Por que um texto de 1958, quando o conceito
de objeto “a”, tão importante para os novos desenvolvimentos da clínica
lacaniana, ainda não havia sido elaborado? Sabe-se que a elaboração deste
conceito, como assinala Lacan, num texto que também está nos Escritos e que se
chama “Posição do Inconsciente”, trouxe mudanças profundas na teorização da clínica
e, obviamente, mudanças no que se pode denominar de “técnica” da Direção do
tratamento.
A retomada deste texto atesta, como nos
lembra Laurent[1],
o classicismo de Lacan, pois é um texto que continua atual e, ao mesmo tempo
consegue fazer presente a Freud. Este é
um ponto de suma importância quando se trata de uma psicanálise que se quer
digna deste nome: é fundamental que não nos esqueçamos de seu fundador. Lacan
conseguiu, através de sua releitura de Freud, reavivar o texto do fundador da
psicanálise e produzir efeitos importantes na transmissão e sustentação da
clinica psicanalítica. É importante notar que o efeito Lacan, a transferência
que soube despertar e manter, não se reduz à erudição[2].
Lacan na verdade, ao fazer o seu retorno a Freud consegue libertar a
psicanálise de certo entorpecimento que as instituições psicanalíticas, de
então, impunham através do que se pode definir por escolástica.
O ponto de partida de Lacan para
estabelecer esta reviravolta na psicanálise do pós-guerra, ele mesmo o anuncia
quando diz que: “a fidelidade ao envelope formal do sintoma, que é o verdadeiro
traço clínico pelo qual tomávamos gosto, levou-nos ao limite em que ele se
reverte em efeitos de criação”.[3]
Repito então a citação de Lacan: “a fidelidade ao invólucro formal”, eu repito
por que é simplesmente fundamental. O ponto de partida de Lacan - é preciso que
não nos esqueçamos disto - está escrito no texto denominado “De nossos
antecedentes”[4],
é a “fidelidade ao envelope formal do sintoma” que é o verdadeiro traço
clinico, pelo qual tomamos gosto”. Um traço que se reverte em efeitos de
criação. Esta frase contém o germe da teorização lacaniana e foi escrita em
1966, fazendo referência a Clerámbault e à psiquiatria que Lacan praticou nos
primórdios de sua clínica (cumpre ressaltar que até os seus últimos momentos,
Lacan nunca deixou de manter um contato estreito com a prática psiquiátrica) e,
também, ao primeiro encontro dele com Freud, quando pode saber como é que o envelope formal do sintoma pode
se “reverter em efeitos de criação”. Este ponto é uma indicação do que Lacan,
nos anos setenta, vai dizer sobre o final de análise como um saber fazer aí (savoir
y faire) com o seu sintoma. Esta elaboração foi um passo a mais, para além do
que ele chamou de travessia da fantasia.
A “fidelidade ao envelope formal do sintoma” é o que vai fazer frente,
quando Lacan retoma Freud em 53, às considerações biográficas dos analistas da
época que deslizavam pelo imaginário da história, esperando com isso acabar com
o Real do sintoma.
Paradoxalmente, o que Lacan faz é retomar,
principalmente a constituição e a manutenção da unidade da clínica ao construir
um estilo clássico para a técnica analítica. Disse paradoxalmente porque Lacan
foi e continua sendo tratado como aquele que teve uma prática clínica singular,
desviada, estranha. No entanto, o que se percebe é que Lacan optou por se
sustentar em princípios e não em padrões estandardizados. Para isso basta oferecer à observação o tipo
de clínica que se sustenta nas intuições, por exemplo, da contra-transferência
e aquela que a recusa, ou então examinarmos aqueles que sustentam uma teoria
acreditando na existência de uma aliança terapêutica com um ego livre de
conflito ou, então, na chamada simbiose terapêutica em lugar de trabalhar com a
transferência na perspectiva de uma repetição do impossível que insiste em não
escrever a proporção sexual.
O que Lacan nos apresenta é uma série de
princípios que se sustentam, mesmo que se modifique o dispositivo analítico
para cada uma das pessoas que a ele se dirige. Em outras palavras, o seu
classicismo está no fato de que as regras do ritual estejam sensíveis à
experiência.
Nesta perspectiva é que Lacan vai tomar da
clínica com psicóticos e com crianças as razões para encurtar as sessões. Além
disto, vai buscar no silêncio o princípio de sua ética que se resume numa
pequena frase: não ceder de seu desejo, fazendo o psicanalista, mais do que
qualquer outro, responsável do seu dizer. Ao assim proceder, “a sessão
analítica, cito Laurent, se constrói como uma verdadeira compressão da fala,
como se fosse uma espécie de centrifugação da palavra vazia”[5].
Com isto pode-se criar fatos novos, novos encontros que abrem novas
possibilidades. Automaton e tiquê se alternam produzindo retificações e fazendo
surgir “num terceiro tempo, cito Lacan, “o (sujeito) ein neues Subjekt ,
como dizia Freud, um novo sujeito, que é preciso entender assim – não que ali
já não houvesse um, a saber, o sujeito da pulsão, mas que é novo ver aparecer
um sujeito”.[6]
A clínica lacaniana não é apenas uma clínica do jogo de palavras, da interpretação vazia, do corte da sessão, ou do ato. É também uma clínica do afeto, a clínica da angústia, este afeto que não engana e que se apresenta na transferência. Esta, por sua vez, se apresenta com uma nova agudeza na medida em que afasta a intersubjetividade que se estabelece na intuição ou na empatia da contra-transferência, e assim faz a clinica lacaniana, ao esvaziar este lugar do Outro, designando-o primeiro como lugar do código onde a mensagem se constrói e a interpretação toma seu sentido para no outro momento estabelecer ali, no lugar do Outro, o ponto onde o semblante de um objeto construído pela fantasia opera sobre o sujeito que está em questão numa análise. É fundamental afirmar que o único sujeito que está em questão numa análise é: o analisante. Por isso tudo se constata que a lógica do significante é indispensável para se pensar o lugar do analista e a função do objeto na direção do tratamento. Esse binário S1, S2, é aquele mais simples que se pode estabelecer, quando se refere à chamada lógica do significante, e que se define assim: o significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante. Em outros termos, o sujeito é sempre um sujeito por vir. Por isso disse a pouco que o que o novo não é sabermos se o sujeito já está ali. O que é novo, é ver surgir esse sujeito no momento em que um significante, que não é aquele que estava acostumado a sustentar a representação desse sujeito para outro significante, faz com que ele possa surgir como novo. E essa operação, operação que a lógica do significante aponta, deixa sempre um resto. Resto esse, que Lacan designa com o nome de objeto pequeno “a”. Vamos trabalhar, por aí, com cuidado. Esses conceitos são, para alguns, óbvios, para outros são novos, mas o importante é poder familiarizar-se com eles. E essa é nossa proposta aqui: seremos cuidadosos com o óbvio, porque ele tem a propriedade de nos ensurdecer. E um dos princípios freudianos para a prática da psicanálise, escrito na primeira lição sobre técnica[7], é que se esqueça tudo aquilo que se sabe, é receber cada paciente como um novo paciente, não buscando antecipadamente encontrar ali isso ou aquilo. Freud falava isso em referência aos novos pacientes e eu me utilizo desta recomendação em referência aos conceitos que sustentam a teoria psicanalítica. Vamos escutá-la buscando o novo, na esperança de que o sintoma de cada um nós: a psicanálise, possa reverter-se em efeitos de criação. Essa é uma proposta. Assim sendo, essas letrinhas que constituem os matemas de Lacan serão mastigadas, poderão ser rejeitadas ou assimiladas, é possível que uma “Bejahung” se constitua a partir daí no consentimento, mesmo que a negativa possa dizer o contrário em seguida. Mas, o importante é que se per-severe.
[1] Laurent, E., “Lacan Clasico”,
in Concepciones de la cura en psicoanalisis, Ediciones Manatial, Buenos Aires,
1984.
[2] Idem, pág. 8.
[3] Lacan, J. Op. cit. pag. 66.
[4] Lacan, J., De nossos antecedents”
in Escritos…
[5] Laurent, E. Op. cit. pag. 10.
[6] Lacan,
J., Seminário XI, pág. 169.
[7] Freud.
S. recomendações ao médicos....
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