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segunda-feira, 9 de junho de 2014

A Arte Aplicada à Psicanálise

Existe uma passagem em Lacan, muito conhecida por seus leitores, que se encontra no texto A psicanálise e seu ensino que explicita o que se objetiva quando se transmite. Transcrevo o parágrafo: Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que podemos pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo.
A preocupação de Lacan com a transmissão foi sempre muito clara. Na busca de uma maneira que pudesse efetivar este seu objetivo utilizou-se de vários artifícios e, dentre eles, a referência constante às obras de arte, em especial à poesia e a pintura. Sua escolha por estas duas formas que, de acordo com Hegel se definem como arte romântica, pode ser atribuída a dois fatores. Em primeiro lugar, necessita de material visível para sua representação, porém um material que pode ser definido como de uma visibilidade subjetiva. Hegel nos diz que o aspecto de conjunto sob o qual se apresenta esta forma de arte é o da pintura. Outra matéria por meio da qual se realiza a arte romântica tem, ainda que seja sensível, uma origem mais profundamente subjetiva. Sabe-se que a cor é, por si mesma, um meio de subjetivação, a subjetivação mais profunda, consideramos agora, consiste em suprimir as coexistência indiferentes que preenchem o espaço e que a cor ainda deixa subsistir, idealizando-as e reunido-as em um ponto.
Com respeito à segunda forma a que me referi acima, Hegel tem a dizer o seguinte: Temos visto nesta forma de arte que a interioridade, o sujeito, o conteúdo da obra de arte abandona seu tranquilo silêncio, sua unidade absoluta com sua forma, sua matéria, sua representação exterior, para voltar a si mesma, devolvendo sua liberdade à exterioridade que, por sua vez, volta a si mesma, rompe sua união com o conteúdo, para ser-lhe alheia e indiferente. É a poesia, em seu sentido mais geral, a que constitui a realização desta forma. Na poesia, em efeito, o sujeito e a forma seguem cada um sua via e se particularizam.

Em meio a todas estas referências à subjetividade penso ser muito importante que Lacan, em seu Seminário XI, explicita o uso que faz das obras de arte em sua transmissão, deixando à parte qualquer análise do pintor que acaba sendo sempre tão escorregadia, tão escabrosa, provocando sempre uma reação, no mínimo de pudor, no auditor. Fazer crítica da pintura não é, tampouco, seu objetivo, o que nos leva a dizer, com François Regnault que, segundo Lacan, temos uma ética da psicanálise, mas não uma estética da psicanálise. Há, portanto, uma teoria lacaniana da pintura e ela se encontra nos capítulos VI a IX do Seminário XI quando vai ser tratada a questão do olhar como objeto a. Lacan, portanto, não aplicará a psicanálise à arte, nem ao artista, mas sim, aplicará a arte à psicanálise, explicitando uma prevalência do artista ao psicanalista ao esclarecer que é sua arte que faz avançar a teoria psicanalítica: um psicanalista somente tem direito a sacar uma vantagem de sua posição, ainda que esta lhe seja reconhecida como tal: a de recordar, com Freud, que em sua matéria, o artista sempre lhe leva dianteira, e que não tem porque fazer-se de psicólogo onde o artista lhe desdobra o caminho. Em seu texto sobre Gide, Lacan nos diz que a psicanálise somente se aplica, em sentido próprio, como tratamento e, portanto, a um sujeito que fala e ouve.
Mas é em seu Seminário sobre a Ética que Lacan vai construir uma teoria da arte. Ele o faz tomando como ponto central a ordenação da função da sublimação em referência à Coisa (das Ding):
Esta Coisa é acessível em exemplos muito elementares, que quase são da natureza da demonstração filosófica clássica, com ajuda do quadro negro e de um pedaço de giz. A última vez tomei o exemplo esquemático do vaso para permitir-lhes captar onde se situa a Coisa na relação que coloca o homem na função de meio entre o real e o significante. Esta Coisa, cujas formas criadas pelo homem são do registro da sublimação, estará representada sempre por um vazio, precisamente na medida em que ela somente pode ser representada por outra coisa. Porém, em toda forma de sublimação o vazio será determinante (...) Toda arte se caracteriza por certo modo de organização ao redor desse vazio.
Este vazio, este buraco que é organizado pela arte, de que se trata? Podemos começar a esclarecer este ponto lançando mão do que Freud nos diz quando explicita que o objetivo primeiro, mais próximo da prova de realidade não é encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao que o sujeito se representa neste momento, mas sim, voltar a encontrá-lo. Ora, este objeto estará ali, comenta Lacan, somente quando todas as condições estejam cumpridas, afinal de contas, está claro que do que se trata de encontrar não pode voltar a ser encontrado. O objeto está perdido como tal por natureza. Nunca será reencontrado. Este objeto que nunca poderá ser reencontrado é a Coisa. Este objeto que o mundo freudiano, ou seja, o de nossa experiência, denomina das Ding, enquanto Outro absoluto do sujeito, é o que se trata de reencontrar. 
Não há como negar que esta experiência diz respeito ao ato inaugural do sujeito no campo freudiano, caracterizando o sujeito, seu objeto e, fundamentalmente, seu desejo.
No entanto, podemos dizer, com Lacan, que este objeto nunca foi perdido, ainda que se trate de reencontrá-lo. Nem tampouco ele foi dito, pois em verdade ele desliza por entre as palavras e as coisas construindo uma ilusão de que as palavras corresponderiam às coisas. Ilusão que será sempre desmentida pelo mal-entendido, mas que renasce sem cessar. Por isso Lacan vai definir a Coisa como estando entre o real e o significante. Esta Coisa estará sempre representada pelo vazio, precisamente na medida em que ela não pode ser representada por outra coisa ou, mais exatamente, ela só pode ser representada por outra coisa
Se tomarmos o primeiro caso - o que a representa é o vazio -, estaremos nos referimos à lógica, à lógica do real. Se a tomarmos pelo segundo - o que a representa é outra coisa -, vamos para o lado da representação e, aí sim, estaremos no campo da arte.
No primeiro caso vamos para o lado das variações filosóficas ou teológicas que dizem do conjunto vazio ou da criação ex-nihilo. Com respeito ainda à lógica, mas desta vez do ponto de vista da cadeia significante, o vazio será o significante faltante, o que vai mover a cadeia enquanto impossibilidade, enfim, o zero da série de números. Se ainda desejarmos mais uma referência à lógica, poderemos convocar a topologia para dizer que o vazio será o buraco, etc...
Com respeito à arte, este modo de organização em torno a este vazio está muito bem representado pela ação do oleiro que modela um vaso em torno ao vazio.
No quadro este vazio se apresenta sob a forma da mancha, um pequeno branco, que nada mais é do que a marca do olhar como estando fora. A instituição do sujeito no campo do visível se determina exatamente por este fato, de que “é pelo olhar que entra na luz e é do olhar que recebe o efeito. E o efeito nada mais é do que o de ser capturado pelo imaginário que a função da tela, enquanto uma máscara, sustenta, para além dela mesma, o olhar. Assim é que a tela nada mais é do que um lugar de mediação onde o sujeito joga nesta relação do desejo com a realidade. Realidade esta que só aparece como marginal.
Na verdade há sempre algo, num quadro, que se pode notar como ausência. Lacan o localiza no campo central, onde o poder de separar, do olho, se exerce ao máximo na visão. Em todo quadro, ele é substituído por um buraco, reflexo, em suma, da pupila, por trás da qual está o olhar. Consequentemente, e na medida em que o quadro entra em relação com o desejo, o lugar da mancha central está sempre marcado, e é justamente por isso que, diante do quadro, eu sou elidido como sujeito... 
Lacan, pelo que podemos depreender deste pequeno percurso, utiliza o quadro como uma mostração, como uma forma de transmitir o que foge, o que não se deixa apreender nas malhas do discurso. Visto desde este ponto, o quadro teria uma função que se assemelha à do matema. Não um quadro qualquer, mas um quadro que se deixa perceber em relação com o desejo. Em seu Seminário XI, já mencionado, Lacan vai nos dizer de que quadro se trata quando se objetiva a mostração:
De uma maneira vaga e precisa ao mesmo tempo, e que só diz respeito ao sucesso da obra, Freud formula que, se uma criação do desejo, puro ao nível do pintor, toma valor comercial é que seu efeito tem qualquer coisa de aproveitável para a sociedade, para o que, da sociedade, tomba sob seu golpe. Permaneçamos no vago para dizer que a obra, isso lhes apazigua, as pessoas, isso lhes reconforta em mostrando-lhes que pode haver alguns que vivem da exploração de seu desejo. Mas para que isso lhes satisfaça desta forma, é preciso que haja também esta outra incidência, que seu desejo, o deles, de contemplar aí encontre algum apaziguamento. Isso lhes eleva a alma, como se diz, quer dizer, isso lhes incita a renunciar. Não vêem vocês aqui alguma coisa que indica esta função que eu chamei de domar-olhar?

Para concluir, o uso do quadro, assim como do matema ou da topologia são formas de tentar passar o vazio que se apresenta no centro mesmo do pouco de realidade que constitui nosso mundo. Isso é o que se pode chamar de um estilo.

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