“Tentei escrever o Paraíso.
Não se movam!
Ouçam falar o vento
Esse é o paraíso.”
(Erza Pound, canto 120)
“O que é a angustia? É o que,
do interior do corpo, ex-siste
quando algo o desperta, o atormenta.” (Lacan, Sem. R.S.I.)
Tomemos a palavra !
“E no princípio era o verbo... E o verbo se fez carne." E foi o bastante. Pelo menos no princípio. Bastou que o verbo se tornasse carne e tudo se tornou um, apesar de três. E assim viviam felizes até que... Então a carne não bastou e buscaram novamente o verbo. Mas, tarde demais!!! Algo, a verdade, havia se perdido. E para sempre! Daí para cá continuamos a suar o rosto na tentativa de restabelecer o que um dia teria sido.
Então, aproveitando-se disto, “o verbo habitou entre nós”. E trouxe a esperança. E trouxe a angustia. Esperança e angustia que com palavras se escreve ao nascer, marcando os três registros que fazem nó, que dão sentido e promovem laços, fazendo o discurso da vida de cada um. Real, Simbólico e Imaginário são os três registros que fazem este nó e que cada palavra, enquanto significante, aponta ao ser enunciada. Palavra que tem corpo, consistência, que pode ser imaginada, que pode construir um lugar onde nos iludimos na esperança de um paraíso. Palavra que nos mantém numa imbecilidade desejada para fazermo-nos crer na relação (sexual) e na unidade almejada.
Ah! O gozo prometido!
Esperança vestida de sintoma.
Desejo desviado, condensado, espremido na tentativa da negação da falta no Outro. Outro do qual fazemos corpo e tentamos estreitar em nossos braços para só assim percebemos que esta tentativa “não é outra coisa que o sinal do embaraço mais extremado”. (Lacan. Sem. R.S.I.).
Palavra que nos leva à paixão da ignorância. Paixão esta que nos remete diretamente ao que ex-siste a esta mesma palavra pois, está sempre lá onde não podemos alcançar. Lá, naquele resto que um dia foi parte e que se perdeu no momento em que se provou da árvore do saber. Resto que possibilita o desejo e que é a sua causa. Resto que sinala com a esperança e provoca a angustia, uma vez que não se deixa nunca enganar mas, ao contrário, é a própria presença da verdade.
Palavra, enfim, que dá nome a partir do Nome do Pai. Que faz laço social e que põe no lugar cada coisa na tentativa de promover um sentido em determinada sequência metonímica por onde desliza o desejo na sua busca infinita do resto que a barra impôs como perda. Deslizar este que constrói a fantasia fundamental, lugar possível de contato com este objeto perdido e amostragem simples de nosso paraíso infernal.
Pois bem, um pouco mais deste R.S.I. para reforçarmos ainda mais a idéia do nó. Se o Real necessita de uma escritura para sustentar-se, ou como nos diz Lacan “do Real não há outra idéia sensível que a da escritura, o traço escrito, (...) no simbólico há algo desta urverdrängt, algo que jamais demos sentido, ainda que sejamos capazes de dizer ‘todos os homens são mortais’. Segue-se que este enunciado não tem, por obra do ‘todos’, nenhum sentido. É preciso que se propague a morte em Tebas para que o ‘todos’ deixe de ser puro simbólico e chegue a ser imaginável. É preciso que cada um se sinta implicado em ‘particular’ pela ameaça da peste”. Em outras palavras, se há um registro do simbólico, aquele a quem fomos apresentados quando o verbo habitou entre nós, registro este que possibilita, através da separação que sinaliza, nomear um sujeito e representá-lo para outro significante, este registro não pode seguir existindo só. Ele é parte do nó que enlaça borromeanamente os outros dois registros, onde cada traço simbólico pode ser imaginarizado e seguir sendo apenas a borda do Real.
Retomo a palavra que é capaz de suscitar a angustia, pois é algo que afeta o corpo despertando-o e atormentando-o.
Nossa idéia é basicamente a seguinte: não importa em qual dos três registros (Real, Simbólico ou Imaginário) uma determinada palavra se apresenta, não importa qual a sua face, os três registros estarão sempre presentes e o que vai determinar o surgimento de angustia neste ou naquele momento do processo será sempre o que de Real contém a palavra, ou seja, enquanto marca de uma perda, de uma separação que um dia ocorreu. Sim, separação, pois nos diz Freud: “a angustia não é algo que é criado no recalque; ela é reproduzida como um estado afetivo de acordo com uma imagem mnémica já existente”. (Freud, S. Inibição, sintoma e Angustia. S.A ., VI. Pág. 238).
Talvez tenha soado estranho, a quem ler, ter falado em “face da palavra”. Acredito, no entanto, que posso tornar as coisas menos obscuras à medida que falar dos exemplos clínicos que vou discutir. Contudo, digo-lhes que a palavra, enquanto significante e, portanto, enquanto nó que enlaça os três registros, adentra o discurso por qualquer dos laços deste nó. Se isto ocorre com qualquer palavra, nem todas produzem, pela sua entrada, o surgimento da angustia. Apenas aquelas que guardam uma certa relação com a fantasia fundamental são capazes disto. São palavras que promovem a angustia como sinal.
Escutemos a clínica.
Iara* nos procurou há alguns meses desejosa de se submeter a um processo analítico. Dizia-se inquieta com a sua vida atual e com muitos questionamentos com relação a sua vida profissional e familiar. Já na primeira entrevista disse que nos havia procurado por saber de informações que me diziam ser muito paternal. Isto motivou sua decisão pelo meu nome pois, já que ela estava cheia de conflitos, não poderia se submeter a um trabalho muito pesado. Escutei a demanda de Iara e me coloquei a escutá-la até que pude perceber a possibilidade de uma entrada em análise e uma passagem ao divã. Após algumas sessões surgiu o primeiro sonho de Iara: “Ia fazer uma prova. Não me lembro de ter feito a inscrição, mas já me via colocada lá, para fazer uma prova que não queria. Estava do lado de fora, mas, de repente, me vi colocada na sala. Para fazer a prova precisava ter um caderno e uma folha. Mas só tinha o caderno azul. A folha me faltava. Tentei pedir, mas me disseram que havia chegado atrasada e portanto havia de dar conta assim mesmo. Tentei olhar o do vizinho, mas não consegui.”
Logo após o relato do sonho descrito, solicitei à Iara que tomasse lugar no divã pois conclui que a abertura do inconsciente, sinalizada pelo sonho, marcava o início de um caminho. O comentário de Iara à minha solicitação foi: “Lá vem outro esbarrão !” Considerei importante assinalar que Iara sempre usava esta palavra: esbarrão. Ora para dizer que seus familiares estavam lhe cobrando algo, ora quando eu fazia alguma intervenção.
Na sessão seguinte, Iara voltou com outro sonho: “Ele (apontou o divã) era um cachorro grande com quem lutava. Seu marido assistia e dizia que não me deitasse pois senão ele me comia. Após muita luta, cansei e caí – Aí ele veio e me comeu um pedaço do pé”.
Iara falava muito pouco. Era sempre lacônica ou, então, nos dizia de sua vida por metáforas. Mesmo assim, as palavras saiam com dificuldade. Eram medidas e pesadas. Vejam, por exemplo, como relatou uma aventura amorosa que estava vivendo: “Encontrei o meu Adão e ele me convidou ao paraíso . Passado um tempo, voltou a comentar sobre o que vivia. “O Adão fechou a porta do paraíso. Eu o chamei e ele não escutou.” Pequeno silêncio e: “Mais um esbarrão”. Daí para frente, durante o tempo que permaneceu em trabalho, Iara não falou mais nada, ou melhor, quase nada pois seus comentários se resumiram em dizer o quanto estava difícil ficar em silêncio sentindo que deveria falar. Tudo ali a estava deixando oprimida e angustiada. Então, um certo dia, três meses após ter iniciado, anunciou que não voltaria mais e, não voltou.
Não vou entrar aqui em todas possibilidades de uma discussão clássica que as nuanças apresentadas por Iara me permitiria. Vou, dentro da perspectiva do que anunciei, ater-me apenas à palavra que não foi dita por Iara. Não foi dita enquanto nó contendo os três registros. Explico: Acredito que nos dois sonhos relatados por Iara está a chave do porque ela foi embora tão depressa. A palavra, enquanto portadora de uma falta-a-ser, enquanto barra é a própria apresentação da castração, da impossibilidade da relação (sexual) e, consequentemente, da impossibilidade da entrada no paraíso. Acrescentaria a isto, apenas a título de mais um dado, que o corte promovido no olhar pela passagem ao divã, aumentou ainda mais a ameaça desta castração, ou melhor, a ameaça da constatação da castração.
Mas, diriam vocês, Iara falou disto o tempo todo. Sim, falou. Mas depois se calou. Quando no tempo de se implicar, quando no tempo de trabalhar para que o que disse deixasse de ser puro simbólico, a angustia que avisava que ali havia um perigo, fê-la recuar. O sintoma se fez presente para evitar que a angustia persistisse. A neurose venceu e Iara seguiu em busca de seu Adão ou de alguém que lhe abrisse as portas do paraíso.
E a palavra? A palavra permaneceu como uma simples palavra. Um só laço de um nó que se desfaz por não admitir os outros dois laços como parte dele.
Escutemos Marcos*.
Trata-se de um jovem que me procurou na expectativa de que o ajudasse a vencer o seu medo da morte. Medo este que o deixava, por vezes, imobilizado.
Desde o início do trabalho Marcos vinha falando regularmente deste seu medo quando, num outro dia, ele chegou dizendo que acontecera algo que ele temia tanto quanto a morte: alguém lhe chamara de homossexual em público. Assim Marcos nos relatou o acontecido: “Eu me sinto muito bem como homossexual e não tenho o menor receio de contá-lo a ninguém, inclusive fui eu quem o disse para os meus pais, mas quando aquele velho, meu vizinho, me gritou em altos brados que eu era uma bicha, tive de me conter para não matá-lo”. Marcos estava transtornado ao final do relato. Parecia que a enorme muralha que havia construído em torno de si ruira como Jericó ao som das trombetas de Josué. O mundo todo compartilha agora de seu segredo. A palavra já não é mais sua. Algo se perdeu e esta perda tomou corpo, criou imagem. E a angustia sobreveio para sinalizar o perigo que se fez presente através da face imaginária da palavra.
Uma terceira situação:
Este exemplo não foi colhido da clínica, mas de uma conversa com Joana*, uma pessoa amiga. Joana comentava comigo a respeito da angústia por que passava no seu processo analítico. Dizia estar sofrendo muito e que algo existia para ser dito mas, as palavras não surgiam. Nada podia encontrar que desse um nome ao vazio que se lhe apresentava. Sentia que havia chegado ao limite da palavra. É a face Real da palavra que estava ali, trazendo o nada que nos enche de angustia.
Retomemos a palavra !
Muito ainda há o que escrever, falar, discutir sobre estas idéias que surgem. Mas... melhor não. Deixemo-las onde estão. Assim mesmo. Fragmentada, faltando pedaços, pois foi assim que ela surgiu nestas primeira linhas deste texto que mostra muitos pontos a serem melhor esclarecidos. Afinal, é preciso fazer série. Então, deixemo-lo onde está e, por hora, talvez seja melhor escutarmos o vento já que não nos abandona mesmo este desejo de um dia encontrarmos o paraíso.
* Nomes fictícios.
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