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terça-feira, 2 de junho de 2015

A Interpretação em Lacan (i)

          Várias são as possibilidades de se abordar tema tão extenso. Escolho a clínica como ponto de partida para, em seguida, tentar formalizar alguns aspectos da interpretação. 
Tereza procura análise trazendo, na sua bagagem um ponto de certeza: “Eu não consigo concluir nada que começo”. Sua vida tem se estruturado em torno deste ponto: são cursos interrompidos, relações afetivas mal resolvidas, dívidas financeiras e, - a razão última de sua demanda de tratamento - uma tese universitária que já se prolonga por anos, colocando em risco sua sobrevivência profissional. 
Lacan, em seu Seminário XI vai nos dizer que, se por um lado os pacientes se satisfazem com o seu sintoma, é por isso mesmo que eles, aí, se dão muito mal. È, exatamente, este muito mal (ou um “mal-a-mais”, se preferirem traduzir assim o “trop de mal” do texto) que vai autorizar nossa intervenção, como analistas, para que uma retificação possa ser feita ao nível da pulsão.
Assim, autorizado pelo movimento feito por Tereza ao buscar um lugar onde endereçar o seu sintoma para que ele pudesse ser decifrado, foi possível ir construindo sua história: fruto de um amor proibido, Tereza, aos dois anos de idade,  teve seu pai assassinado por seu avô materno, como conseqüência deste não respeitar suas ordens para não mais se encontrar com a mãe de Tereza. Como consequência, ela ficou sem o pai e sem o avô que, até então, desempenhava as funções paternas, pois este passou vários anos na cadeia. 
A partir daí, sua história veio sendo constituída por pontos inconclusos. Estes pontos eram repetidos, insistentemente, a cada sessão, mas com uma particularidade para a qual logo me alertei: a cada vez que ela os repetia,  eram usados significantes diferentes: “Eu não consigo terminar...”, “Eu não consigo concluir...”, “Eu não consigo encerrar...”, até que um dia, tendo chegado  bastante angustiada, deitou-se no divã e exclamou: “Não adianta! Eu não consigo arrematar nada!”. Era a primeira vez que ela utilizava este significante .  Antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa eu fiz uma intervenção dizendo: “Como? Não consegue a-ré-matar?”
Quando Lacan, em 1953 com o texto “Função e Campo da Fala e da Linguagem”, resgata para a psicanálise o poder da palavra, redesenhando a função do simbólico diante do enlouquecimento imaginário dos autores pós-freudianos, deu-se o início de um longo caminho: repensar a interpretação analítica, tanto no que diz respeito à sua forma, sua eficácia, como, também, à função do analista.
Num primeiro momento, que podemos definir com J.A.Miller de fase “hegeliana”, se opunham palavra plena e palavra vazia. O que sustentava a interpretação, nesta época, era a possibilidade de um encontro com uma “verdade feita de completude”. A partir desta idéia acreditava-se que as lacunas da história de um sujeito pudessem ser preenchidas e este sujeito seria, então, “incluído no seio da razão universal”
A palavra plena era colocada como aquela que “constitui o sujeito na sua verdade” em oposição à palavra vazia, onde o sujeito “se perde no discurso da convicção, em razão das miragens narcísicas que dominam a relação ao outro de seu eu”. Neste contexto ficou estabelecido que era na medida em que o analista fazia calar nele o discurso intermediário para se abrir à cadeia das palavras verdadeiras, que ele poderia, aí, colocar sua interpretação reveladora”.
A partir da própria clínica, no entanto, esta construção “hegeliana” vai sofrer um corte. Será no texto “A instância da letra...”, que a primeira concepção de  “interpretação reconcilia­dora” vai ser substituída pela “concepção de um sujeito definido não pela fala, mas pelo escrito: entre metonímia e metáfora se constitui um sujeito estritamente determinado pela sua relação à escritura ... e reduzido a um vazio, a um corte fundamental”. Este passo foi importantíssimo para que se abrisse um espaço às elaborações futuras da interpretação, na medida que, “como técnica do escrito, ... reenvia a operações que são compatíveis com o silêncio”.
Num texto contemporâneo a este, e que pode ser considerado o texto sobre a interpretação: “ A direção da tratamento...”, Lacan vai introduzir um a mais quando se trata da interpretação. Esta não se resumirá  mais  “apenas ao preenchimento de lacunas produzidas pelo recalque mas, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, (a interpretação) deverá introduzir na sincronia dos significantes que aí se compõem, alguma coisa que, de súbito, tornará a tradução possível”.

Do que se trata portanto é de possibilitar a tradução de algo que, pelo mecanismo do recalque, permanece como um  estranho à sequência significante e que, devido a estar envolvido pela vestimenta significante, se infiltra e se alimenta do sentido que desliza sob esta cadeia de tal forma que só vão existir duas possibilidades para este estranho: ou vai se proliferar indefinidamente, ou vai reinventar, a cada instante, uma nova aparição. A possibilidade desta tradução só vai existir se a interpretação do analista se ativer à condição de que  ela “não faz senão recobrir o fato de que o inconsciente já procedeu, nas suas formações - sonhos, lapsos, chistes ou mesmo o sintoma - à suas interpretações.” É a função do Outro que aí se apresenta enquanto receptáculo do código. Sendo a propósito dele que podemos detectar o elemento faltante,  o estranho. 

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