… todo conflito deverá ser ganho na esfera da transferência. (Freud, 1912)
E no começo da psicanálise está a transferência e graças ao analisante. A transferência é, sem dúvidas, o eixo estratégico de uma análise e um dos conceitos fundamentais da psicanálise, juntamente com o Inconsciente, a Repetição e a Pulsão.
Para começar, escolho a definição da transferência que Freud estabeleceu em 1905, no pós-escrito do caso Dora. Assim ele diz:
“O que é a transferência? É uma nova edição ou cópia exata dos impulsos e fantasias que apareceram e se fizeram conscientes durante o progresso da análise; mas ela tem uma peculiaridade, que é característica: trocar alguma outra pessoa do passado pela pessoa do médico. Para dizer de outra forma: experiências psicológicas são revividas, não como pertencentes ao passado, mas como atualidade, aplicando-se à pessoa do médico no momento presente. Algumas dessas transferências tem um conteúdo que só é diferenciado do seu modelo original pelo fato de ser a pessoa do médico a envolvida.”
“Essas são então, continua Freud – para manter a mesma metáfora – meramente novas impressões ou reimpressões. Outras são mais ingenuamente construídas: seu conteúdo foi sujeito a uma influência moderada – Sublimação, como eu a chamo – e podem até tornar conscientes a trama e tirar vantagens inteligentemente de alguma peculiaridade real na pessoa do médico ou nas circunstancias e se ligar a isto. Essas, então, não serão novas impressões, mas edições revisadas”.
É verdade que este conceito de transferência em Freud deriva de sua constatação, em “A interpretação dos sonhos” de que a energia (libido) investe livremente alguns significantes, podendo surgir ligada ao que, aparentemente, nada tem a ver com seu ponto de origem. A esta possibilidade de investir, ora um ora outro significante, ou palavra, como ele diz, Freud denominou de “Uberträngung” que se traduz por transferência. Esta “Uberträngung”, transferência, refere-se especificamente à transferência de valor que se faz em contabilidade quando se transporta um número de uma página a outra, p.ex.
O conceito de transferência como repetição vai ser retomado por Lacan no Seminário XI para explicitar que, se existe repetição na transferência, a transferência não é toda repetição e, mais ainda, que o que se repete na transferência não são as imagos do passado que seriam reeditadas no presente da situação analítica, mas sim a repetição do impossível, a falta, que habita a seqüência significante.
Isto talvez explique porque a principio a transferência foi vista com um empecilho ao trabalho psicanalítico, como uma resistência, na medida em que a sequência significante e, consequentemente o sentido, era enfatizado para que nada do Real em jogo na transferência pudesse vir à tona. Somente após o estudo do Caso Dora é que Freud passou a perceber as possibilidades de se trabalhar com a transferência, transformando-a numa das principais armas da psicanálise.
Esta possibilidade se trabalhar com a transferência, suplantando o que existe de resistência somente pode ser explicitada se verificarmos a eficácia do ato analítico como aquele que possibilita uma análise: “a psicanálise não poderia se instaurar sem um ato, sem um ato daquele que aí autoriza a possibilidade, sem um ato do psicanalista, e que no interior deste ato da psicanálise, a tarefa psicanalisante se inscreve …”
Formalizar o momento de uma análise onde o ato psicanalítico acontece, instalando no lugar da verdade um saber que “possa operar enquanto verdade”, é nosso objetivo, neste trajeto que estamos propondo para dar conta do momento atual da transferência em nossa prática clínica.
Podemos dizer que um sujeito procura análise no momento em que se torna insuportável para ele sua divisão entre saber e verdade. Isto se dá no ponto onde o deslizamento metonímico da cadeia significante se interrompe: “As coisas até aqui caminharam, nos diz alguém, mais não sei porque pararam de andar e até pioraram”. Lacan no seu seminário XI nos diz que “os pacientes, não se satisfazem, como se diz, do que eles são. E portanto, nós sabemos que tudo isso que eles são, tudo isso que eles vivem seus sintomas mesmo, surgem da satisfação, (…) eles satisfazem a qualquer coisa (…) e estando neste estado de tão pouco “contentamento”, eles se contentam”. Só que “por este tipo de satisfação eles se dão muito mal. Até certo ponto é este mal-a-mais a única justificativa de uma intervenção”1 para que no nível da pulsão este estado de satisfação possa ser retificado.
Assim sendo, é a partir deste “mal-a-mais” que, surgindo neste ponto em que o saber constituído do sintoma deixa de obturar a verdade da qual o sujeito não quer nada saber, que vamos ver nascer uma demanda de análise e com ela a transferência.
Esta verdade da qual o sujeito não quer nada saber foi, na primeira fase do ensino de Lacan, colocada em oposição ao saber pelo seu caráter nascente na palavra. Ela corresponde à verdade horrível da castração. Já na segunda fase, a verdade não é mais formulada no singular e torna-se uma variável. Em 1973, em sua “Nota italiana”, o horror da verdade é deslocado para o saber: Lacan vai opor ao horror de saber, o desejo de saber do psicanalista”.
Nossa prática nos leva a constatar que a estabilidade que precede uma demanda de análise se sustenta em uma identificação a um significante que aglutina, de alguma forma, um sentido para um terminado sujeito. A este efeito semântico que estabiliza o sujeito no seu sintoma, um abalo semântico, conseqüência de um encontro com o Real, vai abrir a possibilidade para que uma demanda de análise se constitua. Temos, na história da psicanálise dois exemplos, o primeiro é retirado dos casos clínicos de Freud. Trata-se do encontro do Homem dos Ratos com o Capitão Cruel que vem desfazer estabilização que ali estava constituída pela identificação com o Oficial que ele é, e que está articulada ao Chefe dos Exércitos. Esta articulação está sustentada na “virtudes militares”. O encontro com o Capitão Cruel e sua descrição do suplício dos ratos vai evocar um gozo que não é um significado do Outro, como são as “virtudes militares”. Este encontro, portanto, vai provocar o abalo semântico evocado acima. Um outro exemplo alude a um analisante que, depois de suportar por muitos anos uma relação extraconjugal de sua esposa, sofre seu abalo semântico no momento em que soube que o amante de sua mulher fazia erros de ortografia. Se por um lado este “rival disortográfico” faz rir, por outro lado, ao ser valorizado pela mulher, este “rival” introduz no Outro um abalo semântico, da mesma forma que o Capitão Cruel com seu relato da tortura. A transferência entra, portanto, como o que vem re-estabelecer o efeito semântico.
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