No texto “POSITION DE L’INCONSCIENT - au congrès de Bonneval” Lacan vai afirmar que “os psicanalistas fazem parte do conceito de inconsciente porque eles se constituem no ponto de endereçamento” e, “a presença do inconsciente, por se situar no lugar do Outro, deve ser procurada em todo discurso, em sua enunciação”.
Enquanto lugar de endereçamento do inconsciente, o analista tem, necessariamente, que se haver com uma passagem que, caso não aconteça, irá impedir que possa se colocar neste lugar ao qual o inconsciente, este Outro, se dirige para falar. É que, “o próprio sujeito do pretendente a sustentar esta presença, o analista deve, no mesmo movimento, ser informado e “colocar em causa”, ou seja: se provar assujeitado à refenda do significante. Em outras palavras, pode-se dizer que o analista já deve ter feito certa passagem que promoveu uma separação, de tal forma que ele pode se colocar numa posição tal que o Real poderá ser tratado pelo Simbólico.
Do que se trata, na verdade é de uma operação cujo início pode ser trabalhado a partir da repartição que Lacan propõe, ao opor, no que diz respeito à entrada do inconsciente, dois campos: o sujeito e o Outro. “O Outro é o lugar onde se situa a cadeia significante que comanda tudo isso que vai poder se apresentar do sujeito, é o campo desse vivente onde o sujeito aparece”. Neste ponto, Lacan acrescenta que é neste campo que se manifesta, essencialmente, a pulsão. Acrescento esta passagem para lembrar a vocês que no curso - Silet - J-A. Miller desenvolveu um estudo onde resgata a história do ensinamento de Lacan, dizendo que, no “Discurso de Roma - Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise”, Lacan deixou de trabalhar o conceito de pulsão, para retomá-lo, exatamente a partir de críticas que recebeu no Congresso de Bonneval. O resultado foram os textos aos quais me refiro aqui: “Posição do Inconsciente” e “Seminário XI - Os quatro conceitos...”
Comecemos pela pulsão: “toda pulsão, sendo por essência, pulsão parcial, nunca representa a totalidade da tendência sexual”. Há, portanto, na estrutura uma impossibilidade de representação total. Esta impossibilidade vai nos dizer que a sexualidade se instaura, no campo do sujeito pela via da falta, pelo fato de que o sujeito depende do significante e que o significante está, de início, no campo do Outro. Esta falta, que é do sujeito, vem encontrar uma outra, esta a falta Real, anterior ao advento do ser vivo, que é a reprodução sexual, ou seja, é isso que o ser vivo perde ao se reproduzir pela via sexuada.
A relação do sujeito ao Outro vai, então, se estruturar em torno desta brecha ponto onde as duas faltas se recobrem fazendo com que a topologia, que mostra o que se passa não será nunca a de uma superfície e uma profundidade, mas uma topologia de borda: o enlaçamento de dois toros mostrando que a circularidade desta relação é dissimétrica.
Essa dissimetria, pode-se colocar na própria definição do significante que, produzindo-se no campo do Outro, faz surgir o sujeito de sua significação: “um significante representa um sujeito para outro significante”. Em outras palavras podemos dizer que o significante não funciona como tal senão reduzindo o sujeito, no instante anterior a não ser mais que um significante: “O significante se produzindo no lugar do Outro ainda não localizado, faz surgir, aí, o sujeito do ser que não tem ainda a palavra, mas ao preço de aí o congelar”. Para designar isto, Lacan buscou em Jones o conceito de “afanasis”, deixando claro que o Outro, sendo para o sujeito o lugar de sua causa, define que o sujeito nunca poderá, ele mesmo ser causa de si mesmo, o que coloca esta passagem pela alienação no campo do Outro como um passo necessário na estruturação mesma do sujeito, já que instala a sua divisão pelo significante que o constitui.
Esta divisão instala o sujeito, no seu nascimento, no campo do Outro, “sob o significante que desenvolve suas redes, suas cadeias e sua história, num lugar determinado”.Esta localização sob um significante vai nos dizer que, ao contrário do que pensavam alguns, inclusive S. Leclaire, a interpretação não está aberta a todos os sentidos, pois ela designa uma só sequência, mesmo que o sujeito possa ocupar vários lugares, conforme o colocamos sob um ou outro desses significantes.
Sendo os dois campos interligados aí, onde a falta é o elemento comum, pode-se trazer-lhes a idéia de que é o Simbólico que vai trazer o Real ao ser, aquele que, como disse a pouco citando Lacan, é o estado do sujeito antes que o acesso a palavra lhe fosse concedido. A promoção deste ser, no Simbólico, pode ser entendida como uma transformação em duas direções: uma que é que a falta é aí introduzida; portanto o advento do Real ao ser produz a falta-a-ser, mas produz também um outro efeito que é isso que Lacan chama a opacidade do ser.
A falta-a-ser é, então correlacionada à alienação do sujeito. A alienação, podemos situá-la, como já dissemos, na cadeia significante, enquanto que a separação, vamos referenciá-la ao intervalo significante que é o correlato do desejo do Outro. Ora, se o sujeito surge aí, onde havia o ser que não tinha ainda a fala, é porque o Simbólico faz emergir qualquer coisa do Real. Em outras palavras, desde que a cadeia significante opera, vai haver uma disjunção entre o ser e o sujeito, e este sujeito que surge do ser, é um sujeito alienado - não porque o significante ao qual ele está assujeitado vem do Outro, pois, como Lacan muito bem explicita à página 841 de seus Écrits, do que se trata não é uma alienação ao Outro. Ele está alienado porque o significante lhe impõe uma escolha forçada; uma escolha forçada entre a petrificação ou o sentido. No entanto, qualquer que seja a escolha que o sujeito fizer, o que resta de escolha forçada é o non-sens, pois o que vai permanecer é a parte sem sentido do significante, aquela que se apresenta como impossível e vai acionar a repetição como necessária. Esta parte de non-sens do significante é o que Freud apontou como o recalque originário.
Em outras palavras, “não existe significante tal que seja equivalente ao ser”, Pois a entrada do significante implica, necessariamente que algo seja perdido o que equivale dizer que o primeiro resultado da escolha forçada é uma perda forçada.
Mas, se por um lado, a alienação implica uma escolha forçada, a separação, esta não é forçada. “A separação é um querer.” A separação implica uma posição do sujeito, uma decisão, para sermos mais explícitos. Lacan vai opor, num jogo de palavras, o VEL da alienação, ao VELLE, o querer que opera na separação. A separação, portanto, não é automática. Para tomarmos um exemplo, vamos dizer que na histeria isto vai aparecer de uma forma bem visível, pois o sujeito histérico se situa inteiramente ao nível da separação, ao nível de interrogar seu ser no Outro, e de se fazer ser no Outro. Em contra-partida, no obsessivo, este querer é um querer impedido, protelado indefinidamente. É por isso que é necessário histericizá-lo para que ele possa sair deste lugar de uma escolha forçada.
O “sujeito alienado” pode ser dito desta forma: “parte perdida necessáriamente”. Isto quer dizer que, da parte que resta ao sujeito, a parte que não está perdida, a parte que lhe retorna, esta parte surge exatamente disto que Lacan denomina “opacidade do ser”. O que se tem, então, é de um lado a falta e do outro a opacidade. Chamo a atenção para o fato de opacidade aqui se referir ao nível do saber, e não ao nível da perda o que, também, a faz uma falta.
A separação é uma operação que tem como finalidade recuperar uma parte do ser pelo viés do Outro, ao fazer-se par, parte do Outro. Seu objetivo seria encontrar um lugar no intervalo onde não há significante no Outro. Por outro lado, esta operação visa responder também à opacidade do ser, fazendo aparecer o “ser que eu sou”, o ser que o sujeito possivelmente é para o Outro. Importante assinalar que não estou dizendo que esta operação visa saber do ser, eu repito que ela visa fazer aparecer. “A separação não conduz a um saber do ser, isso conduz preferencialmente a um fazer aparecer, um fazer emergir na atividade pulsional”.
A separação opera pelo recobrimento de duas faltas, ela opera entre $ e A/. Ela opera, como diz Lacan, entre dois desejos. Tudo se passa ao nível da relação de desejo ao desejo. É aí que o sujeito tenta apreender seu ser, aí onde o desejo do Outro coloca a questão “o que queres?”.
Este ponto, onde a falta do Outro [S(A/)], vai dizer de uma impossibilidade, abrindo um novo caminho para que um desejo se constitua.
O quero dizer com isto é que esta relação entre estes dois desejos, este laço do desejo ao desejo neste encontro de duas faltas, falta do sujeito e falta do Outro vai supor que na separação há um encontro do desejo do Outro. Neste ponto, o sujeito se coloca na tarefa de procurar o ser pela falta do Outro. Enfim, é isto que há: duas faltas e entre estas duas faltas um só objeto que podemos escrevê-lo ‘a’. Há um só objeto que satura essas duas faltas. Como só há um objeto, uma pergunta logo vai se impor: De quem é este objeto?
Esta é toda a problemática da fantasia fundamental porque, como nos diz Lacan, a fantasia tem um pé no Outro. Este pé no Outro é o pé do desejo, pois a fantasia, na verdade é o desejo do Outro, o que quer dizer que é ao mesmo tempo o desejo que vem do Outro e o desejo que recai sobre o Outro. Tem um pé no Outro, mas não os dois; e o que não vem do Outro é precisamente o objeto. É este objeto que responde à questão que nos coloca Freud: que sou eu para o Outro?. Para explicitar um pouco mais esta afirmação digo-lhes que, contrariamente ao que pensam, não é o sujeito quem responde esta questão, nem muito menos o Outro, mas sim isso que resta da operação significante e que se apresenta como o ser da libido, órgão colocado em jogo na pulsão. Em outras palavras, isso que responde não é algo que fala, nem muito menos algo que se inscreve do significante, mas é “algo que em ato, trata de se fazer ser qualquer coisa para o Outro, qualquer coisa a ver, ou qualquer coisa a escutar”. ($<>a)