Total de visualizações de página

terça-feira, 9 de junho de 2015

A interpretação em Lacan (II)

Em 1964 Lacan vai dar  um passo a mais na sua teorização da interpretação ao dizer que “a interpretação é uma significação que não importa qual. Ela vem aqui no lugar do s (S/s) e reverte a relação que faz com que o significante  tenha por efeito, na linguagem, o significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível. (...) Por isso a interpretação não está aberta a todos os sentidos. Ela é uma interpretação significativa ...  e o que é essencial é que o sujeito veja, para além desta significação, a qual significante - sem sentido, irredutível, traumático - ele está, como sujeito, assujeitado”.
Em 1969, no seminário sobre o Avesso da psicanálise, Lacan vai dizer que a interpretação, sendo “um saber enquanto verdade” se situa entre enigma e citação, onde o enigma é a presença de uma enunciação que não é de ninguém e que não vai corresponder a nenhum enunciado de saber. Seria uma verdade sem saber. Quanto à citação, ela é mais um enunciado de saber que se sustenta num saber afirmado, com nome de autor, etc. Desta forma ela vai introduzir a dimensão de uma enunciação latente, que ela mesma faz vir à luz.
Finalmente, em L´Étourdit, a interpretação vai ser ins­crita pelo viés do equívoco, ao nível da homofonia onde a ambiguidade homofônica torna possível o que a ortografia impossibilita. É nesta passagem que Lacan vai mencionar que a interpretação joga com o “cristal” lingüístico, com as dispersões das significações. 
Do lado da gramática, também se referindo ao L’Etourdit,   lembro-lhes a intervenção mínima: “eu não te faço dizer”, que deixa a própria ambiguidade agir: aquele que ouve não saberá se o que se diz é um “eu disse”, ou um “eu não te soprei”, já que os dois foram ditos.
Finalmente, no plano da lógica vamos ver agir aquilo sem o qual a interpretação será imbecil. Um exemplo pode ser dado com a formalização freudiana de que o inconsciente é insensível à contradição.

No dia seguinte à minha interpretação, Tereza retorna,  deita-se no divã e diz: “não entendi nada do que aconteceu ontem. Não vá me dizer que aquela estória de ‘matar a ré’ tem a ver com a morte de meu pai...”.
Algo operou pois, no “só depois”, foi possível dar conta de que houve uma mudança subjetiva. Todas as intervenções anteriores, mesmo que tenham feito alusões, direta ou indiretamente, a esta passagem de sua vida, nunca haviam sido escutadas.  Foi necessário um corte para fazer surgir o sujeito das significações pré-estabelecidas na demanda do Outro.
Pode-se formalizar o que se passou naquele momento, utilizando o grafo do desejo e a topologia das bandas.
Em primeiro lugar, vamos esclarecer que não há interpretação sem transferência. A ordenação que Lacan apresenta na “Direção do Tratamento...” deixa isto muito claro: “retificação subjetiva ... transferência... interpretação...”
A claudicação do saber, da certeza do sintoma, quando Tereza se viu ameaçada pela falta financeira, abriu um espaço para que um endereçamento pudesse ser feito a um Outro lugar, na esperança de que o estranho pudesse ser decifrado. Sim, decifrado, por que o sintoma, sendo a primeira mensagem cifrada, plena de sentido, traz em si o ciframento do gozo, que se apresenta como um ponto sem sentido, como um estranho, como um x no caminho do sujeito. Este é o momento em que se instala, no ponto de inconsistência do Outro, um Sujeito a quem se supõe um saber sobre o que seria a sua verdade. Para que isto pudesse acontecer, uma escolha, forçada sem dúvida,  foi feita e um significante qualquer se alojou aí, onde o saber falhou, para ser, ele mesmo, integrante do sintoma. É a transferência que, agora, pode sustentar, estrategicamente, a direção do tratamento, enquanto signo de um amor que possibilitará um giro de quarto de volta no discurso. 
No entanto, para que as coisas pudessem continuar caminhando em função da política do tratamento, foi fundamental que este lugar, primeiramente imaginário, fosse “cadaverizado”, para usar uma expressão de Lacan em “A coisa freudiana”, e que fosse anulada a própria resistência do analista, o que equivale dizer que ele não vai simplesmente matraquear a significação que o paciente tenta fazer valer nas suas proposições.
Tomando o Grafo do Desejo e colocando a claudicação do sintoma em s(A) faremos do vetor que daí parte um endereçamento ao (A), enquanto lugar. Se a posição do analista não é “cadaverizada”, deixando-se levar pelo sentido que lhe é proposto, ele vai exaltar o Sq, o traço que lhe foi atribuído, favorecendo a instalação da identificação e esvaziando sua palavra num discurso do convencimento que só vai se prestar a abrir caminho para a circulação no chamado andar inferior:          s(A) ----- (A) ----- i(a) ----- (m). Podemos também dizer do que se passa neste nível, utilizando a topologia da banda circular, com suas duas bordas e suas duas faces, para mostrar que aí vai existir dois sujeitos em questão e, portanto dois sentidos sem que nenhum, nunca, possa intervir sobre o outro.   
Mas, como nos lembra Lacan desde o seu Discurso de Roma, a interpretação por alusão é uma forma de se evitar este confronto narcísico próprio de um debate sustentado no eixo    a ---- a’. A interpretação deverá, assim como o dedo de São João, apontar para o vazio entre dois significantes. No entanto, é fundamental lembrarmos, com Lacan, que “a interpretação não está aberta a todos os sentidos”. Apesar de ser uma interpretação significativa, o “essencial é que o sujeito vise, para além da significação, a qual significante - sem sentido, irredutível, traumático - ele está, como sujeito, assujeitado.”
Quando Tereza, enunciou o verbo arrematar, a escanção feita desarticulou o binário S1- S2 e abriu um buraco no sentido até então estabelecido, ou melhor até então restabelecido pelo sintoma analítico.  Foi o “dizer” do analista que produziu seus efeitos sobre os “ditos” de Tereza. Dizer que se sustenta na “estrutura da letra que, na medida em que é idêntica a ela mesma, é um significante fora do simbólico, realizado”. Por isso é um dizer sem sujeito, que pode produzir um vazio a partir do deslocamento da letra, criando um estado de desamparo (hilflösigkeit)  e, não deixando a analisante outra saída senão bem-dizer. 
Deslocando-se, assim, do eixo do enunciado para o da enunciação, Tereza pode se deparar com a verdade que circula entre o gozo e a castração e se elabora como uma relação do sujeito à pulsão. É aí, nesse nível, que o sujeito poderá saber da causa de seu desejo pois,  pela via da fantasia, esta causa está dissimulada pelos benefícios secundários.
Esta é a possibilidade de fazer com que a “experiência da fantasia  se torne a pulsão”.
Quanto à topologia das superfícies, o silêncio do analista em ‘A’ fez com que a demanda que lhe era dirigida sofresse uma meia torção, criando uma banda de Möebius e, retornando ao sujeito pela via do desejo indo de ($<> D)  a S(A/) atravessa ($<>a) para se encontrar, um novo sujeito em s(A).  Esta é a maneira de dizer que só há um sujeito em questão na análise, o analisando, e que é somente a partir de um ponto fora da linha que se torna possível sustentar o corte de uma linha sem pontos.  


      

Nenhum comentário:

Postar um comentário