Os enigmas do masculino (III)O Seminário V: “As formações do inconsciente” de Lacan, na lição do dia 05/03/58 nos possibilita dar um passo a mais. Nesta lição Lacan vai trabalhar o que podemos chamar de vestimentas fálicas, roupagens com que se apresentam os sujeitos diante do real do sexo. Sabemos que o que vai caracterizar a posição perversa como recusa da mediação simbólica, ou até mesmo diante da falha no simbólico [S(A/)], é uma extrema valorização da imagem: “se trata de uma projeção disso que não se cumpriu na ordem simbólica, sobre o eixo imaginário”.
Após comentar sobre a ‘mascarada’ de Joan Riviére, com sua “assunção de todas as funções masculinas” e fazer um longo estudo sobre a escolha de Gide, Lacan passa a trabalhar com a comédia ‘O balcão’ de Jean Genêt.
Por que comédia? Digamos que é para: “pela intervenção de um parecer que se substitui ao ter, para proteger (o sujeito) de um lado, para aí mascarar a falta no Outro, e que tem por efeito proteger inteiramente as manifestações ideais [I(a)] ou típicas do comportamento de cada um dos sexos, até o limite do ato da cópula ...”. A comedia não é o cômico. Para tomar apenas uma referência que nos fornece Lacan, podemos dizer que a comédia é aquele momento onde o sujeito toma sua relação à fala não como sendo seu ‘affaire’, mas como algo que, ao se articular ele mesmo como aquele que aí goza, ... está destinado a absorver a substância, a matéria. “A comédia, podemos dizer, é qualquer coisa como a representação do fim da refeição comunitária, a partir da qual a tragédia, ela mesma, invocou. É o homem, ao final das contas que consome tudo isso que esteve aí presente de sua substância e de sua carne, e se trata de saber isso que isso vai dar.” Ora, o que isso vai dar é que o seu próprio significado, ou seja, “ fruto da relação significante, vai surgir efetivamente sobre a cena da comédia plenamente desenvolvida. É esse termo que designa ele mesmo necessariamente, enquanto ele é significado, quer dizer, enquanto ele recolhe, ele assume, ele goza da relação a um fato que está, fundamentalmente, numa certa relação com a ordem significante, a aparição desse significado que se chama falo.”
É neste contexto que se apresenta, neste seminário de Lacan, “O Balcão” de J. Genêt, onde nos é apresentado, sob a forma da perversão, o que é definido por uma linguagem crua como sendo “todo o bordel no qual vivemos, na medida que é como toda sociedade, sempre mais ou menos em estado de degradação, pois a sociedade, continua Lacan, não sabe se definir de outra forma senão por um estado mais ou menos avançado de degradação da cultura”.
É neste estado de degradação, colocado a céu aberto pela confusão que se estabelece no momento em que a peça se desenvolve, é que vai “colocar em causa a relação do sujeito com a função da fala”.
É neste contexto de total desordem que toda a manutenção da ordem vai se estruturar em torno do que se chama a polícia, encarnada pelo “resíduo de todo poder, o chefe de polícia”, o herói da peça.
Neste jogo de imagens, onde cada qual é somente pelo que o espelho lhe diz só se sustentando pela confirmação do outro, o Chefe de Polícia se encontra fora da “Nomenclatura”, como se denomina a lista dos que já tiveram suas “funções elevadas à uma nobreza suficiente para propor aos sonhadores uma imagem que os console”. Em outras palavras, como nos diz Lacan, o Chefe de Polícia não havia ainda sido elevado à dignidade dos personagens em cuja pele nos podemos gozar.
O que é que pode ser gozar de, p. ex. seu estado de bispo, de juiz ou de general? O que nos apresenta este artifício é uma Casa das Ilusões onde, efetivamente, isto que se produz ao nível do Ideal do Eu. Isto não é, como se pode pensar, o efeito de uma duplicação do sentido onde a neutralização progressiva de funções enraizadas no interior é esperada, mas sim algo que “é sempre mais ou menos acompanhado de uma erotização da relação simbólica”. Em outras palavras, “gozar de seu estado com essa alguma coisa (...) essa alguma coisa com a qual ele se coloca em relação com uma imagem, com uma imagem portanto, na medida que ela é o reflexo de algo essencialmente significante”.
É este quadro que vai sendo desenhado por Gênet, levando cada um dos personagens a, pouco a pouco, ocuparem imaginariamente lugares de poder. A dona do bordel, p. ex. se transforma em rainha ...
O destino do chefe de polícia, é que vai dar o tom à peça na medida em que ele busca, insistentemente “seu lugar imaginário onde ele pode encontrar, nem que seja por um instante, uma satisfação difícil a obter”. Nesta busca ele apela para suas funções enquanto sendo o último baluarte da ordem, situação esta que não carece de significação se lembrarmos, com Lacan, “que a descoberta do Ideal do Eu foi, em Freud, coincidente com a inauguração deste tipo de personagem que oferece à comunidade política uma identificação única e fácil, a saber o ditador”.
É neste ponto que o chefe de polícia assusta a todos que o circundam ao propor o que será o símbolo de sua função, um falo. Após questionar a igreja, a magistratura e o exército sobre a conveniência de sua escolha, o chefe de polícia é levado a assistir a performance de alguém que havia, pela primeira vez, feita a opção de gozar de sua imagem.
O desfecho desta cena mostra o freguês do bordel, sendo impedido pela prostituta de levar o personagem que escolheu ao ponto de seu destino, exclama no momento em que estava sendo retirado do local: “Nada! Não me resta mais nada! Mas ao Herói não restará grande coisa ...” e, dando as costas ao público, faz o gesto de se castrar.
Para concluir esta série de informações e articulações que, espero, possam trazer mais perguntas que respostas, relembro a pequena passagem do Silet de J.A. Miller, já citada no início deste seminário, quando ele nos fala do exemplo que Lacan nos fornece em seu Seminário VI da análise de um caso de exibicionismo reacional. “Trata-se, no fundo, nos diz Miller, de um comportamento exibicionista induzido por um momento da elaboração simbólica tal que ela se repercute na análise e testemunha um falha. A esta falha, a este déficit simbólico responde esse comportamento que consiste a apresentar ao Outro anônimo uma imagem fálica”. De alguma maneira é o que pudemos ver se desenrolar no relato da peça de J. Gênet, ou seja, “na falta de uma harmonia com o símbolo viril, o sujeito apresenta ao Outro a imagem fálica (...) o que caracteriza a posição perversa como uma recusa da mediação simbólica, o que é correlativo de uma valorização da imagem, fôrma da perversão.”
Mas, afinal, quais são os enigmas do masculino? Será que o “fato da feminilidade encontrar seu refúgio nesta máscara (fálica) pelo fato da Verdrängung inerente à marca fálica do desejo, (e) a curiosa consequência de fazer com que no ser humano o desfile viril, ele mesmo pareça feminino”, pode nos levar a pensar que, afinal de contas, o enigma do masculino é o feminino?
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