O desejo que em sua substância é um vazio e do qual só podemos seguir suas marcas através das voltas e reviravoltas da lógica do significante.
 
Por isso Lacan pode dizer, em uma conferência pronunciada em Bruxelas, sobre a histeria que "entre o uso do significante, o peso da significação e a maneira como opera um significante, existe um mundo. É aí nossa prática: aproximar de como as palavras operam. O essencial do que disse Freud, é que há uma maior relação entre o uso da palavra em uma espécie do que de palavras à sua disposição e a sexualidade que reina nesta espécie. A sexualidade está inteiramente presa nessas palavras, está aí a passagem essencial que ele fez.”
 

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