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terça-feira, 24 de setembro de 2013

“Da transferência à interpretação” (II)


Em “A direção da cura...”, Lacan vai introduzir um a mais quando se trata da interpretação. Esta não se resumirá mais “apenas ao preenchimento de lacunas produzidas pelo recalque, mas para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, (a interpretação) deverá introduzir na sincronia dos significantes que aí se compõem, alguma coisa que, de súbito, tornará a tradução possível”.
Do que se trata, portanto é de possibilitar a tradução de algo que, pelo mecanismo do recalque, permanece como um estranho à seqüência significante e que, devido a estar envolvido pela vestimenta significante, se infiltra e se alimenta do sentido que desliza sob esta cadeia de tal forma que só vai existir duas possibilidades para este estranho: ou vai se proliferar indefinidamente, ou vai reinventar, a cada instante, uma nova aparição.  A possibilidade desta tradução só vai existir se a interpretação do analista se ater à condição de que ela “não faz senão recobrir o fato de que o inconsciente já procedeu, nas suas formações - sonhos, lapsos, chistes ou mesmo o sintoma - à suas interpretações.” “É a função do Outro que aí se apresenta enquanto receptáculo do código. Sendo a propósito dele que podemos detectar o elemento faltante”, o estranho.
Neste ponto já se pode verificar uma construção do espaço onde vai reinar o objeto pequeno “a”. Este ponto vazio de significante que denota a presença de um resto do que antes teria sido, miticamente, um todo absoluto. Este resto que foi nomeado como mais-de-gozo é o que permanece como um “X” no caminho do sujeito, impedindo que ele possa estabelecer uma escolha. Este mais-de-gozar se estrutura a partir mesmo da escolha forçada que ocorre por ocasião do “nascimento” do sujeito. Vendo-se colocado diante de duas possibilidades, que Lacan define como Ser ou Sentido, Alienação ou Separação,  a Bolsa ou a Vida o sujeito só tem uma saída: não "ser" para "estar" no mundo como "sujeito por vir". Esta posição é a única que sustenta um sentido a partir de um desejo singular que desliza metonimicamente sob a barra. Como resultado desta operação de separação vai acontecer um resto que permanece como vazio entre o sujeito e o Outro e que pode ser “causa de desejo” ou “mais-de-gozo”. Acontece que a escolha forçada, ou a escolha que nasce desta carta marcada que introduziu o sujeito no mundo, acaba por associar este sujeito a um certo modo de gozo que, por sua vez, define a escolha forçada. O que uma análise pode trazer é acrescentar à possibilidade de escolha, ali onde uma escolha forçada impele o sujeito a manter atrelado a um certo modo de gozo, uma nova opção. Isto será possível se este espaço vazio, onde reina este objeto pequeno “a” for nomeado e, assim, uma nova série significante pode se constituir, produzindo uma retificação pulsional.
Em 1964 Lacan, sustentando-se no fato de o inconsciente não mais está definido pelo que podemos chamar um estoque de significantes, mas sim como correlativo ao discurso analítico, ou seja, ele está ali, aspirando à realização, mais do que esperando ser decifrando (para tanto a metáfora da abertura e fechamento, que vai descartar toda fórmula própria a lhe dar substância) vai dar um passo a mais na sua teoria da interpretação. “A interpretação é uma significação, não importa qual. Ela vem aqui no lugar do s (S/s) e reverte a relação que faz com que o significante tenha por efeito, na linguagem, o significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível. (...) Por isso a interpretação não está aberta a todos os sentidos. Ela é uma interpretação significativa ... e o que é essencial é que o sujeito veja, para além desta significação, a qual significante - sem sentido, irredutível, traumático - ele está, como sujeito, assujeitado”
Em 1969, no seminário sobre o Avesso da psicanálise, Lacan vai dizer que a interpretação, sendo “um saber entanto verdade” se situa entre enigma e citação, onde o enigma é a presença de uma enunciação que não é de ninguém e que não vai corresponder a nenhum enunciado de saber. Seria uma verdade sem saber. Quanto à citação, ela é mais um enunciado de saber que se sustenta num saber afirmado, com nome de autor, etc. Desta forma ela vai introduzir a dimensão de uma enunciação latente, que ela mesma revela, faz vir à luz.
Um pequeno parênteses sobre a “Interpretação oracular e apofântica nos gregos” para nos falar o que vem a ser “o dizer esclarecedor que revela uma enunciação latente”. Vamos partir de um fragmento de Heráclito: “O senhor, cujo oráculo (mantêion) está em Delfos (Délphois) nem diz (légei) nem esconde (Kyptei), mas dá sinais (semainei)”. O dito orácular consiste numa frase que necessita um interprete que se coloca entre deus e o consulente. O equivoco de Édipo, p.ex. foi ter se colocado como interprete numa situação onde ele mesmo era o consulente, sem que o soubesse.
Quanto à revelação, esta não precisa de autorização, pois ela é já uma autoridade por si. Com isto, podemos dizer que não é o oráculo quem erra, mas o interprete. (Ex. do rei que recebe a revelação de que “ao cruzar a ponte um grande império vai cair” e no final, após sua ação de agressão ao inimigo, perde o seu reino.) A interpretação só poderá ser confirmada como verdadeira depois do acontecimento.
O enigma rompe com o negar ou afirmar. Ao convocar um sujeito a associar livremente estamos convocando-o a suspender todo julgamento de verdadeiro ou falso. Estarmos convocando-o a estabelecer enigmas a partir da suspensão da verdade que se propõe neste momento. Será propor-lhe que sustente uma disjunção entre a proposição e a asserção. Um exemplo disto é a proposição “Todo homem é mortal. Sócrates é homem, portanto Sócrates é mortal”. Temos uma proposição e uma assertiva. O que a associação livre propõe é uma suspensão da função proposicional deixando o lugar da assertiva como um vazio, fazendo surgir um “x” ali onde se escreve a função. Esta é uma maneira simples de dizer que a associação livre abre um espaço para o “Logos apophantikus” que traz uma afirmação sobre o ser do sujeito, sobre o “eu sou”, o que supõe, também, sobre os objetos que são chamados por seu ser de desejo. Esclarece-se o apofântico a partir de sua raiz (apó - phainein) que aponta para fazer brilhar, aparecer, iluminar. (phaós/phos = luz).
Apofântico é uma revelação. Logos apophantikus = discurso afirmativo, que ilumina.
Na Grécia antiga, toda a metáfora utilizava a visão como base. Na civilização judaica, ao contrário, as metáforas eram auditivas, o que as colocava mais próximas do pensamento.
O “logos”, a palavra é algo que tanto revela quanto esconde a idéia (radical Ide = ver).
Para que as revelações, dos sonhos, p.ex., pudessem acontecer, Artemidoro sugere: “Se o relato de um sonho aparece mutilado, o intérprete deve acrescentar alguma coisa para fazer sentido”, mudar uma letra de lugar, inverter a ordem, etc.
Assim, para concluir esse parênteses, pode-se sintetizar dizendo que enquanto o sonho é uma revelação, a fala do interprete é apofântica.
Retomemos o caminho de Lacan:
Finalmente, em L´Étourdit, a interpretação vai ser inscrita pelo viés do equívoco, ao nível da homofonia onde a ambigüidade homofônica torna possível o que a ortografia impossibilita. É nesta passagem que Lacan vai mencionar que a interpretação joga com o “cristal” lingüístico, com a difração das significações.
Do lado da gramática, o “eu não te faço dizer” deixa a sua própria ambigüidade agir: aquele que ouve não saberá se o que se diz é um “eu disse”, ou um “eu não te soprei”, já que os dois foram ditos.
Finalmente, no plano da lógica vamos ver agir aquilo sem o qual a interpretação será imbecil. Um exemplo pode ser dado com a formalização freudiana de que o inconsciente é insensível à contradição.
 
Passemos agora a examinar o tema da transferência, partindo do primeiro tópico, da parte III, do texto “A direção do tratamento...” Nesta parte, que Lacan divide em oito, vamos encontrar exposto o seu modo de pensar a transferência através das críticas que ele vai tecer, de forma exaustiva, às outras formalizações da transferência que precederam seu ensino. Assim ele vai passar pelo geneticismo de Ana Freud, pela relação de objeto descrito por K. Araham e desenvolvido por M. Klein e seguidores, para chegar ao conceito de introjeção intersubjetiva, onde trabalha principalmente os textos de seu contemporâneo Mauricie Bouvet.
Na primeira parte, Lacan pôde discutir o que mencionamos acima, ou seja, se existe uma transferência no começo e outra no final de uma análise. Na segunda parte ele vai se questionar sobre qual seria, entre estas duas formas, o motor da regressão. Aí se pergunta se por acaso é a frustração que vai operar uma certa regressão. E, finalmente, vai poder questionar o lugar, na transferência, das fantasias que apontam e incluem ao analista.

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