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terça-feira, 17 de setembro de 2013

Da transferência à interpretação” (I)

E “no princípio da psicanálise está a transferência!” Com esta afirmação Lacan retoma o tema da transferência em um texto, “Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola”, que trata da formação do analista e, principalmente, do final de análise, além de trabalhar como este final de análise vai se articular com a vida institucional.
No começo está a transferência, continua Lacan, “graças àquele que chamaremos, no despontar desta formulação, o psicanalisante”.
O que interessa então, a Lacan, é que a transferência está no começo da psicanálise e, passando pela interpretação, vai-se retornar sobre este princípio resignificando o que estava no início.
Já no texto “A direção do tratamento...”, Lacan vai apontar, não explicitar, uma diferença fundamental da transferência no princípio e no final de uma análise e articula-la com a interpretação. Há uma passagem onde Lacan vai explicitar a importância da transferência e os desvios que ela sofreu ao longo do tempo e propor  a reinvenção da psicanálise, remetendo-nos ao seu ponto de partida: “C.Q.N.R.P.D (Ce que nous ramène au problem de départ = O que nos leva ao problema do início) ou seja, devemos retomar a questão da transferência perguntando: “Quem é o analista? Aquele que interpreta tirando proveito da transferência? Aquele que a analisa como resistência? Ou aquele que impõe sua idéia da realidade?” Enfim, questionar a transferência desde sua matriz imaginária, sendo que o “O” (“Ce”) é a interpretação.
 
Minha proposta para hoje será começarmos a discutir a questão da estratégia da transferência e sua articulação com a direção do tratamento.
 
Quando Lacan, em 1953, com o texto “Função e Campo da Fala e da Linguagem” resgata para a psicanálise o poder da palavra, redesenhando a função do simbólico diante do enlouquecimento imaginário dos autores pós-freudianos, deu-se o início de um  longo caminho: repensar a interpretação analítica, tanto no que diz respeito à sua forma, sua eficácia, como, também, à função do analista.
Num primeiro momento, que podemos definir com J.A.Miller de fase “hegeliana”, se opunham palavra plena e palavra vazia. O que sustentava a interpretação, nesta época, era a possibilidade de um encontro com uma “verdade feita de completude”. A partir desta idéia acreditava-se que as lacunas da história de um sujeito pudessem ser preenchidas e este sujeito seria, então, “incluído no seio da razão universal”.
A palavra plena era colocada como aquela que “constitui o sujeito na sua verdade” em oposição à palavra vazia, onde o sujeito “se perde no discurso da convicção, em razão das miragens narcísicas que dominam a relação ao outro de seu eu”. Neste contexto ficou estabelecido que era na medida em que o analista fazia calar nele o discurso intermediário para se abrir à cadeia das palavras verdadeiras, que ele poderia, aí, colocar sua "interpretação reveladora”.
Este é tempo em que o Esquema L fazia bem mostrar do que se trata.
Neste esquema temos um eixo imaginário sendo cortado por um eixo simbólico. Sobre o eixo imaginário vai se sustentar o que Lacan chamou de palavra vazia, onde predomina a relação narcísica que se faz presente numa luta de puro prestígio e sustenta uma relação mortífera, aonde o jogo de imagens vem dizer da impossibilidade da comunicação onde o mal-entendido esteja afastado. O eixo simbólico será o corte que uma intervenção da palavra plena vai produzir trazendo ao sujeito uma possibilidade de se localizar em relação a um Outro de boa fé, lugar da lei, do código, lugar onde se coloca a questão sobre sua existência. Neste lugar sua palavra pode ser traduzida em mensagem e retornar sobre si mesmo desenhando uma possibilidade de saída do impasse narcísico.
(Vejam o Esquema L no texto "O Seminário sobre a 'Carta Roubada', in Écritos, pág.58)
A própria clínica, no entanto, vai contestar esta construção “hegeliana” exigindo uma nova elaboração. Será no texto “A instância da letra...”, que a primeira concepção de “interpretação reconciliadora” vai ser substituída pela “concepção de um sujeito definido não pela fala, mas pelo escrito: "entre metonímia e metáfora se constitui um sujeito estritamente determinado pela sua relação à escritura... e reduzido a um vazio, a um corte fundamental”. Este passo foi importantíssimo para que se abrisse um espaço às elaborações futuras da interpretação, na medida que, “como técnica do escrito ... reenvia a operações que são compatíveis com o silêncio”.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Algumas notas sobre o “acting-out”

Resumo aqui alguns pontos que considero importantes para a direção do tratamento:

1 – É um conceito especificamente analítico que acontece quando algo falha. Trata-se de um processo de ejeção e de um retorno à análise.
Pode até mesmo se referir à análise quando ainda não está no curso de seu desenvolvimento. P.ex. quando temos um conjunto de comportamentos passionais que se resolvem pela entrada em análise. Comportamentos estes que podemos qualificar de prefácios que já fazem parte de um texto – o discurso do sujeito já é um discurso de analisante, mesmo que o sujeito não o saiba, mas o “acting-out” só é identificado no "só depois", no divã. Já, em contra partida, temos aqueles que nos dizem de uma saída prematura, cujo melhor exemplo nos é dado pela análise de Dora e o mea culpa de Freud.
 
2 – O “acting-out” está inserido no mesmo nó da transferência e ele não passa de um de seus aspectos, já que está na dependência do suposto saber que a sustenta. Nesta perspectiva Lacan nos apresenta uma oscilação interessante que pode ser assim descrita:
​a – Transferência sem análise – quer dizer ausência ou falha do analista resultando no “acting-out”. O ex. maior na história da psicanálise é a relação de Freud a Fliess que termina no texto “Esboço de uma psicologia científica” que nada mais é do a inscrição deste “acting-out”.
​b – Quando o “acting-out” se precipita na análise e se sustenta na referência ao analista. Neste caso temos a transferência.
 
3 – O “acting-out” acaba por dar acabamento às bordas da situação analítica fazendo com que o analista se questione sobre tudo aquilo que escorrega para além destes limites.
Ele não é um sintoma do analisante ou do analista: é um sintoma da conduta da própria análise, significando o que se passa aí como conseqüência dos sintomas dos dois parceiros: ele diz a verdade.
 
4 – O “acting-out” é uma resposta. É uma mostração endereçada, sem latência, mas não sem agressividade, a um outro que tem de participar. É uma resposta sem palavras que aí não aparecem para sustentar o efeito de significante surgindo apenas como um relato ou comentário, secundariamente. Ele surge como uma busca de uma interpretação de forma forçada endereçada ao outro (com um pequeno “a”). Este aspecto é mais uma diferença entre o “acting-out” com a interpretação que, se basta, se satisfaz por si mesma e não demanda interpretação, mesmo que saibamos que ela contém uma mensagem endereçada ao Outro com A maiúscula. (A interpretação que Freud jamais obteve de Fliess, pois este nunca foi analista.)
O “acting-out” é uma história sem palavras, uma cena produzida pelo inconsciente a partir de uma rememoração que se apresenta na realidade em lugar de ser exposta num sonho ou dita no terreno do jogo transferencial: trata-se de uma outra cena.

5 – É uma resposta dirigida a um outro que não está, ou não está mais, em posição de analista. Em outras palavras, a um fading do analista na sua posição de interpretante. Uma passagem, portanto, do discurso do analista a um outro em função do sintoma do analista levando o sujeito da transferência ao “acting-out”: o sujeito não está aí designado e ele mostra algo: ele crê saber a quem, mas ele não sabe de onde e nem o que: existe aí algo da ordem de um forçamento, da provocação para reabrir o que o analista fechou. Este episódio de falta de palavras em um processo que se supõe sustentar por elas é conseqüência do deslizamento do analista de sua posição levando a uma situação de transferência sem analista. Isso acontece sempre que o analista deixa seu lugar, ou seja, deixa de sustentar um espaço onde o objeto ‘a’ possa reinar como semblante. Podemos explicitar esta situação através de três pontos:
​a – quando ele escorrega para a posição de mestre,
​b – quando ele, acolhendo seu próprio sintoma, fala como analisante,
​c – quando, abandonando a cena analítica pela realidade do mundo, ele passa ao ato.
Em resumo, abandonando seu lugar e o discurso que lhe compete, ele produz uma transferência selvagem e sua resposta sem palavras. Em outras palavras pode-se dizer que o “acting-out” se produz quando o suposto saber que sustenta a transferência deixa, por uma falha de seu discurso, surgir algo do real.
 
6 – O “acting-out” não é da ordem do significante, já que a falha de simbolização anunciada pela ausência de uma interpretação apaga o efeito significante. Por isso podemos dizer que o “acting-out” é da ordem do signo, ou seja, ele representa qualquer coisa para qualquer um. É isso que faz enigma, portanto, sentido. O importante é que, no “acting-out” o sujeito não fala do seu lugar, ele não se designa como “eu” (je): ele não sabe o que diz, o que implica que ele não pode por si mesmo, partindo de seu “acting-out”, reconhecer o sentido no qual está submerso.
Pode-se dizer que temos aqui uma referência a um significante desaparecido: neste limite do indizível, o “acting-out” coloca em cena o que foi rejeitado, segundo o mecanismo da Verwerfung: o simbólico do discurso impossível é posto em ato no campo do real. Por isso a urgência de restabelecer o Outro como interpretante para que possa se restabelecer a situação analítica. Assim diz o analisante nesta situação específica: “Você não compreendeu nada do que lhe disse, olhe o que se passa!” Dito de outra forma: para além da irritação desta incompreensão, existe uma passagem da passividade do deixar dizer à atividade da mostração. O analisante torna-se ativo: ele coloca em cena o discurso que o colocou em cena, ou seja,  sua fantasia fundamental.  Assim fazendo o analisante deixa de ser aquele que apenas acompanha o jogo da produção de seu inconsciente que aí está para ser dirigido (S1/$) ele se coloca em posição de mestre, fora do discurso. Ele representa o que não pode dizer.
 
7 – Partindo do princípio que o analisante toma uma posição ativa no real de um prazer que ameaça se repetir pode-se dizer que existe a mesma relação do “acting-out” ao princípio do prazer que se observa no jogo da criança e o carretel, este momento de assumir o simbólico para dominar o real.  Trata-se, na linguagem freudiana do agieren: a colocação em cena comentada de duas palavras e a mostração de sua relação ao outro faltante. Ao constatar a perda da mãe e faltando quem lhe transmita uma interpretação deste fato, a criança estabelece uma cena onde a bobina rejeitada pode ser recuperada, ao mesmo tempo em que um espaço vai se construindo em torno de duas palavras: Fort e Da.
 
8 –Pode-se situar o “acting-out” entre o discurso e o sem-palavras, um ponto de meio-dizer, um ponto de verdade: aquele onde o recalque é dito, mas onde o recalcado é morto: a Verneinung.
Como no primeiro movimento da Verneinung, há no mecanismo do “acting-out”, recusa e rejeição. Rejeição do dizer angustiante do Outro, arrebatando, por uma clivagem entre o simbólico e o real, a necessidade de uma outra resposta diferente do linguajar comum.  
 
9 - O “acting-out” é da ordem do evitar a angústia: a angústia diante algo do real que a falha do Outro deixou passar ao campo analítico.
Quando o analista – por falha de uma interpretação que ali deveria acontecer, por uma passagem ao ato que o indica em posição de mestre, pelo desvelamento de um sintoma que o designa como sujeito, por um dizer que descobre seu próprio desejo – sai do discurso analítico – quando está fora (out) deste discurso – o analisando não pode permanecer ali sozinho e o segue: out.
 
10 - A interpretação selvagem, como uma forma de desprezar o saber analítico no que diz respeito a seus efeitos, é uma forma do discurso do mestre. O analista, neste caso, não sustenta o lugar de suposto saber e se lança na mestria transformando a situação em transferência sem analista: “acting-out”. Em outras palavras, quando o analista deixa este semblante e se confronta ao real, o analisante vai pelo mesmo caminho: sideração e angústia, onde a histerização se torna necessária e impossível pois o real a interdita, o discurso se cala – é a angústia.
 
11 - O “acting-out” é o efeito do encontro com o objeto “a”: efeito de angústia que, mais além da linguagem, impõe a motricidade, mas dentro da cena, como já assinalamos acima.
 
12 – Diferentemente do “acting-out”, a passagem ao ato é o ultrapassamento da cena, cena imposta ou organizada pelo próprio sujeito: o ultrapassamento da cena em direção ao real; imediata. A passagem ao ato é tipicamente um salto no vazio. No caso da jovem homossexual Freud descreve estas duas situações que são: Quando a paciente está a passear com a mulher a quem ama, mostrando-se ao pai, temos um “acting-out”; quando ela pula o parapeito temos uma passagem ao ato.
 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

ERNST KRIS

​Nascido em Viena, com o século,  Ernst Kris desde muito cedo fez serem reconhecidas sua inteligência e capacidade intuitiva-descritiva. Como historiador de arte, venceu as fronteiras da Europa quando, aos 27 anos,  publicou um catálogo sobre camafeus e entalhes da Renascença Italiana.
Mas foi o casamento com a filha de Oskar Rie, colaborador de Freud , que o faz aproximar-se da psicanálise.  Rapidamente, E. Kris, adquiriu a confiança do mestre, que, em 1936,  lhe confiou, juntamente com Anna e Martin Freud, a leitura dos manuscritos do polêmico texto “Moisés e o Monoteísmo”.
Após sua análise com Anna Freud  iniciou a prática de psicanálise com crianças, pois era o que se autorizava, em Viena, aos leigos, praticantes da psicanálise. Nesta época seguia os seminários de H. Deutch e W. Reich. Data deste tempo o estudo: “Um escultor psicótico do século XVIII”, texto que será objeto de nossos comentários. Este estudo, uma biografia de artista, é um bom exemplo do trabalho ao qual E. Kris se dedicou desde os seus primeiros contatos com a psicanálise: associar psicanálise e arte. Esta associação nos remete à  pertinência da pergunta de J. Adam em sua biografia de E. Kris: “será possível servir a dois mestres e passar de um a outro, da arte à psicanálise, sem desfalcar as duas disciplinas e desnaturar seu núcleo essencial?”
Com a invasão nazista, E. Kris, acompanha Freud a Londres e, em 1940, muda-se para Nova York, onde vai criar, juntamente com R. Lowenstein e H. Hartmann o que veio a ser conhecido como Psicologia do Ego. Com esta teoria, que se baseia numa abordagem explicitamente genética do psiquismo, o “homem de juízo reto”, conseguiu conciliar o rigor das virtudes morais com o liberalismo triunfante do mundo ocidental.
E. Kris, nos entanto, somente  veio ocupar o trono da psicanálise americana após o reconhecimento público de Anna Freud que, por volta dos anos 50, o autorizou a editar, com Marie Bonaparte, os escritos inéditos de Freud a Fliess: “As Origens da Psicanálise”.
A partir deste momento, Kris sustentou por quatro anos um seminário com M.Mahler, E. Jacobson, P. Greenacre e A. Reich, entre outros, onde foram discutidos oito casos clínicos de pacientes que apresentaram dons artísticos precoces.
Muito provavelmente, devido à sua formação como historiador, E. Kris sempre colocou a metodologia acima do achado e o inaudito da descoberta freudiana. Uma aposição que Freud não teria apreciado, ele que gostava de dizer que “os metodologistas me fazem pensar nas pessoas que passam o tempo a limpar os óculos, sem jamais achar a ocasião de utilizá-los...”.
 
2 - A psicologia do Ego
 
E.Kris,  sempre levou em conta o que teria sido formulado nos trabalhos de Freud  sobre técnica, deixando claro que houve uma precedência das formulações técnicas sobre as teóricas. Precedência esta que , conforme nos diz, “se estendeu-se por todo o desenvolvimento de Freud”... desde os  “Estudos Sobre Histeria” quando Freud escreveu sobre técnica deixando a  Breuer a tarefa  da teoria” .
Toda a técnica da Psicologia do Ego vai se sustentar na recomendação, feita por Freud de que a análise deve começar pela superfície, e a resistência ser analisada antes da interpretação dos conteúdos. Estes  princípios básicos nos levam a compreender que,  interpretar as resistências não se refere apenas à sua existência e determina sua causa, mas  afirma que “a resistência  não é simplesmente um ‘obstáculo’ para a análise, mas sim parte da superfície psíquica que tem de ser explorada.”.
Partindo do que Freud disse, nos seus últimos trabalhos:  a interpretação só poderá ser sabida como verdadeira pela reação do paciente, E. Kris vai enfatizar a existência de  uma área de cooperação entre analista e paciente. Esta é a área de autonomia do ego,  a mesma  que sustenta o trabalho do ego do artista quando,durante o processo de criação,  vai acontecer  uma regressão parcial e temporária. É esta parte autônoma do ego que vai ser utilizada para estabelecer um contato com o público despertando sua participação e promovendo uma subseqüente identificação com o artista.
A identificação, pedra angular da teorização da Psicologia do Ego, vai se explicitar quando lemos que se espera que “uma interpretação enfatize o mecanismo de identificação, não apenas por ser a mais ampla, mas também porque pode abrir o maior número de novas possibilidades e ser a interpretação que o paciente pode mais facilmente aplicar a si-mesmo”.
 
3 - “Um escultor psicótico do século dezoito”
 
“Frans Xaver Messerchmidt, nascido em 1736, em Wiensensteig, Alemanha, apresentou um talento precoce e decisivo para uma carreira artística que teve a influência de dois tios, escultores famosos.
Entre fatos que marcaram seu caminho, cito o seguinte: após ter sido nomeado assistente na seção de escultura da Academia de Viena, Messerschmidt  adoeceu: Esquizofrenia Paranóide.
No final de sua vida, Messerschmidt foi gradativamente abandonando as encomendas dos clientes e protetores, para iniciar uma série de bustos e cabeças masculinas, esculpidas em tamanho natural. Mudou-se  para Bratislava, e passou a  trabalhar somente nas cabeças e bustos, de forma tal que mais de sessenta foram encontradas em seu atelier, após sua morte. Adquiriu uma casa próxima ao cemitério, onde recebia os turistas e apreciadores de artes que não se deixavam abater pelos inconvenientes da viagem e da vizinhança. No entanto, várias vezes Messerschimdt recusava  a recebê-los ou a mostrar-lhes suas esculturas. Como conseqüência, cultivava o sentimento de que não era suficientemente reconhecido e ameaçava destruir suas obras. Acredita-se até que algumas foram realmente destruídas. Morreu de pneumonia em 1783, com 47 anos de idade.
Suas esculturas, consideradas durante o século XIX como estudos de fisionomia e traços de caráter ou como representações das paixões humanas, foram batizadas com títulos que pretendiam traduzir as expressões dos rostos.
A tentativa de Kris, no texto em questão é, partindo “das instâncias freudianas de conceitos a priori, da organização psíquica” e dos dados biográficos de amigos do artista, compreender a intenção de Messerschmidt nas produções das expressões faciais. Como nos lembra Jacques Adam, Lacan criticou na prática de E. Kris, exatamente o princípio que afirmava que “o paciente jamais tenha o sentimento de que o analista não compreende. Que, pelo contrário, o paciente tenha a todo momento a impressão de que o analista o acompanha nas profundezas de seu imaginário, o que torna o trabalho da transferência possível”.   Buscando  esta compreensão, E. Kris, vai percorrer, minuciosamente, os nomes dados às imagens para nos dizer que apenas duas denominações foram adequadas: “O sono tranqüilo” e “O Bocejador”.
Na busca de subsídios para melhor interpretar o estilo e as nuances da obra de Messerschmidt, E. Kris vai em busca das influências que o artista teria sofrido, e conclui que foi a corrente que “se esforçava em mostrar como a face humana sofre deformações diante de diferentes experiências”. O objetivo do escultor era representar as transformações dos músculos da face no curso de diferentes funções como bocejar ou dormir. “Ele não estava interessado na representação das emoções”.
Nas minúcias das descrições das obras, Kris vai passando das “distorções de musculaturas” para as “constelações mímicas que se repetem em inúmeras variações”, até chegar nas “deformações que atingem o nariz”, para concluir que a “careta” é “um movimento expressivo malogrado”, que nos diz de uma tendência reprimida que interfere com a seqüência da expressão intencionada - p.ex., o sorriso de alguém que dá os pêsames. A constelação mímica dos bustos de Messerschmidt pertence pois à categoria das caretas, das “deformações ou alterações da fisionomia”, com a ressalva que “no seu caso são manifestações de processos inconscientes” que vão nos surpreender “se examinarmos a série completa dos bustos, com seus ares rígidos e o vazio de suas expressões.”
Foi durante uma visita de F. Nicolai, amigo do artista, à sua casa, que este lhe confessou que os demônios lhe visitavam, especialmente à noite. Felizmente, por causa de sua vida casta, dizia Messerschmidt, ele podia viver em bons termos com eles. O demônio da proporção, afirma, o inveja pois, ele, quase atingiu a perfeição na proporção. Esta é a explicação  do artista para o fato de ser acometido de dores no abdome e nas pernas quando trabalhava, em “seus mármores ou bronzes”, numa certa parte do rosto “que é semelhante a uma certa parte na região baixa do corpo”. Com este recorte da vida de Messerschmidt , E. Kris nos diz de sua perspicácia clínica, se associarmos o que disse,  ao que hoje sabemos, com Lacan, ser a impossibilidade da proporção sexual. O aparecimento dos demônios faz parte da tentativa do psicótico de sustentar um delírio onde o um se estrutura mantendo, ou melhor tentando manter, fora, longe, toda possibilidade de denotação da falta estrutural, sob pena de ter sua frágil estabilidade fragmentada.
No entanto, apesar desta aproximação que faz E. Kris, a falta de sustentação teórica promove um deslizamento pelo viés do sentido, deixando escapar o que há de estrutural.
Continuando seu trabalho, E. Kris vai destacar uma característica dominante na série de cabeças produzidas por Messerschmidt: a sua uniformidade, para dizer que todas as tentativas para “interpretar a expressão” são logo abandonadas pois a constelação mímica é imediatamente reconhecida como uma careta...  A impressão que se tem é que a capacidade de criação do artista foi comprometida por alguma limitação e que “a espontaneidade deu lugar à monotonia... ”. Neste ponto é impossível não associarmos esta descrição à formulação teórica de Lacan que afirma ser o psicótico o mestre do significante, resumindo, sua produção a um enxame de S1, onde nenhum sentido se sustenta pelo deslizamento significante, o que faz com que a série seja sempre monótona, um infinito do mesmo.  
No entanto, e aí está o grande achado do texto: apenas dois bustos se diferenciam. Caricaturas de rostos humanos que figuravam, na fantasia delirante de Messerschmidt,  os demônios da proporção. A diferença, destes dois rostos, fica ainda mais marcante na medida em que o artista vai dizer-se capaz de refazer toda a série, com exceção das duas cabeças pontudas.
Na impossibilidade, mais uma vez explicitada, de poder reconhecer nestas duas figuras estranhas-familiares, que se intrometem na série, algo da estrutura, Kris vai optar pelo caminho das frágeis associações imaginárias, destacando os lábios como o foco da atenção...  É verdade que a presença da pulsão, no seu trajeto de ir e vir em torno do objeto, vai ser descrita por Kris: “Há uma impressão fálica envolvida, um sentido geral de atividade e direção. Somos levados a supor que essa atividade é atribuída, por projeção, aos demônios enquanto perseguidores.”, mas a plasticidade que é oferecida pela interpretação que se baseia no imaginário vai, no entanto, levá-lo a concluir “que estes dois bustos de fato representam, segundo nossa interpretação, é a ilustração direta de uma prática sexual (felatio), à qual os demônios convidam e forçam Messerschmidt”.
Ao comentar os efeitos provocados nos observadores, pelas duas imagens, E. Kris vai afirmar que eles não são somente mais intensos do que os outros, como também, diferem na qualidade: “não há nenhuma careta aparente, nenhuma constelação mímica. O aspecto do “rosto é mantido intacto e, como observou Nicolai, os traços humanos não se ‘perderam’, mas o artista lida com eles com uma certa liberdade”. E. Kris, mais uma vez, passa perto do que se diferencia da monotonia do significante, do que escapa ao significante e se presta a ser encapsulado por uma imagem qualquer, provocando as mais diversas reações e fazendo de sua posição psicológica algo particular: o objeto a.
Podemos dizer,neste ponto que, a “intuição” (conceito colocado ao lado do “planejamento”, como essenciais à interpretação) levou Kris a formular que “talvez seja porque descobrimos nas duas figuras a mais convincente expressão do núcleo da fantasia delirante de Messerschmidt, é que podemos dizer que esta é uma transformação artística da realidade, levada ao extremo, a fim de disfarçar a fantasia latente.
As interpretações, a partir daí, passam pelas teorizações que Freud desenvolveu nos textos sobre Psicose, principalmente “O Caso Schreber”, assim como pelo conceito de narcisismo.
A presença do espelho na vida de Messerschmidt, que não usou diferentes modelos, mas copiou sempre o reflexo de seu próprio rosto  é, p. ex., assinalada por E. Kris. Essas tentativas tiveram, para o artista, a finalidade de provar incessantemente sua própria existência como pessoa, criando, a cada vez formas novas e satisfatórias de adornos exteriores. Este é seu esforço para a recuperação da própria sanidade. Uma tentativa de reconstruir o mundo que está sempre ameaçado de destruição. Foi nesta tentativa que ele falhou. As expressões fisionômicas de seus auto-retratos revelam-se superficiais, o que nos leva a acrescentar: demonstrando a falha narcísica, ou seja, o fracasso da função da imagem na promoção da identificação ao próprio corpo. Mas, mesmo assim, sua arte tornou-se o instrumento de um ritual mágico. Os demônios da proporção deveriam ficar distante o suficiente para não destruírem o frágil arranjo de seu mundo, mas, também, perto o suficiente para serem controlados.
O caso de Messerschmidt ilustra, nos diz E. Kris, o que, poder-se-ia denominar, dentro da teoria da arte, o limite estético. É o mesmo limite que Freud traça entre o sonho, o devaneio e a narrativa coerente, ou entre a fantasia e a poesia.
A identificação de Messerschmidt com Deus - o escultor criador, é demonstrada em vários relatos de F. Nicolai sobre sua convivência com o artista. Esta identificação é interpretada por E. Kris, não só pela crença mitológica de que o artista é dotado de poderes mágicos, como o criador, mas porque, enquanto ele trabalhava, apalpava suas próprias costelas a fim de criar figuras humanas. Ao acrescentar que nesse momento o círculo se fecha e o que ele esculpe - sua própria imagem, seu rosto - tem para Messerschmidt uma conotação feminina, E. Kris demonstra apreender muito bem o que Lacan, mais tarde, vai chamar de empuxe-a-mulher, já descrito por Freud no “Caso Schreber”.
A identificação do artista esquizofrênico com Deus, o criador, vai determinar igualmente a fantasia delirante de Messerschmidt segundo a qual o demônio da proporção persegue-o por inveja. Para ele, como para muitos outros artistas, a proporção - divina proporzione - é o segredo de Deus, que leva o artista a violar a proibição divina  na sua luta para atingi-la.
 
4 - CONCLUSÃO
 
E. Kris não é apenas uma referência do ensino lacaniano através do seu caso “o homem dos miolos frescos”, mas é saudado, também, por autores como sendo verdadeiramente o “cabeça pensante do triunvirato da Ego-Psychology”
O que ele tenta, em suas biografias de artistas e, especialmente na que acabamos de comentar, é de transportar para suas interpretações o mesmo padrão que utilizou no seu trabalho como historiador da arte, levando-o, muitas vezes, por labirintos sem saída.
Seu suporte teórico nas proposições freudianas, no entanto, lançam luzes que, infelizmente, são abortadas por ignorarem a lógica do significante e a função da letra como, p. ex. quando comenta os desenhos de um artista esquizofrênico que estava sob seus cuidados: “Seus desenhos não são obras de arte que ele deseja autenticar, mas sim afirmações que deseja concretizar ... ‘não tem valor artístico’, confirma o paciente, não são desenhos, ‘mas sinais escritos’. Mesmo com todas estas indicações, E. Kris, no entanto, retoma as interpretações do sentido das imagens.
É por isso que podemos dizer que o trabalho de E. Kris, mesmo que por vezes toque pontos cruciais da psicanálise, trazendo contribuições importantes, vai se perder no “a priori” de uma teoria que se construiu para promover o tamponamento do cerne da descoberta freudiana: S(A/).
Foi o que demonstrou Lacan, todas as vezes que comentou o caso clínico do “homem dos miolos frescos”. Afinal, o desejo é sempre desejo de nada.

Bibliografia:
 
Adam, J. - Ernst Kris - 1900-1957. De l’art à l’ego, in Ornicar? 34. Navarin Editeur, Paris.
                1985            
Kris, E. -   Psychologie du moi et interpretation dans la therapie psychanalytique,  in Ornicar? 46. Navarin Editeur, Paris. 1988
Idem - Psicanálise da Arte. Editora Brasiliense, São Paulo. 1968
Lacan, J. - Écrits, Editions du Seuil, Paris. 1966

terça-feira, 27 de agosto de 2013

A Interpretação da Palavra à Escritura (O homem dos miolos frescos)

"Na sua obra o artista usa a ”inspiração”; seu inconsciente produz pensamentos que ele permite que atinjam a consciência, contanto que se apresentem sob um disfarce estético." (Ernest Kris)

Continuemos nosso trabalho, tratando da passagem no texto “A Direção do Tratamento...” que é conhecida como “O homem dos miolos frescos”. Este caso apresentado por Ernest Kris é utilizado por Lacan em sua crítica à metodologia que os pós-freudianos, principalmente aqueles que construíram a chamada Psicologia do Ego, lançavam mão para dirigir o tratamento. Sua perspectiva crítica incide sempre sobre as questões de estrutura, onde existe um rebaixamento do uso da palavra que leva, em conseqüência, à busca de garantias no “standard” e na ilusão da universalização promovida pelo recurso à realidade como parâmetro. Neste contexto o “eu” (moi), como representante do sistema percepção-consciência, vai tornar-se o correlato da realidade e o analista, como um interlocutor privilegiado, vai abrir-se às vias da identificação que recobrem o intervalo significante e fazem emergir o termo de “atividade” (agieren) sob as mais diversas formas. Esta “atividade” que reúne analista e analisante é uma tentativa de suplantar uma dificuldade de estrutura que Lacan denuncia como sendo a inércia do gozo. Uma das conseqüências de se ignorar este fato de estrutura é que, se não construímos a fantasia fundamental no tratamento, ela vai se congelar. Em outras palavras, o analista que abandona os efeitos do significante para operar sobre o real é aquele que está mais preocupado em oferecer alguma coisa ao paciente. Por isso Lacan vai nos dizer, em uma passagem que encontramos mais à frente no texto “A direção do tratamento...”: que “O mistério da redenção do analisado está nessa efusão imaginária, da qual o analista é a oferenda.” Esta citação que se encontra no final do texto nos diz porque Lacan vai opor à noção do analista como objeto de identificação da fantasia, a noção da terceira identificação – que Freud apresenta no texto “Psicologia das massas e Análise do eu”, cap. VII – determinada por sua função de sustentação do desejo e especificada pela indiferença de seu objeto. Esta perspectiva nos diz do retorno a Freud de Lacan que abre um espaço: “A que silêncio deve agora se obrigar o analista para evidenciar (...) o dedo erguido de São João de Leonardo, para que a interpretação reencontre o horizonte desabitado do ser em que deve se desdobrar sua virtude alusiva.”
J-A. Miller comenta em seu Seminário Silet (1994-1995) que Lacan negligenciou o conceito de pulsão durante um longo período de seu ensinamento. Ele vai retomar este conceito apenas 1963, quando são publicadas as conferências do congresso de Bonneval e após Leclaire lhe fazer esta crítica. O seu Seminário XI é uma resposta a esta crítica. Na verdade, quando Lacan constrói o conceito de objeto “a”, nesta mesma época, esta sua negligência, se posso dizer assim, vai ser denunciada em conseqüência da própria evolução de seu ensino.
J.A. Miller, no seminário mencionado, trabalha longamente esta passagem, e nos diz que para Lacan, o conceito de pulsão está transcrito como um conceito fronteiriço entre o simbólico e o imaginário, ou seja: “como cadeia, a pulsão lhe aparece articulada no simbólico, enquanto que sua satisfação é da ordem imaginária”, isto para dizer que Lacan vai designar a tomada pelo simbólico do instinto natural como sendo o “mais íntimo do organismo do ser humano que sofrem as incidências do simbólico...”. Ora, este lugar que Lacan vai designar como sendo o da pulsão não é outro que o lugar do FALO, este que vem como ordenador da seqüência de substituições (Ersatz) que vão se constituir no que podemos chamar de objetos pulsionais: voz, olhar, seio e fezes. São estes objetos que aparecem como substitutos à falta do dom simbólico. O objeto real aqui, conforme nos diz J. A. Miller, não tem o seu valor apenas como algo dado, ele tem seu valor como substituto, sendo que é preso, tomado numa cadeia metafórica e metonímica. Em outras palavras podemos dizer que o objeto pulsional vai aparecer sempre como o que responde a uma falta simbólica, sendo desde sempre uma substituição do desejo. Ele é, portanto, um objeto real enquanto substituto.
Por outro lado, se levarmos em conta a demanda, ou seja, a cadeia simbólica, saberemos que a satisfação que está em jogo na pulsão é uma resposta à demanda de amor, é um signo de amor que é pedido neste trajeto da pulsão, o que define esta resposta como simbólica, ao nível do reconhecimento do desejo.
Se, continuando nosso caminho, dizemos que o que está em jogo é a satisfação do desejo, aí sim, vamos ver que ela concerne o falo, mesmo que seja uma má satisfação do desejo, ou seja, uma identificação. “A identificação fálica é a satisfação do desejo, entanto não é a boa, quer dizer, enquanto: é melhor aí renunciar.” (Aí está o que era para Lacan, nesta época, o fim de análise: a renúncia a esta má satisfação do desejo que é a identificação fálica)
No texto da “Direção do Tratamento ...”, vamos ver Lacan preocupado em preservar o lugar do desejo, para que ele não se confunda com a pulsão, pois cada vez que nos permitimos a isto, cada vez que incluímos numa colusão íntima “o gozo e o desejo”, teremos como resultado o que Lacan chamou de “desejo morto”: É a pulsão que, incluída na metonímia do desejo coloca em evidência o valor substitutivo e os deslocamentos se tornam possíveis, daí a metonímia. Em outras palavras, esta metonímia que inclui desejo e pulsão, inclui também o gozo. Lacan diz que "é um desejo inscrito no significante, é o equivalente de uma memória no sentido automático, portanto é um desejo morto”.
É exatamente em função deste cuidado, que Lacan vai retomar no texto da “Direção do Tratamento...” o caso de E. Kris: Não se regular sobre o que pode fazer aparecer o objeto oral,  objeto da pulsão, onde deve ser demonstrado o vazio do objeto de desejo, p. Ex.
Esta descrição de Lacan coloca em evidência o debate entre pulsão e desejo no que diz respeito à direção do tratamento. Ali, onde E. Kris vai concluir seu famoso artigo dizendo que o fato de seu paciente ter indo procurar miolos frescos, quer dizer, aí aonde a aparição da pulsão oral sob a forma do objeto, vem confirmar que sua interpretação é justa, Lacan vai dizer que o que vemos surgir é uma forma de um sintoma transitório onde deveria surgir o lugar do desejo, já que ele foi apagado pela interpretação de Kris.
Do que se trata, na verdade, é de marcar que, quando falamos de desejo há um objeto que é nada e que é nesta direção que a interpretação deve apontar. “Saber, no tratamento, indicar o nada, é restituir o lugar do desejo e aí , no fundo, a única aparição da pulsão na “Direção do Tratamento...”, é uma aparição correlativa a uma desorientação simbólica do analista. (...) há um objeto que é nada, (quanto se trata do desejo), enquanto que na pulsão há um objeto que é qualquer coisa, que são esses - mesmo que imaginários - miolos frescos”.
De um lado temos o desejo que tem o nada como objeto, e é isso que o distingue da pulsão, que está sempre correlacionada a um objeto que é alguma coisa, mesmo que seja qualquer uma, e que, ao mesmo tempo, é preciso dizer que o desejo tem um objeto que é o falo, Este talvez seja o grande paradoxo e que se presta a tantas confusões: “Que de um lado o desejo não tem significante, é um significado que desliza entre os significantes e que, no entanto, o desejo tem um significante e é o falo.”
Apontar ao objeto e não ao vazio, mostra que, quando o analista opta por um forçamento, uma espécie de interpretação que visa o sentido do sentido na esperança de se alcançar a “comunicar o conjunto mais completo de significações ao paciente”, o analista se oferece como referência na transferência e acaba por desencadear um “acting-out”. Lacan explicita isto dizendo que E. Kris, ao interpretar a defesa antes da pulsão acabou por empurrar seu paciente ao “acting-out” na tentativa de preservar seu desejo. Lacan nos diz que a “anorexia mental” do paciente de Kris é uma doença do desejo, pois se trata de um sujeito que recusa o fato de que seu desejo esteja submetido à cadeia significante, que é um sujeito que queria desejar sem ter a menor idéia de que desejava e que, por isso, ataca a cadeia significante.
Esse ponto está descrito por Lacan em seu texto “Posição do Inconsciente”: “para proteger-se do significante sob o qual sucumbe, o sujeito ataca a cadeia, que reduzimos ao mais preciso binarismo, em seu ponto de intervalo. O intervalo que se repete, a mais radical estrutura da cadeia significante, é o lugar freqüentado pela metonímia, (...) do desejo”
Em outras palavras podemos dizer que temos um sujeito que está a um passo de ser representado por um significante para outro significante, mas que permanece petrificado diante um certo significante e necessitará um outro diante do qual ser representado. O ataque à cadeia está descrito no caso do paciente de Kris, ataque a este nada que está entre os dois significantes: ele está doente porque o desejo está enganchado em uma cadeia significante e, portanto, ele se defende dela através de um ataque que coloca sempre, em primeiro plano, o nada. Assim ele mantém a metonímia essencial da cadeia, qual seja, de um desejo que seria possível para ele.
Por isso devemos deixar claro que a interpretação não visa o sentido do sentido. Durante os anos 50 Lacan definiu os conceitos de palavra constituída e palavra constituinte para dizer da interpretação. Talvez esta sua abordagem, que deu ao significante um lugar especial, estabelecendo que a localização dos meandros do significante é obtida a partir do Outro do significante, tenha se prestado a confusões, por isso ele, nos anos 60 tratou de estabelecer os limites que apresentam a experiência analítica com um sintagma: “Não existe metalinguagem”, ou “Não existe Outro do Outro”. A interpretação de Kris se sustentava, lembro-lhes, na possibilidade de estabelecer o sentido do sentido, ou na possibilidade de uma comunicação, ao paciente, do conjunto mais completo de significações. Esta nova perspectiva lacaniana dos anos 60 se sustentou na falha do Outro, onde o analista deverá encontrar seu lugar: “Partamos da concepção do Outro como lugar do significante. Todo enunciado de autoridade só tem como garantia sua própria enunciação, pois é vão que ele a busque em um outro significante, o qual, de alguma forma não fará aparecer fora deste lugar. Isso é o que formulamos ao dizer que não existe metalinguagem que possa ser falada, mais aforisticamente: que não existe Outro do Outro.”
Mas a evolução do ensino de Lacan acaba por leva-lo a formular que “o sentido do sentido em minha prática se capta (Begriff) por escapar: a ser entendido como de um tonel – referência ao Tonel das Danaides – e não por uma debandada.” Lacan continua mais abaixo neste mesmo texto dizendo que isso implica que uma mensagem, mesmo completamente decifrada, pode continuar a permanecer como um enigma, e conclui: é o caso da interpretação.
Vamos concluir este trabalho sobre a interpretação de E. Kris dizendo que, não importa qual o ideal de metalinguagem que está em jogo. Ele sempre é solidário ao poder do Outro em detrimento do poder da palavra, exacerbando a vertente sugestiva. Nesta vertente a palavra não consegue se livrar de seu poder de sugestão. No entanto, quando a interpretação está orientada pela lógica do significante e do objeto “a”, o poder atribuído ao Outro fica reduzido ao poder mesmo da palavra, diferenciando o desenvolvimento da transferência de sua sugestão interpretativa.
 

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura (O Homem dos Ratos)

Passemos aos comentários em torno do caso do Homem dos Ratos. A este respeito Lacan começa chamando nossa atenção para o quão audaciosa era a interpretação de Freud e o quanto a sua vulgarização acaba por desconhecer o alcance de sua adivinhação. E esta audácia se estrutura em torno de um fato simples: é a denuncia que faz sua interpretação de uma tendência que é diferente do instinto: Trieb, a pulsão. “O frescor desta descoberta, nos diz Lacan, nos mascara o que o Trieb implica em si de um advento do significante.”
Esta descoberta, que a figura de Tirésias vem esclarecer ao ser interrogado diante da ambigüidade em que opera seu veredicto – referência às linhas de destino de um sujeito -, vai nos dizer do pouco que concernem ao Eu do sujeito ou a qualquer relação dual feita presente no hic e nunc. Este movimento se esclarece quando verificamos como Freud foi capaz de escutar, “na hora certa (...) o pacto que regeu o casamento dos pais do Homem dos Ratos, portanto, muito antes do nascimento deste.” O mais incrível, continua Lacan, é que “o acesso a este material só tenha sido aberto  por uma interpretação em que Freud presumiu uma interdição que o pai do Homem dos Ratos teria imposto com relação à legitimação do amor sublime a que se devotou, para explicar a marca de impossível de que, sob todas as suas modalidade, esse laço lhe parece ter o cunho.” Ora, continua Lacan, do que se trata é de uma interpretação inexata mas que acaba por ser, mesmo assim, verdadeira, pois ela antecipa o que foi introduzido como função do Outro na neurose obsessiva, ou seja, que esta função esta sustentada por um morto, que foi reconhecido por Freud como sendo o Pai absoluto.
Se no caso Dora o que esteve no centro de nossos comentários foi a função do pai, seguindo o que nos diz Lacan vamos perceber que o central no caso do Homem dos Ratos é a questão da verdade.
Num primeiro momento vamos acompanhar Lacan trabalhando este caso como uma forma de reestruturar a conformação triangular do Édipo fazendo uma construção quaternária.  Lacan faz este trabalho no texto “O mito individual do neurótico” (1953). Para alcançar seu objetivo, Lacan vai destacar a célula elementar da organização familiar que espera o sujeito no seu nascimento e dizer que esta célula sofre transformações sucessivas com o objetivo de poder retificar as faltas do Outro.  Estas faltas Lacan as define nesta época como sendo as faltas do pai.
No caso do Homem dos Ratos a impossibilidade de reunir os dois planos, aquele do amor (a escolha entre a moça rica e a moça pobre) e do dinheiro (a dívida paterna com o amigo militar) faz eclodir o drama do Homem dos Ratos: sua obsessão.
No que diz respeito à transferência, Freud vai ser colocado, diferentemente de Dora, como um amigo, como figura especular. Isto é o que justifica a presença da filha de Freud como um desdobramento de sua bem-amada. Isto também explica porque muitas das questões do Homem dos Ratos acabam por encontrar soluções pelo viés da identificação. Esta transferência estabelecida no eixo imaginário acaba por fazer surgir fantasias agressivas. Mesmo a agressividade descrita por Freud na sessão do dia 08 de outubro de 1907 não está dirigida a Freud na posição de pai, como ele mesmo insiste em interpretar, mas sim no lugar da moça rica, representada, como nos diz Lacan, pela presença da filha de Freud.
Lacan, ao sublinhar a insistência de Freud em colocar-se no lugar do pai, na transferência, deixa claro que ele se enganou na sua interpretação, pois toda agressão masculina não é, necessariamente, dirigida ao pai por razões edipianas que a situam no eixo simbólico, mas que existe toda uma dimensão de confrontação agressiva localizada no eixo a-a’, eixo imaginário ou narcísico.
Lacan nos traz tudo isso para concluir que o elemento que transforma o esquema triangular freudiano em esquema quaternário é a morte: “é, com efeito, da morte imaginada, imaginária, do que se trata na relação narcísica (...) É igualmente a morte imaginada, imaginária, que se introduz na dialética do drama edípico.”
No texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan trata de reencontrar o efeito da palavra de Freud buscando “os princípios que a governam”.
Primeiramente ele trabalha a questão da análise das resistências para dizer dos desvios que esta propicia. Em seguida Lacan demonstra como Freud, ao responder à demanda de explicação, consegue entrar no jogo de sedução imaginária do Homem dos Ratos. O que se trata neste momento não podemos chamar de doutrinamento, mas sim de um dom da palavra que permite, segundo nos diz Lacan, a equivalência simbólica posterior do significante rato e o dinheiro pago ao analista. Isto porque Freud faz dom da palavra ao fazer equivaler o gozo sintomático que lhe será dado por meios dos florins, iguais ao significante rato, através de uma equivalência simbólica. Lacan nos diz que Freud não desconhecia a resistência, mas faz uso dela para lançar o movimento da palavra implicando o sujeito em sua mensagem. No texto “L’Etourdi” (1974), ao falar do “doutrinamento” de Freud, apresenta esse mesmo doutrinamento como exemplo de interpretação e diz: Freud faz os “sujeitos repassarem sua lição” em sua gramática. O que está assim descrito é que para que possa se produzir a implicação do sujeito em sua própria mensagem é fundamental jogar com a ressonância da palavra para que esta reenvie ao sujeito sua própria mensagem invertida.
O que acompanhamos na obra de Lacan é um trabalho onde ele aplica a mesma técnica na leitura da obra de Freud, ou seja, “à poética da obra freudiana”, “para compreender a repercussão dialética” que noções como a da pulsão de morte podem facilitar o trabalho de deciframento e encontrar os efeitos da palavra de Freud. Do que se trata ao final das contas é buscar o pacto que Freud estabeleceu com a palavra na releitura que Lacan propõe para o caso do Homem dos Ratos.  
Este texto de Lacan, “Função e Campo...” é conhecido por propor os conceitos de Palavra Plena (palavra verdadeira) e Palavra Vazia (palavra falsa) como conceitos importantes para trabalhar a Interpretação: “a análise só pode ter como objetivo o acontecimento de uma palavra verdadeira.”
É nesta vertente que Lacan pode mostrar que a interpretação de Freud pode ser inexata, mas verdadeira. Isso com respeito à articulação que ele faz entre o papel que desempenhou a proposta de casamento que lhe apresentou sua mãe como sendo um efeito “de uma interdição trazida por seu pai defunto contra sua ligação com moça de seus pensamentos”. Lacan nos diz que isso não é apenas materialmente inexato, mas também psicologicamente.... O que vai operar, diz Lacan, é menos a afirmação da “ação castradora do pai” do que seu reconhecimento da “subjetivação forçada da dívida obsessiva”, que acaba por jogar um papel de primeiro plano e leva o sujeito a reencontrar em sua história a brecha impossível a tamponar da dívida simbólica da qual sua neurose é o protesto.
Lacan mostra, também, que a transferência guarda aqui a posição da morte, fundamental para o obsessivo. E isso aparece no eixo imaginário na medida que busca uma negociação: dá a Freud uma filha imaginária em troca de um consentimento á aliança conjugal. Mas o sonho que ele traz acaba por revelar o verdadeiro rosto da transferência: “Aquele da morte que o olha com seus olhos de betume.”
Ainda no texto “Função e Campo...”, Lacan realça a necessidade de levar em conta o não dito que habita os intervalos do discurso. É nestes intervalos que está a realidade do sujeito que, por sua vez, acredita que sua verdade está na análise (sujeito suposto saber), o que vai permitir as intervenções do analista, pois o sujeito mesmo se constitui na busca de sua verdade. A interpretação deverá ser, diz Lacan, uma resposta particular à questão do analisante. As questões do sujeito, quando tomam a forma de uma palavra verdadeira, são escandidas pela interpretação que acabam por afirmar que uma palavra verdadeira já contém em si sua resposta, ou seja, que a interpretação já foi feita pelo inconsciente mesmo. A interpretação será, então, apenas a pontuação dialética sobre a palavra do sujeito.  
Esta interpretação leva, ao menos, a duas conseqüência: A primeira recai sobre o sujeito, sobre a produção de efeito de sujeito, sempre pontual em conseqüência do corte que aí se instala. A segunda recai sobre o sentido: a pontuação fixa um sentido de um texto. A pontuação como fixação do sentido é inseparável da noção de inconsciente como escritura, como traço, como  corte, e da função do analista como “escriba”.
Em “Variantes do tratamento padrão”, Lacan vai retomar novamente a interpretação de Freud ao Homem dos Ratos para falar de uma interpretação autêntica.: ao dizer: “seu pai está morto”, Freud apresentou uma intuição de uma verdade profunda: a falta do pai à verdade da palavra. Ora, esta intuição, “o acesso de Freud ao ponto crucial do sentido onde o sujeito pode decifrar (à la lettre) ao pé da letra seu destino”, lhe está aberto pela sua própria analise onde ele reconheceu “o fato de ter sido, ele mesmo, objeto de uma sugestão parecida da prudência familiar (...) e talvez e que, provavelmente, ele não respondeu a isso na ocasião por não ter, ele mesmo (Freud), reconhecido isso.”  Daí a importância que dá Freud a que o analista possa, através de sua própria análise, criar condições de aceder à palavra verdadeira, promovendo o que poderia ser chamado como “o fim de seu ego”.
Para concluir, uma palavra sobre a presença de Tirésias neste texto. No texto “A Direção do Tratamento...” Lacan distingue uma vertente da interpretação que concerne ao objeto da pulsão e uma vertente que recai sobre a dimensão significante do sujeito.
A interpretação freudiana inexata, mas verdadeira sobre a interdição que o pai fez, na medida que se apresenta como um veredicto, visa a função do Outro simbólico na neurose obsessiva e demonstra que ela se acomoda por demonstrar o pai morto. Esta é uma interpretação que produziu efeitos de verdade no sujeito. Ela está fundada sobre o saber e conduz o sujeito a se engajar nas linhas do destino de sua determinação significante, interpretação oracular tal como a de Tirésias, o mestre da verdade da antiguidade. Ela se produz em nome de se atribuir uma significação entanto sentido imaginário. Ela se faz em nome do pai. Freud opera sobre o gozo com um significante para desalojar o desejo inconsciente, e esta interpretação freudiana se apóia sobre o Sujeito Suposto Saber, ou seja, sobre a vertente da transferência em interseção entre o imaginário e o simbólico.
Mas o desejo ou seu horizonte é incompatível com a palavra. Nesta vertente a interpretação do analista não tem o mesmo caráter que a anterior, ou seja o analista aí não é Tirésias, mestre da verdade, mas sim ele deve estar no lugar das mamas de Tirésias, como está escrito no Seminário XI. Esta é a vertente da interpretação que articula a transferência à pulsão em uma ultrapassagem entre o simbólico e o real. O analista aqui interpreta em nome do objeto ao qual ele será reduzido ao final de uma análise. Objeto sem-sentido, resto. Esclareço este objeto destacando sua função de semblante do real.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura (O caso Dora)

Na subdivisão sete do texto "a direção do tratamento..." Lacan vai se ocupar de dois casos clínicos de Freud para nos dizer da importância da retificação da relação do sujeito com o Real. Mesmo que neste momento saibamos que Lacan se refere ao Real mais em termos de realidade do que ao Real como ele mesmo vai desenvolver mais tarde, o que está aqui descrito a respeito da retificação subjetiva continua atual. Em Dora, o que se apresenta é que, longe de estar numa posição onde se faria necessária uma adaptação à realidade como preconizavam os analistas da IPA, ela se encontrava perfeitamente adaptada, pois “mais do que participar, ela se constituiu a cavilha dessa desordem”. Do que se trata, portanto é de mostrar-lhe que “ela está mais do que bem adaptada à situação, uma vez que concorre para sua fabricação”. Um pequeno comentário sobre o que Lacan tantas e tantas vezes comentou a respeito do caso de Dora. Esta intervenção de Freud aponta o caminho para uma possível saída deste sujeito ao tentar demonstrar que o sintoma histérico se resolveria da mesma forma que um sonho se interpreta, ou seja, que a interpretação do sintoma poderia se resolver pelo deciframento do sentido inconsciente, este sempre sexual. Freud completa esta sua proposta dizendo que este sentido se interrompe na medida em que ele reencontra o desejo inconsciente. Em Dora, no entanto, constata-se que faltou uma interpretação. O próprio Freud diz isso quando, em sua nota de 1923, atribui a interrupção do tratamento ao fato de não ter interpretado a moção de amor homossexual determinante em sua paciente e que se apresentava em sua relação com a Sra. K. É verdade que esta observação já está na trilha do que ele mesmo pode observar no caso da Jovem Homossexual e consiste em uma tentativa de retificar o que ele mesmo disse na ocasião da interrupção do tratamento de Dora: que este “agieren”, ou seja, a sua saída, teria sido conseqüência, de um equivoco no manejo da transferência, na medida em que ele, Freud, seria o substituto do Sr. K. que ocupava o lugar do pai.
Talvez por tudo isso foi possível a Lacan efetuar uma nova leitura do Caso Dora. Leitura que ele se propôs em várias ocasiões, sendo a mais conhecida e discutida aquela que ele propõe no seu texto “Intervenção sobre a Transferência” que se encontra publicado nos “Escritos”. Outra ocasião muito importante foi a releitura deste caso no Seminário IV “A relação de objeto”.  Um pequeno resumo do que diz Lacan pode ser feito em três formulações que se sustentam, como ele mesmo diz, nos preconceitos freudianos: a primeira foi a sua incapacidade de reconhecer, no momento, a tendência “homossexual”, a segunda fica por conta de seu movimento em direção a interpretar a transferência sempre na vertente do pai “natural” edípico, que leva a uma terceira, qual seja, a de acreditar que o tratamento pode ser dirigido a partir de uma posição de um pai amoroso.  Em outras palavras, o que Lacan nos aponta nas suas releituras dos anos 50 é que a confusão de Freud se sustentou em função da não distinção entre as posições simbólicas e imaginárias na transferência.  
Mas é no Seminário XVII, “O avesso da psicanálise” que Lacan vai nos trazer uma nova releitura do caso Dora, desta vez apontando para o que hoje costumamos chamar de “uma leitura para-além do Édipo”.
O pai de Dora, nos lembra Lacan, é um homem castrado sexualmente, ou seja, um homem que se mostra deficiente em relação à função fálica, o que implica que esteja afetado simbolicamente. O lugar de Mestre no discurso da Histeria, proposto por Lacan nesta época, (1970) vai nos dizer que o pai não é apenas procriador, mas que está sempre em posição de criação potencial. Este é lugar do S1, à esquerda e acima da barra. Entretanto, convém ressaltar que esta é uma posição um pouco fora de circulação pois, como diz Lacan, esta afetação simbólica do pai da histérica, deficiente e criador em potência, é uma posição idealizada. Em outras palavras, o pai de Dora, castrado, não é menos capaz de fazer o papel de pai idealizado a ponto de poder desempenhar o lugar de mestre no discurso onde ele se inscreve. É neste ponto que vemos o Sr. K ser chamado como “o terceiro homem” como aquele que possui um órgão. Ela, entretanto, não que gozar do órgão, mas sim do envoltório deste órgão precioso, como pode ser interpretado a partir do sonho da caixa de jóias. Este homem que tem acesso a Sra. K, em que Dora está interessada na medida que ela é capaz de sustentar o desejo do pai idealizado, ao mesmo tempo em que priva Dora deste desejo. Dora, portanto, se vê duplamente excluída: do amor e do desejo do pai. Esta interpretação pode esclarecer porque Dora vai recusar o gozo que lhe oferece o Sr. K: ela quer outra coisa. O que Dora busca é “o saber, como meio de gozo, mas para coloca-lo ao serviço da verdade, da verdade do mestre que ela, enquanto Dora, encarna”. E esta verdade nada mais é que a verdade de sua castração.  Em outras palavras, o que interessa à Dora, e às histéricas em geral, é a produção de saber sobre a verdade do mestre, que ela leva ao conhecimento de todo o mundo. É nisso que Freud acaba por ajudar Dora, levando-a a interromper o tratamento.
A experiência de Freud com Dora acaba por leva-lo ao “rochedo da castração”, reconhecido na demanda de um amor incondicional como penisneid - “inveja do pênis”: “Isto termina na reprovação feita à mãe pela filha por não tê-la feito menino, quer dizer, sob a forma de frustração que, na sua essência significativa (...) se desdobra por um lado em castração do pai idealizado, que dá o segredo do mestre, e por outro em privação, a assunção pelo sujeito, feminino ou não, do gozo de ser privado”.
Para concluir este nosso percurso pelo caso Dora em suas várias releituras lacanianas, vamos resumi-lo assim: O que aspiram o mito de Édipo e a interpretação psicanalítica que se apóia nele, é fazer o papel de um saber que se pretende verdade. Interpretar a partir do Édipo, é faze-lo em nome de um pai idealizado que esconde a verdade de sua própria castração, como nos diz Eric Laurent.
Esta última releitura do caso Dora foi o que, provavelmente levou Lacan a propor, em seu Seminário “RSI” (1975), a definição do pai a partir da causa. O pai que merece o respeito e o amor é aquele que está orientado a partir de uma causa, o que não implica a suposição de nenhum ideal, bem ao contrário. Uma interpretação psicanalítica não pode excluir esta condição do pai, nem se fazer em nome do pai. Em outras palavras, é preciso ir além do pai à condição dele se servir.
Esta última afirmação que Lacan vai fazer em 75, se não me engano, no Seminário já citado: “RSI”, nos esclarece uma pequena passagem desta subdivisão que estamos tratando aqui, quando afirma que é preciso reconhecer o poder que emana da transferência e que “esse poder só lhe dava a solução do problema na condição de não se servir dele, pois era então que assumia todo o seu desenvolvimento de transferência.”

terça-feira, 6 de agosto de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura VIII

Quando Lacan toma a seu cargo a tarefa de um retorno ao sentido de Freud, ele esta se propondo um trabalho que transcendia a simples revisão de conceitos e articulações teóricas. Seu objetivo tinha, em seu bojo, conseqüências sobre a práxis analítica. Práxis como a que se refere ao ato que possibilita colocar o sujeito em condições de tratar o real pelo simbólico.
Tendo isso como alvo, Lacan vai propor uma direção do tratamento sustentada em três pontos, como já pudemos  trabalhar aqui: “Tática, Estrategia e Política”.
Minha intenção é tomar como causa deste texto o que poderia ser uma interpretação analítica bem sucedida, ou seja, aquela que promove um corte pela incidência da letra – do significante destituído de sua relação à significação – para promover uma mudança subjetiva, ao mesmo tempo em que permanece como uma interpretação memorável.  
A expressão “interpretação memorável”, criada por Jacques-Alain Miller para a Seção Clínica, chamou minha atenção quando se observa as poucas ilustrações concretas de interpretações que poderíamos chamar de memoráveis nos relatos de análises ao cartel do passe, acrescentando que talvez exista “uma dificuldade estrutural para elucidar essa passagem para o sujeito (...) pois o momento dessa mutação é difícil de apreender...”
É a partir deste ponto que me ponho a trabalho para  desenvolver uma hipótese dizendo que esta dificuldade se deve ao fato de que uma interpretação só se torna passível de ser memorável se ela for capaz de promover uma transmutação de registro, ou seja, traduzir “Traços de percepção (Wahrnemungszeichen)” em “Traços duradouros (Dauerspuren)” ou “Traços de memórias (Erinnerungspuren)”. Estando fazendo referência ao esquema do aparelho psíquico proposto por Freud na Carta 52 de sua correspondência a Fliess permito-me introduzir, a partir do desenvolvimento de Lacan, a incidência do traço unário (Einziger Zug) entre as camadas dos “Traços de percepção”, (Wahrnemungszeichen) e o “Inconsciente” (Unbewusst), na medida em que é a presença deste traço (Zug), após o assentimento primordial (Bejahung), o que vai possibilitar a estruturação do inconsciente (Unbewusst) com o seu limite: o “Unbegriff” - conceito criado por Lacan para nos dizer do UM do inconsciente.  
Como já convocamos a “Carta 52”, continuaremos com sua referência para dizer que a interpretação vai se mostrar eficaz e permanecer como memorável quando ela for capaz de promover o “despertar de um novo desprazer”(der Erweckung neuerlich Unlust) ali onde “uma memória se comporta como um evento corriqueiro” (Die Erinnerung benimmt sich dann wie etwas Aktuelles) com a intenção de promover uma inibição à liberação de desprazer (Unlust).
Minha proposta se sustenta em uma pesquisa no texto freudiano, onde pude constatar que, ao contrário do que observamos nas traduções (português, inglês, espanhol ou francês) são utilizadas três palavras distintas para a palavra traço que, longe de ser apenas uma questão de retórica, vão nos apontar recortes conceituais diferentes, propiciando uma formalização do que penso ser uma “interpretação memorável”
Zeichen - Freud utiliza este significante na Carta 52 quando nos diz: “o essencialmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços (Zeichen = indícios, insígnias).”
Ele aí está nos apresentando “Traços de percepção” (Wahrnemungszeichen), o primeiro registro (Niederschrift) “absolutamente incapaz de se tornar consciente, e organizado de acordo com associações por simultaneidade (Gleichzeitigkeitsassoziation)”. Estes traços “nós podemos, nos diz Lacan, dar-lhes imediatamente seu nome verdadeiro de significantes.”
Zug - Este significante é utilizado por Freud em poucas ocasiões: “Uma criança é batida” e “Psicologia das massas - parte VII”, onde Lacan vai buscar o conceito de traço unário (Einziger Zug). Trata-se, de um traço, de um puxão, de uma espécie de sulco inaugural que tem como consequência lógica a Bejahung primordial.
Spur - Esta é a palavra alemã para traço que Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Na Carta 52 vamos vê-lo utilizar Spur quando diz que se na camada denominada “Percepção” (Wahrnemung) nenhum traço (kein Spur) do que acontece permanece, isto só será possível quando do segundo registro (Niederschrift): “Inconsciente” (Unbewusst), onde “traços do inconsciente (Unbewusstspuren) são algo equivalentes a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen), também inacessíveis à consciência”.  
Acrescento que é a incidência do traço unário (Einzeger Zug) o que promove a reorganização das “associações por simultaneidade” em lembranças conceituais, a partir mesmo da instalação do “UM”, da hiância, como causa.
Freud é bastante claro, portanto, em dizer que é somente quando o traço (Spur), está registrado, é que vai ser possível o próximo passo: “a transcrição (Umschrift), ligada à representação de palavra”.
Ora, uma intervenção que se sustentar no deslizamento do sentido permanecerá apenas como traços de percepção (Wahrnemungszeichen) pois, sendo apenas uma indicação, insígnia de um Outro que se apresenta como ideal [I(a)], vai impedir a que uma marca (Zug) possa produzir o  “despertar um desprazer particular liberando um novo desprazer que, então, não pode mais ser inibido”. Este “despertar” só será possível pela ação de um corte, uma separação que, apontando para a brecha que o traço (Zug) deixou ao ser assimilado, vai abrir o caminho (bahnung) para que um traço de memória (Erinnerungsspur) possa se apresentar à transcrição (Umschrift) ligado-se á representação de palavra (Wortsvorstellung). Assim será possível à interpretação produzir ondas.
Em outras palavras, podemos dizer que é a partir deste deste sulco (Zug) produzido pelo corte que o esvaziamento do sentido vai ocorrer, apontando a “separação entre S1 e S2 que se inscreve sobre a linha inferior do ‘discurso analítico",  como nos esclarece J. A. Miller,  possibilitando uma retificação no trajeto da satisfação pulsional, ao desviar o vetor do sentido, para a causa de desejo.
Esta é a intervenção de um analista que pode propiciar a um sujeito dar um passo a mais e confirmar a sua decisão pela análise.
A confirmação desta decisão, acredito, não se faz pela via do saber, mas sim por um consentimento com a experiência do inconsciente que este corte instala. Quando me refiro a consentimento, tenho em mente o que Lacan nos diz em seu Seminário VII - A Ética da Psicanálise: quando, uma vez cumprido o ato do assassinato do pai da horda primitiva, “se instaura um consentimento inaugural que é um tempo essencial na instituição da lei. Quanto à esta lei, a arte de Freud será vinculá-la ao assassinato do pai, de identificá-la à ambivalência que então funda as relações do filho com o pai, isto é, ao retorno do amor após efetuado o ato.”