Retomaremos a leitura do texto “A direção do tratamento...” na sua parte IV que está centrada sobre “a questão do ser do analista”. Esta questão, Lacan nos lembra, foi colocada em evidência, pela primeira vez, por Ferenczi, quem sempre se preocupou com a ação do analista que, ainda segundo Lacan, “antecipa de longe os temas posteriormente desenvolvidos da tópica”. A partir destas articulações de Ferenczi, podemos recolocar a questão: trata-se de saber o que pode o analista fazer com o seu ser que não pôde ser "introjetado" pelo analisante. Isto faz referência, é claro, ao que Lacan nos informa sobre o que entende Ferenczi a respeito da “absorção, na economia do sujeito, de tudo o que o psicanalista apresenta no duo como Hic et nunc de uma problemática encarnada”. O final de análise, pode-se rir disto hoje, estaria estruturado sobre a comunicação que o analista faria a seu paciente sobre “o abandono que ele mesmo está em vias de sofrer”. Seria uma forma de, confiando ao paciente este sentimento, promover assim a crença de que ele poderia fazer falta a alguém. Ora, sabemos bem que a “falta-a-ser” deve estar no cerne da experiência analítica. Esta é sua política e é o que define seu objetivo. É fundamental, no entanto, saber que ao se fazer esta comunicação, da forma como propõe Ferenczi, corre-se o risco de alimentar o campo mesmo da paixão do neurótico que é o seu sofrimento de sua “falta-a-ser”.
Mas, o que é o ser? Podemos defini-lo de uma forma suscita, como o faz Laurent: “O desejo”. Ele esclarece esta afirmação diferenciando o ser dos filósofos do ser ao qual Lacan faz referência aqui: “Não somos filósofos, não pensamos que o homem tenha como ser algo que não seja o desejo, somente este constitui seu ser”. Em outras palavras, o ser aqui se refere exatamente à falta-a-ser, à este vazio do sujeito que constitui seu desejo.
Na segunda divisão, Lacan tece alguns comentários em referência aos autores ingleses, especialmente Ella Sharpe a quem tece um elogio reconhecendo-lhe o mérito de preservar “o próprio desejo em um outro lado, em um lugar diferente daquele no qual encarna para seu paciente a figura do gozo”, como assinala Laurent. Seu conselho para os analistas é deixar de lado a bondade e ler um pouco. Esta escolha “é uma feliz indicação de princípios”, no que pese o fato de que o papel central nos textos aconselhados seja o significante falo.
A terceira divisão trata dos finais de análise que preconizam a identificação do sujeito ao analista, se bem que, ironiza Lacan, “certamente varia a opinião quanto a ser de seu eu ou do Supereu (do analista) que se trata”. Neste ponto são destaques as referências a Melanie Klein e às diferenças entre suas articulações em torno do objeto e as de Lacan: “A dialética dos objetos da fantasia promovida na prática por Melanie Klein tende a se traduzir, na teoria, em termos de identificação”. Esta identificação sustenta a presença destes objetos como significantes. “Ele (o sujeito) é esses objetos, conforme o lugar em que eles funcionem em sua fantasia fundamental”. Ou seja, o objeto que interessa a Klein é o objeto da fantasia. Sabemos que o sujeito, em sua fantasia fundamental, oscila entre sua posição de sujeito e sua posição de objeto. Klein acredita que é enquanto objeto que o sujeito pode fazer frente a afânise própria de sua condição. Ao assim fazer, ele se sustenta em seu ser, ser que se apresenta dividido, fragmentado nos intervalos da cadeia significante. Sua presença se dá no próprio desejo que se estrutura na metonímia significante, graças à fantasia que promove a articulação entre sujeito e objeto conseguindo, desta forma fazer “um” imaginariamente. Por isso quando alguém diz: “Eu sou merda” ele está fazendo-se existir identificando-se ao objeto de sua fantasia.
É isto que Lacan critica e recusa: um final de análise a partir desta identificação com o ser da fantasia. Laurent esclarece: “A relação com o ser não é uma relação com a fantasia, mas sim uma relação com o desejo”. É por isso que a demanda de felicidade que chega ao analista deve ser escutada com atenção. “Perde-se muito tempo procurando a camisa de um homem feliz”, escreve Lacan em 1958, para afirmar, em ‘Televisão’ que “o homem é feliz”. Esta demanda, na verdade, é demanda de objeto nenhum: “Ele me pede... pelo fato de que fala: sua demanda é intransitiva, não implica nenhum objeto”. Apenas o sujeito é transitivo aqui, por isso pode-se perceber uma antinomia entre o sujeito e a demanda. É fundamental “formular uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista”. Basta que se convide alguém a falar para que o transitivo do sujeito venha à luz através de um significante qualquer que irá representa-lo para outro significante. Sabemos que o analista vai ocupar este lugar do significante que vem depois, do Sq, do significante qualquer que poderá produzir a significação demandada.
Deste lugar “mais vale não compreender para pensar”, nos diz Lacan fornecendo mais uma formalização do que poderia ser distinguido como indicações técnicas.
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