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terça-feira, 1 de outubro de 2013

A transferência: Desvios e Retificações (I)

Hoje vamos tratar da transferência no que diz respeito aos desvios apontados por Lacan no texto “A direção do tratamento”. Vamos fazer um trajeto ao inverso, portanto. Primeiro os desvios e, depois, vamos trata-la a partir do que Freud construiu e que Lacan desenvolveu.
Na primeira parte do item "IV – Como agir com seu ser", Lacan chama a nossa atenção para um fator muito importante que, durante muito tempo se prestou a muitas confusões no desenvolvimento do conceito de transferência. Fazendo referência a Daniel Lagache desenha-se a importância de introduzir “na função do fenômeno as distinções de estrutura, essenciais à sua crítica”. Explicita-se, nesta passagem, que se trata de uma “alternativa pertinente (...) entre a necessidade de repetição e a repetição da necessidade.” É verdade, no entanto, que esta distinção só será plenamente desenvolvida por Lacan por ocasião de seu Seminário XI, quando ele vai colocar a repetição como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, juntamente com os conceitos de inconsciente, transferência e pulsão.
Outro aspecto criticado é “o fazer dela (a transferência) a sucessão ou a soma dos sentimentos positivos ou negativos que o paciente vota a seu analista.” Na esteira deste questionamento Lacan retorna ao que já foi ligeiramente mencionado em nosso último encontro: o estatuto da transferência no começo, durante e ao final de uma análise. Em seguida lê-se um elogio explicito a um artigo de Ida Malcapine: “The development of the transference”. Mesmo sendo um escrito que não leva sua crítica aonde se espera, Lacan não deixa de elogia-lo, pois se pode ler ali descrita a dificuldade com a qual os analistas se deparam quando se trata de definir o que é a transferência. Malcapine afirma: “Não existe uma única contribuição que compreenda todos os fatos e as várias opiniões (sobre a transferência). Isto é tanto mais notável quanto as diferentes opiniões levantadas sobre o mecanismo da transferência e seu modo de produção parecem pouco compreendidas." Mais adiante ela continua dizendo que isto talvez tenha origem no fato de que “parece tacitamente assumido que o assunto está totalmente compreendido”, além de que se escrever sobre a transferência de uma forma mais  “mais descritiva que explanatória”, ou seja, não se distingue da fenomenologia transferencial a estrutura que a sustenta. A partir deste ponto Malcapine faz um extenso percurso sobre a evolução do conceito, começando por distinguir a transferência da sugestão. Não vou entrar nos meandros desta discussão, pois além de extensa ela vai nos desviar dos nossos objetivos.
A segunda parte começa com uma crítica da parcialidade das teorias com as quais os teóricos da psicanálise tentavam abordar a transferência (referência à 1958). Parcialidade esta que teve reflexos diretos no manejo que implicaram, obviamente, na direção do tratamento. Verifica-se, com Lacan, três particularidades deste momento e suas consequências.
O primeiro está agrupado sob a chancela do “geneticismo” e se sustenta principalmente nas incursões teóricas de Anna Freud e fundamentou os “fenômenos analíticos nos momentos de desenvolvimento implicados e se nutriu da chamada observação direta da criança”, correlacionando tudo isso ao que se costumou chamar de “análise das defesas”. O livro “Os mecanismos de defesa” foi durante muito tempo um clássico e um verdadeiro manual de técnica psicanalítica. O fracasso desta metodologia de trabalho, como explicita Lacan, fica claro pela “solidariedade que supõe (...) à sucessão de fases pela qual Freud havia tentado ligar a emergência pulsional à fisiologia”. Os resultados desta forma de atuar acabam por estabelecer certos “patterns” que buscam “em seu conformismo as garantias de sua conformidade”. Assim, o êxito era conhecido pela “passagem para o patamar superior de renda e a saída de emergência da ligação com a secretária, regulando a escape de forças rigorosamente subjugadas no matrimônio, na profissão e na comunidade política...”. Nesta linha, até mesmo a forma como se trabalhou os conceitos de pulsão de vida e de morte está na contra-corrente do pensamento de Freud: “como o jogo de um par de forças homólogas em sua oposição”.
Em seguida acompanhamos Lacan tratando do que se pode chamar a segunda face da transferência, ou seja “o eixo tomado da relação de objeto” que enfatiza a transferência como a capacidade de amar. Esta teoria, ironiza Lacan, assim como o geneticismo tem a sua origem na nobreza da psicanálise: Abraham. Seu princípio se resume em: é a capacidade de amar que guia o sujeito em direção ao real, ou melhor, à realidade, sendo esta sua única via de acesso. A idéia de um amor total vai mesmo na direção oposta ao que o próprio Abraham trouxe como contribuição à teoria analítica: a parcialidade do objeto. Esta possibilidade do amor total como final de um percurso pela transferência traz, como conseqüência, a exclusão da psicose do tratamento analítico.  Partir do princípio que o psicótico não pode amar é, certamente hoje, considerado um grande equívoco, já que é sabido que na psicose o amor se manifesta claramente – vide os episódios de erotomania, por exemplo, que acontecem na condução de um tratamento com o psicótico.  Mas foi exatamente o trabalho com a psicose que propiciou uma modificação desta dialética entre o amor parcial do objeto e o delírio do amor genital. Esta teoria pode ser resumida opondo-se o amor pré-genital ao amor genital: todas as doenças da vida psíquica eram pré-genitais e o sublime, o que finalmente brinda a felicidade de viver, é o genital. Esta conceituação levou autores à descrições de relações amorosas delirantes, fruto da imaginarização de um relação sexual possível graças à psicanálise.
Impossível, diz Lacan, perceber “o objeto que se apresenta quebrado e decomposto” como um fator patológico, pois é esta a única possibilidade do objeto. Questiona-se, ao mesmo tempo  “o que tem a ver com o real esse hino absurdo à harmonia do genital”. Nesta trilha, vamos encontrar mais adiante no ensino de Lacan o famoso aforismo: “a relação sexual não existe”.
Conseqüência disto é a crítica feroz e explicita àqueles que “tentam camuflar Eros, o Deus negro, de carneirinho do Bom Pastor” para nada saber do que Freud define como as barreiras e as degradações da vida amorosa. É fundamental, continua Lacan, que não se confunda a estrutura do sublime com o orgasmo perfeito. Tudo isso acaba por colocar a idéia da “normalidade delirante da relação sexual” como um “fardo inédito (...) que amarramos para (colocar n)os ombros dos inocentes”.




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