O Passe
Pois bem! Quando falamos de Passe o que estamos objetivando é poder isolar aquilo que é do discurso analítico e que poderia, segundo Lacan, tornar-se mais de acordo com o que deveria ser um verdadeiro recrutamento para a Escola. Ao lado disso, ele deve ser um dispositivo que possa investigar o que permite a alguém pensar que pode ocupar o lugar do analista. Para isso convida-se alguém, que está perto de se autorizar, se é que já não o fez, a comunicar o que o fez decidir-se, o que o fez autorizar-se e, assim, engajar-se num discurso do qual não é nada fácil tornar-se o suporte.
Em sua "Proposição sobre o Psicanalista da Escola", Lacan nos lembra que "existe um Real em jogo na própria formação do psicanalista" e que este real provoca seu próprio desconhecimento, e até mesmo produz sua negação sistemática. Por isso, com o procedimento do Passe, Lacan convida aqueles que possam "testemunhar dos problemas cruciais nos pontos vivos em que se encontram para a análise, especialmente na medida em que eles mesmos estão na tarefa ou pelo menos na via de resolvê-los", com o intuito de iluminar a sombra espessa que recobre essa passagem.
A experiência do Passe tem se mostrado, ao longo de toda a sua existência, uma experiência absolutamente incomum. O que aí se testemunha é a produção de um saber novo que possa dar conta deste ponto de opacidade que sempre produz um sujeito como resposta, quanto se trata de um ser falante. Um clarão, um relâmpago sobre este ponto de opacidade muito bem representado pelo umbigo do sonho.
Isso se esclarece um pouco mais se relembrarmos aqui a frase de Heráclito que Lacan utiliza em seu texto "Sobre o passe": “ta panta oiakizei kerauno”, cuja tradução possível seria: “só o relâmpago faz isto: por um instante num clarão, o universo”. Na língua grega, ta panta, que na proposta acima está traduzido por universo, deveria se traduzir por alguma coisa como “os todos”, mas os todos enquanto diverso, assim como “um monte de todos”.
O que nos interessa no Passe é saber como um sujeito pode se desvencilhar das amarras que o impediam de saber do real que está em jogo na formação do analista e como ele pode se orientar na linguagem. Ou seja, como ele se relaciona ao inconsciente, mais precisamente a esse ponto, essa marca que Freud concebeu como o umbigo do sonho, esse amontoado que muito bem pode ser correlacionado ao "ta panta”, esse “os todos”, mas os todos enquanto diverso, assim como “um monte de todos” e que, no inconsciente é designado como um buraco, um furo, algo não-reconhecido, Unerkannte.
Uma nova aliança
Em seu primeiro encontro com o Outro, consequência da incidência de um significante, o sujeito tem de se haver com um real que não se subjetiva. Ponto de opacidade, nos diz Lacan, ponto de silêncio que indica o lugar onde poderá se edificar a determinação significante capaz de escrever o fenômeno sintomático, na esperança de se dar conta da impossibilidade que se instala na contingência deste primeiro encontro. O sintoma é o que vai representar, manifestar, significar a verdade deste encontro. Verdade que nos diz do real do gozo que é produzido pela inclusão do significante traumático no sujeito.
Desta forma, o sintoma poderá ser tomado em duas vertentes: por um lado temos o sintoma como metáfora, na medida em que faz valer um significante do traumatismo, um significante que vai funcionar como um índex da memória do que foi encontrado como traumático. O sintoma como metáfora é um sintoma significante que está conectado ao gozo, sem sê-lo. Por outro lado, se seguirmos o desenvolvimento da teorização de Lacan, vamos tratar o sintoma como função da letra, como signo do Unerkannt. É fundamental distinguirmos, aqui, a letra do significante, pois esta se relaciona diretamente ao gozo, enquanto o significante está referido ao sentido gozado (jouis-sens). Enquanto letra pode-se definir o sintoma como um "memorial de gozo" e, enquanto significante, como "cativador de gozo".
Seja qual for a vertente, temos no sintoma o sinal de que alguma coisa não anda, pois há um real que se coloca como uma pedra no caminho do sujeito: o real da privação que se explicita no fato de que homens e mulheres, desde sempre, estão privados do elemento que poderia propiciar a escritura da relação sexual.
Esta impossibilidade, marcada pelo Unerkannt, que não cessa de se escrever, promove o sintoma como única possibilidade de se fazer laço, ao mesmo tempo que se permite uma leitura, uma vez que ele participa de uma escritura, função da letra. Por isso J-A. Miller, em seu curso "O Outro que não existe..." , nos diz que "o sintoma é uma mentira sobre o real [...] especialmente uma mentira sobre o real da inexistência da relação sexual [...] É bem por isso que Lacan pode dizer que é o sintoma o que nós colocamos no lugar deste Outro que não existe. E, especialmente, é o sintoma que nós colocamos no lugar do outro sexo [...] talvez o único Outro que existe, seja o sintoma."
Há, portanto, um vazio sobre o qual o sintoma se apóia e vai construir seu envelope formal. Vazio que se instala no ponto mesmo em que a presença de um gozo singular, escandaloso, foi recusado e recalcado pelo sujeito. Isto que é recalcado, Freud definiu como sendo o orifício da pulsão que se apresenta com seu caráter intratável, rebelde e refratário ao laço social. No entanto, este mecanismo falha e o sintoma vai surgir como uma forma de inscrever o que insiste como marcas da singularidade do sujeito e de suas fixações.
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