Existe uma passagem em
Lacan, muito conhecida por seus leitores, que se encontra no texto “A
psicanálise
e seu ensino”
que explicita o que se objetiva quando se transmite. Transcrevo o parágrafo:
“Qualquer
retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome só
se produzirá
pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções
da cultura. Essa via é a única formação que podemos
pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela
se chama: um estilo.”
A preocupação
de Lacan com a transmissão foi sempre muito clara. Na busca de uma
maneira que pudesse efetivar este seu objetivo utilizou-se de vários artifícios e, dentre eles, a referência constante às
obras de arte, em especial à poesia e a pintura. Sua
escolha por estas duas formas que, de acordo com Hegel se definem como arte romântica,
pode ser atribuída
a dois fatores. Em primeiro lugar, necessita de material visível
para sua representação, porém um material que pode ser definido como de
uma visibilidade subjetiva. Hegel nos diz que “o aspecto de conjunto
sob o qual se apresenta esta forma de arte é o da pintura. Outra
matéria
por meio da qual se realiza a arte romântica tem, ainda que seja sensível,
uma origem mais profundamente subjetiva. Sabe-se que a cor é,
por si mesma, um meio de subjetivação, a subjetivação
mais profunda, consideramos agora, consiste em suprimir as coexistência
indiferentes que preenchem o espaço e que a cor ainda deixa subsistir,
idealizando-as e reunido-as em um ponto.”
Com respeito à segunda forma a que me referi acima, Hegel tem a dizer
o seguinte: “Temos
visto nesta forma de arte que a interioridade, o sujeito, o conteúdo
da obra de arte abandona seu tranquilo silêncio,
sua unidade absoluta com sua forma, sua matéria, sua representação
exterior, para voltar a si mesma, devolvendo sua liberdade à exterioridade que, por sua vez, volta a si mesma,
rompe sua união
com o conteúdo,
para ser-lhe alheia e indiferente. É a poesia, em seu sentido mais geral, a que constitui
a realização
desta forma. Na poesia, em efeito, o sujeito e a forma seguem cada um sua via e
se particularizam.”
Em meio a todas estas
referências à subjetividade penso ser muito importante que Lacan, em
seu Seminário
XI, explicita o uso que faz das obras de arte em sua transmissão,
deixando à parte qualquer análise do pintor que
acaba sendo sempre tão escorregadia, tão escabrosa,
provocando sempre uma reação, no mínimo de pudor, no auditor. Fazer crítica
da pintura não
é,
tampouco, seu objetivo, o que nos leva a dizer, com François Regnault que,
segundo Lacan, temos uma ética da psicanálise, mas não
uma estética
da psicanálise.
Há,
portanto, uma teoria lacaniana da pintura e ela se encontra nos capítulos
VI a IX do Seminário
XI quando vai ser tratada a questão do olhar como objeto “a”. Lacan, portanto, não aplicará
a psicanálise à arte, nem ao artista, mas
sim, aplicará
a arte à psicanálise, explicitando uma prevalência do artista ao psicanalista ao esclarecer que é
sua arte que faz avançar a teoria psicanalítica: “um
psicanalista somente tem direito a sacar uma vantagem de sua posição,
ainda que esta lhe seja reconhecida como tal: a de recordar, com Freud, que em
sua matéria,
o artista sempre lhe leva dianteira, e que não tem porque fazer-se
de psicólogo
onde o artista lhe desdobra o caminho”. Em seu texto sobre Gide, Lacan nos diz que “a
psicanálise
somente se aplica, em sentido próprio, como tratamento e, portanto, a um
sujeito que fala e ouve”.
Mas é em seu Seminário
sobre a Ética que Lacan vai construir uma teoria da arte. Ele o
faz tomando como ponto central a ordenação da função da sublimação em referência à Coisa (das Ding):
“Esta
Coisa é
acessível
em exemplos muito elementares, que quase são da natureza da
demonstração
filosófica clássica, com ajuda do quadro negro e de um pedaço de giz. A última vez tomei o
exemplo esquemático
do vaso para permitir-lhes captar onde se situa a Coisa na relação
que coloca o homem na função de meio entre o real e o significante. Esta
Coisa, cujas formas criadas pelo homem são do registro da sublimação, estará
representada sempre por um vazio, precisamente na medida em que ela somente
pode ser representada por outra coisa. Porém, em toda forma de
sublimação o vazio será determinante (...) Toda arte se caracteriza
por certo modo de organização ao redor desse vazio”.
Este
vazio, este buraco que é organizado pela arte, de que se trata?
Podemos começar
a esclarecer este ponto lançando mão do que Freud nos diz quando explicita que “o
objetivo primeiro, mais próximo da prova de realidade não
é
encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao que o
sujeito se representa neste momento, mas sim, voltar a encontrá-lo”.
“Ora, este objeto estará ali, comenta Lacan,
somente quando todas as condições estejam cumpridas, afinal de contas, está
claro que do que se trata de encontrar não pode voltar a ser encontrado. O objeto está
perdido como tal por natureza. Nunca será reencontrado.” Este objeto que
nunca poderá
ser reencontrado é
a Coisa. Este objeto que o mundo freudiano, ou seja, o de nossa experiência, denomina “das Ding”, enquanto
Outro absoluto do sujeito, é o que se trata de reencontrar.
Não há
como
negar que esta experiência diz respeito ao ato
inaugural do sujeito no campo freudiano, caracterizando o sujeito, seu objeto
e, fundamentalmente, seu desejo.
No entanto, podemos
dizer, com Lacan, que este objeto nunca foi perdido, ainda que se trate de
reencontrá-lo.
Nem tampouco ele foi dito, pois em verdade ele desliza por entre as palavras e
as coisas construindo uma ilusão de que as palavras corresponderiam às coisas. Ilusão que será
sempre desmentida pelo mal-entendido, mas que renasce sem cessar. Por isso
Lacan vai definir a Coisa como estando “entre o real e o significante”.
“Esta
Coisa estará
sempre representada pelo vazio, precisamente na medida em que ela não
pode ser representada por outra coisa ou, mais exatamente, ela só
pode ser representada por outra coisa”
Se tomarmos o primeiro
caso - o que a representa é o vazio -, estaremos nos referimos à lógica, à lógica do real. Se a
tomarmos pelo segundo - o que a representa é outra coisa -, vamos
para o lado da representação e, aí
sim, estaremos no campo da arte.
No primeiro caso vamos
para o lado das variações filosóficas
ou teológicas
que dizem do conjunto vazio ou da criação ex-nihilo. Com respeito ainda à lógica, mas desta vez do ponto de vista da
cadeia significante, o vazio será o significante faltante, o que vai mover a
cadeia enquanto impossibilidade, enfim, o zero da série de números.
Se ainda desejarmos mais uma referência à lógica, poderemos
convocar a topologia para dizer que o vazio será o buraco, etc...
Com respeito à arte, este modo de organização
em torno a este vazio está muito bem representado pela ação
do oleiro que modela um vaso em torno ao vazio.
No quadro este vazio se
apresenta sob a forma da mancha, um pequeno branco, que nada mais é
do que a marca do olhar como estando fora. A instituição do sujeito no
campo do visível
se determina exatamente por este fato, de que “é pelo olhar que
entra na luz e é
do olhar que recebe o efeito”. E o efeito nada mais é do que o de ser
capturado pelo imaginário que a função da tela, enquanto
uma máscara, sustenta, para além dela mesma, o
olhar. Assim é
que a tela nada mais é do que um lugar de mediação onde o sujeito
joga nesta relação
do desejo com a realidade. Realidade esta que só aparece como
marginal.
Na verdade há
sempre algo, num quadro, que se pode notar como ausência.
Lacan o localiza no “campo central, onde o poder de separar, do
olho, se exerce ao máximo na visão. Em todo quadro,
ele é
substituído
por um buraco, reflexo, em suma, da pupila, por trás da qual está
o olhar. Consequentemente, e na medida em que o quadro entra em relação
com o desejo, o lugar da mancha central está sempre marcado, e é
justamente por isso que, diante do quadro, eu sou elidido como sujeito...”
Lacan, pelo que podemos
depreender deste pequeno percurso, utiliza o quadro como uma mostração,
como uma forma de transmitir o que foge, o que não se deixa apreender nas
malhas do discurso. Visto desde este ponto, o quadro teria uma função
que se assemelha à do matema. Não um quadro qualquer, mas um quadro que se
deixa perceber em relação com o desejo. Em seu Seminário XI, já mencionado, Lacan vai nos dizer de que quadro
se trata quando se objetiva a mostração:
“De
uma maneira vaga e precisa ao mesmo tempo, e que só diz respeito ao
sucesso da obra, Freud formula que, se uma criação do desejo, puro ao
nível
do pintor, toma valor comercial é que seu efeito tem qualquer coisa de aproveitável
para a sociedade, para o que, da sociedade, tomba sob seu golpe. Permaneçamos
no vago para dizer que a obra, isso lhes apazigua, as pessoas, isso lhes
reconforta em mostrando-lhes que pode haver alguns que vivem da exploração
de seu desejo. Mas para que isso lhes satisfaça desta forma, é
preciso
que haja também
esta outra incidência, que seu desejo, o deles, de contemplar aí
encontre algum apaziguamento. Isso lhes eleva a alma, como se diz, quer dizer,
isso lhes incita a renunciar. Não vêem vocês aqui alguma coisa que indica esta função
que eu chamei de domar-olhar?”
Para concluir, o uso do
quadro, assim como do matema ou da topologia são formas de tentar
passar o vazio que se apresenta no centro mesmo do pouco de realidade que constitui
nosso mundo. Isso é o que se pode chamar de um “estilo”.
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