Partirei, hoje, de perguntas tais como “O que é enigma?” De qual enigma falamos quando nos propomos a trabalhar ‘Os enigmas do masculino’? Por que se fala em “enigmas” do masculino, utilizando um substantivo no plural, enquanto que para se falar de “enigma” do feminino se utiliza o singular? O falo poderia ser colocado como sendo o enigma do masculino, e a multiplicidade seria o que é próprio de sua estrutura?
Em seu seminário Silet, J. A. Miller trabalhou cuidadosamente o conceito de falo na obra de Lacan, partindo da relação que existe entre o conceito freudiano de pulsão (“A pulsão, do ponto de vista do biológico, é um conceito limítrofe entre o somático e o psíquico, o representante psíquico da demanda que o corpo faz a mente para trabalhar ...”) e o conceito de falo que Lacan desenvolve a partir do seu Discurso de Roma, mas principalmente no Seminário IV: A relação de objeto, como o que se encontra no limite entre o Imaginário e o Simbólico.
O eixo de nosso texto deverá partir da afirmação de J.A.Miller que “a toda falha simbólica responde uma inserção imaginária”. Isto para dar conta de um caso, descrito por Lacan no seu Seminário IV, que apresentava o que ele chamou de um “exibicionismo reacional”. Este consistia, para este determinado sujeito, em exibir seu pênis no momento em que um trem passava em grande velocidade. “Se trata, diz Miller, de um comportamento exibicionista induzido por um momento da elaboração simbólica tal que ela se repercute na análise e testemunha uma falha. A esta falha, a esse déficit simbólico responde esse comportamento que consiste a apresentar ao Outro anônimo uma imagem fálica...”
O que é o enigma?
Eric Laurent, num texto que se encontra publicado na Revue de Psychanalyse, La Cause Freudianne, nº 23 e que se intitula: “Enigme & Psychose” à pag. 43, nos diz que “segundo Littré, o enigma é a definição de coisas em termos obscuros, mas que reunidos, designam exclusivamente seu objeto e são dados à adivinhar”. Para iniciar seu texto ele esclarece com um exemplo: “Não sou o que sigo, pois se fosse o que sigo, não seria o que sou”. A solução deste enigma é: “um criado (valet)”. Na verdade, em português este enigma perde em parte sua condição de enigma, pois este se sustenta na homofonia existente entre os verbos “être”(ser) e “suivre” (seguir), em francês: “Je ne suis pas ce que je suis, car si j’étais ce que je suis, je ne serais pas ce que je suis”.
Este exemplo tomado de E. Laurent, não só ilustra o fato de que o enigma se sustenta nos fatos da língua e não na realidade factual, como demonstra que, por ser fundamentalmente um fenômeno da enunciação, ela escapa ao sentido preestabelecido e diz de um certo impasse quando tentamos traduzi-lo.
Dentro desta perspectiva do enigma, o ensinamento de Lacan pode ser dividido em três momentos:
1 - De início o enigma é abordado no ensinamento de Lacan a partir do sentido e de sua fuga. Pode-se sustentar, para dizer isto, lembrar-lhes que, nesta fase Lacan desenvolvia sua teorização a partir da barra que mantinha separados significante e significado. Sua proposta girava em torno da possibilidade de o simbólico recobrir todo o campo do imaginário, ficando o desejo como um X, um enigma que desliza metonimicamente a partir da significação produzida pela ação da metáfora paterna. O “esquema L” e a “Metáfora Paterna” são matemas que podem resumir bem o que lhes digo, assim como os “textos “Discurso de Roma”, “Questão Preliminar...” e “Instância da Letra ...” são nossa referência.
2 - Num segundo momento, vê-se Lacan deslocar o enigma do sentido para uma “significação segunda, significação de significação”, como nos diz Laurent. Este momento pode ser situado entre os anos 57-64, quando Lacan vai produzir o seu Grafo do Desejo e concentrar parte de seu estudo ao conceito de Falo. Desta forma o enigma passa a ser a significação produzida pela ação do significante, “que é o objeto mesmo da comunicação”. “Trata-se de fato de um efeito do significante, à medida que seu grau de certeza (...) toma peso proporcional ao vazio enigmático que se apresenta primeiramente no lugar da própria significação”
Os textos da “Direção da Cura...”, “Observações sobre o Relatório de Daniel Lagache” e, principalmente “A Significação do Falo”, marcam esta passagem na teorização de Lacan. É interessante assinalar, “en passant”, que é por estar sustentado nesta proposta da significação que Lacan vai dizer, na “Direção da Cura...”, que “A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que aí se compõem, alguma coisa que subitamente torna a tradução possível...” Este processo de tradução, que na psicose é substituído pelo delírio, vai dizer “que é a título de elementos de discurso particular, onde esta questão no Outro se articula (...) (que) sua cadeia mostra subsistir numa alteridade em relação ao sujeito, tão radical quanto a dos hieróglifos ainda indecifráveis na solidão do deserto”.
3 - Finalmente, a partir mesmo da revisão que Lacan faz de sua teorização do falo e do objeto da psicanálise, ao retomar os conceitos fundamentais freudianos e em especial a pulsão, é que vamos vê-lo “se referir diretamente à experiência de gozo que é o verdadeiro enigma. No momento em que o sentido se ausenta do mundo, o sujeito é deixado vazio de significação, invadido por esta presença que é a experiência de gozo. Enigma fundamental para o ser falante, ele nada tem a ver com uma liberação das alegrias do sexo”.
Este deslocamento só foi possível, como nos diz J. A. Miller em seu seminário Silet, na medida em que Lacan foi, passo a passo deixando de lado a formalização proposta onde o simbólico se apresenta recobrindo todo o imaginário, a partir mesmo da barra do algoritmo S/s, para estabelecer que na relação do simbólico com o real o que está em jogo é um corte que deixa um resto, na medida mesmo em que o simbólico não dá conta de recobrir todo o real. “Acompanhamos no ensino de Lacan, nos diz Miller, um deslocamento que, no fundo, faz passar, para qualificar a operação significante, da barra ao corte. A barra suprime, a barra apaga, a barra mata, a barra risca, e vem outra coisa. Enquanto que o corte, como marca do significante, ele corta, e por isso mesmo ele deixa um resto. E, durante todo o tempo, digamos antes do objeto ‘a’, Lacan fala da barra do significante, mas a partir do momento em que ele promove o objeto pequeno ‘a’, ele fala do corte, isso que ele promove correlativamente, é o corte significante.”
Olá!
ResponderExcluirCelso, enviei uma pergunta e não sei se a página aceitou. Caso não tenha recebido, favor me informar, pois farei de novo o meu comentário!
ResponderExcluirRoberto