Total de visualizações de página

segunda-feira, 15 de junho de 2015

De onde vêm os analistas? Do umbigo do sonho! (I)

O umbigo do sonho
Diante da questão apresentada como tema: "de onde vêm os analistas?", ocorre-me uma resposta simples: do umbigo do sonho!
Esta solução surgiu enquanto trabalhava um texto de Lacan, mais exatamente uma "Resposta" que ele apresentou à questão de Marcel Ritter, por ocasião de sua intervenção em Strasbourg no dia 26 janeiro de 1975. A questão visava algumas palavras que, em alemão, começam por Un: Unbewuste, Unheimlich e Unerkannte. Esta última, que encontramos no texto sobre "A interpretação dos Sonhos", de Freud, é, de acordo com Marcel Ritter, muito mal traduzida por desconhecido, sendo sua melhor tradução não-reconhecido. Esta palavra, Unerkannte, vamos encontra-la articulada à questão do "umbigo do sonho": "O umbigo do sonho é esse ponto onde o sonho é insondável, quer dizer, ponto onde se interrompe o sentido ou toda a possibilidade de sentido". Freud, nesta passagem, afirma que esse ponto do sonho é o mais próximo do Unerkannte, do não-reconhecido. É como se o sujeito estivesse assentado sobre algo, assim como o cavaleiro está sobre o cavalo. É um ponto constituído por uma massa de pensamentos que nunca chegamos a desmanchar, mas que mantém um único ponto de ligação com o restante do conteúdo do sonho: um ponto de falha na malha que o constitui.
Sem dúvidas, poderemos ver, neste ponto, a presença de um ponto de real, não simbolizado e que se coloca como opaco, demonstrando a existência de um ponto fora do sentido.
É, exatamente neste ponto de real, neste ponto onde o sentido desaparece, ou melhor, onde o sujeito não pode ser reconhecido, que vamos encontrar um ponto de passagem, um novo espaço onde um analisante se torna analista. É neste ponto de falha na malha constitutiva do sonho, correlato ao ponto em torno do qual se constitui a fantasia fundamental do sujeito, que vamos ver nascer um novo saber que recoloca esse sujeito diante do real que o constitui como resposta.
Trabalhando sobre "A Transmissão", Lacan nos apresenta a seguinte resposta à questão:
"o que é que faz com que alguém, depois de se ter sido analisado, tornar-se analista?"
“[...] é por isso que fiz minha Proposição, aquela que instaura o que se chama ‘o passe’, no qual eu confio. Isto é algo que chamaria transmissão, se houvesse transmissão da psicanálise”.
Tal como hoje penso, a psicanálise é intransmissível.
É muito tedioso. É muito tedioso que cada psicanalista seja forçado - pois é preciso que ele, aí, seja forçado - a reinventar a psicanálise.
É por isso que é preciso que cada analista reinvente, após o que ele conseguiu retirar do fato de ter sido por um tempo psicanalisante, que cada analista reinvente a maneira como a psicanálise pode durar".
Ora, é certamente, esse movimento de reinvenção que pode estabelecer uma subversão da relação do sujeito ao Outro promovendo uma mudança na topologia que o sustentava até então: "depois da distinção do sujeito em relação ao objeto a, a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão" .
Esta falha, este ponto onde a condensação não se abre ao sentido, nos possibilita pensar que existe um real pulsional que se reduz à função do furo, do buraco, pelo simples fato de que a pulsão está ligada aos orifícios corporais. Freud sempre fez referência a isso e, certamente, esta constância é, por si só, um elemento de real.
Podemos, com Lacan, distinguir o que se passa ao nível do orifício corporal e o que vai funcionar no inconsciente. Nesta linha, vamos ver aparecer ali, onde Freud emprega o termo Unerkannt, como umbigo do sonho, um outro termo que poderá ser esclarecedor: Urverdrängt - o recalque originário. Ora, sabemos que é o destino do recalque original, o que não pode ser dito, que está na base, na raiz da linguagem. Freud nos lembra, em seu texto: "Projeto para uma psicologia científica", que isto que permanece como Coisa (das Ding), não se traduzindo em palavras, resistindo ao sentido, é o principal responsável pela ação do pensamento. Esta mesma articulação ele vai utilizar quando define a pulsão como "uma força constante [que] do ponto de vista biológico nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo”.
Seguindo Lacan, verificamos que esse Urverdrängt, esse recalque originário constitui-se no furo, no buraco, nisso que, de alguma forma está no limite da análise e que tem alguma coisa a ver com o real. Por isso Freud ressalta a função do umbigo do sonho. Este ponto no qual o sujeito se encontra suspenso ao Outro materno por um fio que se liga, não à mãe, mas ao que vai se perder no nascimento (numa analogia à placenta, que é esse objeto que se instala entre a criança e a mãe).
Ora, é pelo simples fato de ter nascido, como nos diz Lacan, deste ventre, e não de outro qualquer, tendo sido ou não desejado, que o ser falante (parlêtre - que é também outra definição de inconsciente), "se encontra excluído de sua própria origem, e a audácia de Freud nesta ocasião é simplesmente de dizer que temos essa marca no próprio sonho". As formações do sonho conservam, em algum lugar, a marca de um ponto onde não há nada a fazer. É deste ponto que sai o fio que nos indica o caminho na medida em que ele permanece conservando-se no nível mesmo da simbolização. Esse ponto permanece como uma matriz simbólica ou como uma cicatriz no corpo que é capaz de se enlaçar à função e ao campo da fala e da linguagem.

É nesse campo da fala e da linguagem que se pode reconhecer, digamos, o que permanece impossível a reconhecer - Unerkannte como Urverdrängt representando o que vem a ser o sentido do Un em alemão: uma impossibilidade, que não se pode nem escrever nem dizer. O Unbewusste, o que permanece impossível de se fazer consciente. Em outras palavras, o que não pára de não se escrever.

Nenhum comentário:

Postar um comentário