O sintoma: psicanálise e medicina
É nesse ponto que se pode ver uma discordância fundamental entre os conceitos de sintoma para a medicina e para a psicanálise. Se, por um lado, a posição médica se refere à noção de harmonia como um objetivo a alcançar quando se está diante de um sintoma — este, portanto, aparecendo como o que perturba e destrói a harmonia —, o sentido do sintoma vai mudar caso a referência não for mais a harmonia que ele vem perturbar, mas, sim, o fato de que ele é harmônico a uma falta, a um menos, ou seja, à castração. J.-A. Miller, em um texto sobre o envelope formal do sintoma, diz que a palavra sintoma contém o radical “sin”, que quer dizer síntese, reunião, conjunto, o que vem junto, o que coincide. Dessa forma, o sintoma é o que faz coincidir duas coisas: a castração e a satisfação.
A castração é “o ser do sintoma”, seu núcleo. Esse núcleo vai se apresentar embrulhado, envolvido pelo “envelope formal do sintoma” — seu invólucro significante. Esse termo, utilizado por Lacan no texto De nossos antecedentes, surge de um certo retorno à psiquiatria clássica de Clérambault e da “necessidade que levou Lacan à psicanálise” por ocasião do seu famoso caso Aimée: “Pois a fidelidade ao envelope formal do sintoma, que é o verdadeiro traço clínico do qual tomamos o gosto, leva-nos a esse limite onde ele retorna em efeitos de criação”. Esta afirmação de Lacan, feita em 1966, aparece como um prenúncio do que, mais tarde, será definido como “saber aí fazer com seu sintoma”.
Partindo da frase de Lacan descrita acima, Miller chama a atenção para os dois eixos do sintoma: (1) existe, por um lado, um núcleo que se pode denominar castração, sofrimento, “mais-de-gozo” em conseqüência do “menos-de-gozo” da operação significante. (2) Existe, por outro lado, no sintoma, uma mensagem endereçada ao Outro e que espera uma decifração.
Em outras palavras, é possível um trajeto na formação do sintoma que, a partir de um "menos" que se instala como conseqüência da extração do objeto "a" pela operação significante, faz surgir uma intenção de significação que produz uma resposta que, exatamente por ser da ordem do impossível, relança a busca de significação. Essa busca de significação é explicada por Miller como sendo a “transformação da queixa que emerge do fundo do desprazer em mensagem [...] fazendo existir o sujeito de uma maneira nova no campo do Outro, e sob forma constituída”. No entanto, quando se formata uma queixa ou, como nos diz M. Silvestre, quando fazemos coincidir uma queixa e um sofrimento, vamos perceber que ela se desnatura, pois há o que se pode dizer e o que não se pode dizer pela própria impossibilidade do significante em dizer tudo.
Essa dificuldade é o que faz com que a lógica própria do Outro, ao estabelecer essa relação entre queixa e sofrimento, vá congelar e fixar a queixa numa certa cena. Ou seja, do que se trata aqui é de um certo percurso pulsional que se estabelece na relação do sujeito com “um dos objetos que havia anteriormente abandonado”, porque “a libido é induzida a tomar o caminho da regressão pela fixação que deixou atrás de si, nesses pontos do seu desenvolvimento”. Pontos em que queixa e sofrimento, gozo e mensagem, castração e envelope formal se fizeram coincidir.
Quando alguém vai até um analista, o que se espera é que ele faça um relato de sua infelicidade. Nesse relato, pode-se, então, perceber que há uma harmonia, há um arranjo que faz existir uma satisfação ali mesmo onde o sujeito se queixa de dor. Esse é o paradoxo que Lacan define em Televisão, quando nos diz que “o sujeito é feliz”. E continua: “É mesmo sua definição, pois que ele não pode nada dever senão ao momento oportuno (heur), à sorte (fortune) dito de outra forma, e todo momento oportuno é bom para isso que o mantém, ou seja, porque ele se repete”.
Por tudo isso se pode afirmar que “o sintoma analítico, quando formatado no campo do Outro, constituído como o que se instaura da cadeia significante, tem estrutura de ficção”. Isso demonstra-o muito bem o sintoma histérico, à medida que, na histeria, vê-se o sintoma como ser de verdade do sujeito. Quer dizer, no sintoma histérico “o objeto ‘a’ como real virá no lugar da verdade”, como muito bem o mostra a estrutura do Discurso da Histeria.
Pode-se acrescentar, ainda, que, ao instalar-se como “ser de verdade”, o sintoma promove a construção de uma suposição de saber no campo do Outro. Partindo da premissa estrutural de que não há relação entre o sujeito e o Outro, o sujeito está, desde sempre, afastado de sua verdade. O laço possível entre o sujeito e o Outro faz-se pelo sintoma. E se faz com a criação de um “ser de saber” ali, onde a verdade lhe está vetada.
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