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terça-feira, 2 de julho de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura – III

Retomo Saussure para assinalar que foi ele quem primeiro pode isolar este significante paradóxico que é o significante que não significa nada. A Associação Livre só se sustenta pelo fato de que podemos confiar que "o significante não significa nada", ou seja, paradoxalmente confia-se que ele pode significar qualquer coisa. Ao confiarmos nisso podemos encontrar as significações mais essenciais do que se pode chamar a vida humana.
Um pequeno parêntese para que possamos perceber a possibilidade de operacionalizar estes passos que demos até aqui: Foi a partir mesmo desta possibilidade de fazer operar na associação livre este significante que não significa nada que Lacan pode construir seu matema da transferência e justificar a criação deste operador maravilhoso que se chama Sujeito Suposto Saber, este que não sabe nada, mas que basta entrar em operação na experiência analítica para que, quanto menos significar, mais significa algo. Ou seja, o significante cria, por suas permutações, o significado.
 
Esta seqüência, no entanto, só pode acontecer porque o todo não se faz e uma perda está posta no princípio mesmo da lógica do significante. É o que Freud denominou de recalque originário. O famoso umbigo do sonho, descrito por Freud, exemplifica este ponto que está sempre aquém de toda interpretação fazendo com que um significante a mais seja sempre chamado, indefinidamente, produzindo ramificações sempre muito complexas. Em outras palavras chegamos no ponto de poder dizer que isso acontece porque um significante nunca pode se colocar como idêntico a outro significante, pois o princípio diacrítico se coloca como um a priori: "um significante só é opondo-se a um ou dois significantes diferentes".
 
Citar Lacan, novamente, mas desta vez a partir de um debate que ele sustentou com estudantes de filosofia, vai nos ajudar neste nosso caminho: "O mínimo que vocês podem me atribuir no que concerne minha teoria da linguagem, é, se isso interessa a vocês, que ela é materialista: o significante é a matéria que se transcende em linguagem".
 
Retomo a lógica do significante. O passo seguinte à lógica do significante é a "questão do sujeito". Esses dois passos: a "lógica do significante" e a "questão do sujeito" já foram explicitamente citados a partir do texto que trabalhamos: “Percebe-se que o que aqui se furta é a natureza de uma transmutação no sujeito, e de um modo ainda mais doloroso para o pensamento, por lhe escapar no exato momento em que passa à ação. Nenhum indicador basta, com efeito, para mostrar onde age a interpretação, quando não se admite radicalmente um conceito da função do significante que capte onde o sujeito se subordina a ele, a ponto de por ele ser subornado.”
 
Relembro que o significante é um elemento que não tem nenhuma consistência própria e que só existe por sua diferença com outros elementos do mesmo tipo. É, pois um elemento não substancial, que não pode ser descrito por suas propriedades intrínsecas. É um elemento diferencial. O próprio Saussure nos disse, de várias maneiras, que a língua é feita somente de diferenças, por isso é que o falar é uma atividade que não é substancial, mas sim um lançar-se em um campo de diferenças. E Lacan soube muito bem escutar e fazer disso um instrumento da interpretação psicanalítica: utilizar o cristal da linguagem com os mal entendidos que ela provoca para fazer surgir este elemento diferencial que vai denotar a presença de um sujeito, ao mesmo tempo em que nos diz que não é possível desenhar um todo no campo do significante. Esta oposição entre a estrutura própria do significante e o todo nos ajuda a pensar que a possibilidade de se fechar o campo do significante em um conjunto só é possível às custas de uma perda, da instalação de uma exceção, da presença de um significante que não esteja inserido no conjunto. Isso é essencial no campo do significante Saussuriano: existe pelo menos um significante que não pertence ao conjunto, traduzindo-se assim um famoso sintagma lacaniano: nada é tudo!
 
Tudo o que venho falando até aqui acaba por desembocar na própria estrutura da cadeia significante que vai implicar sempre um significante a mais, "um outro significante que escapa", que se traduz muito bem na metáfora que Lacan utiliza: o Tonel das Danaïdes. Em várias ocasiões esta metáfora vai ser utilizada para nos dizer do que é essencial na cadeia significante: o sentido desliza sob a barra, ali onde um significado final não pode ser alcançado. Este processo é, também, conhecido como "Fuga do sentido". Esta forma de colocar as coisas modifica um pouco a questão relativa ao inefável, àquilo que não pode ser dito. Na verdade não existe nada que não pode ser dito, no entanto, qualquer coisa que se diga, vai sempre dizer que existe um outro significante que não foi tocado. Não se trata, e aí está uma diferença que se coloca em relação a outras teorizações da psicanálise, não se trata de nenhum significante em particular que estaria impedindo ou atraindo para si todos os demais. O que podemos dizer é que qualquer que seja o conjunto de significantes que delimitemos, sempre vai faltar um, sempre vai ficar um de fora. É, no entanto, muito importante assinalar que este que fica de fora é aquele que, no momento em que uma interpretação acontece, vai estabelecer, no movimento de só depois, um significado. Por isso, como já fizemos alusão, este significante que permite este ponto de amarração simbólica e a produção de significação é também conhecido como Sujeito Suposto ao Saber.

S _________________  Sq
      S(S1, S2, S3... Sn)
 
Introduzimos com esta falta e com a possibilidade de se constituir o SsS o que é apreendido como sendo da ordem do Um - o Um da fenda, do traço, da ruptura -, a brecha por onde a neurose se liga a um real que não é determinado. Lacan explicita esse “Um” do Unbewusste como o Unbegriff, não o não-conceito, mas o conceito de falta. Com essa digressão estamos anunciando, também, o conceito daquilo que claudica, do “Um” que não vai com os outros e que coloca em evidência a questão da causa.
 
Com esse “Um” que falta e a introdução do conceito de Inconsciente como sendo algo que escapa (lembre-se que o inconsciente apresenta a mesma estrutura que sustenta a lógica do significante, ou seja, a estrutura de uma linguagem onde existe a fuga do sentido), esse “Um” adquire um novo valor se o escrevermos conforme a proposta de Lacan em sua subversão do signo sausurriano, dando-nos a estrutura elementar da cadeia significante: S1 - S2. O que isto quer dizer? Que existe sempre um deles que não fica ao alcance de nossas mãos, o que não nos impede de escreve-los de uma mesma maneira, apenas fazendo a diferença através dos índices 1 e 2. Esta forma de escrever a cadeia significante - uma forma de abreviar o que Lacan chamava de discurso, foi lentamente elaborada, por Lacan, durante seu ensino.
 
O que o discurso assinala, antes de tudo, é que a diferença entre um e dois deixa um espaço vazio onde vai habitar um sujeito que será, ao mesmo tempo, efeito desta mesma articulação. É um sujeito que é admitido no universo do discurso como um elemento que se introduz por não ser idêntico a si mesmo. Este é o sujeito que se define por um significante que o representa para outro significante. Lacan o escreve com uma barra para nos dizer que este sujeito não é o mesmo que o ego que, desde Fichte, é definido como igual (em francês a homofonia egos=égaux, várias vezes aludida por Lacan). Miller assim se refere a este sujeito: "O sujeito do qual se trata na lógica do significante é um sujeito diferente de si mesmo e esta é a leitura que lhes proponho dessa barra: um sujeito que cumpre essa função de um elemento não idêntico a si mesmo". Esta proposta de Lacan, estabelecendo a ex-sistência de um sujeito não idêntico a si mesmo é o que vai permitir criarmos a ilusão de um saber total. Saber que só poderá ser estabelecido a partir do "sacrifício do sujeito que habita tal ilusão".
 
Dentre as muitas implicações clínicas deste fato está a escrita que Lacan propõe para este um a mais no universo do discurso: S(A/), para nos dizer que esse um a mais do universo do discurso faz com que este universo não exista, apenas ex-siste o “um” da falta. Por isso é necessário que uma análise aconteça em presença, por isso é necessário que "alguém simule o aporte do significante a mais, desde um lugar distinto da associação livre, onde se faz a concatenação significante. É necessário que desde outro lugar venha ao menos um significante".  Por isso Lacan vai nos dizer, ao final da subdivisão cinco que a presença necessária vai mais além da física: “Primum vivere, sem dúvida: há que evitar o rompimento. Que se classifique com o nome de técnica a civilidade pueril e honesta que ensina com tal finalidade, ainda passa. Mas, quando se confunde essa necessidade física da presença do paciente na hora marcada com a relação analítica, comete-se um engano e se desencaminha o novato por muito tempo.”
 
Lacan, em sua Conferência à Universidade de Milão, em 12 de maio 1972, sobre o Discurso Analítico nós diz algumas coisas que penso ser muito importante transcrever aqui com o intuito de concluir nosso texto, hoje:
“Basta que analisemos um sonho para ver que só se trata de significante. E do significante em toda esta ambigüidade que denominei a pouco como resvalo (dérapage). 
Ou seja, que não existe um significante no qual a significação seria assegurada. Ela pode sempre ser outra coisa, e mesmo passar seu tempo a deslizar muito longe do que queremos na significação. Tão sensível na Interpretação dos Sonhos, isso não é menos em A Psicopatologia da Vida Cotidiana, e mais ainda em O Chiste. Isso me parece essencial, é essencial.”
E. finalmente:
“O significante é o que introduziu no mundo o Um, e basta que haja o Um para que isso ... isso comece, isso comanda o S2, quer dizer, o significante que vem depois, depois que o Um funciona: ele obedece. O que há de maravilhoso é que, para obedecer, é preciso que ele saiba alguma coisa.” 
Para a próxima Postagem continuaremos trabalhando a interpretação sabendo que Lacan introduziu o termo “Bem dizer” em “Televisão”, em 1973. É um termo que atravessa todo aquele texto. O bem dizer é uma ética, uma nova formulação da ética da psicanálise. “Não há ética senão a do Bem dizer”.  Também sabemos que a ética da psicanálise é relativa à prática da palavra no campo da linguagem e na experiência analítica. Como disse Lacan, “encontra seu lugar em uma lógica”, que á lógica do significante.
 
 

Um comentário:

  1. Tenho feito uma leitura sobre a medicina genética e verifiquei que para a medicina molecular, o gene tem uma função determinante. É feito uma comparação entre sua estrutura e a de um código de barra permitindo então ser lido, traduzido e transformado em características físicas.
    Achei interessante a retomada sobre a linguistica feita em seu blog e me levou a pensar na intervenção da linguagem sob o corpo humano. Como vc menciona, para Lacan a lógica do significante não leva em conta os efeitos de linguagem, ou seja, não é para ser interpretado. Não temos aí, então, uma porta de entrada para discutir os limites das previsibilidades da medicina molecular?

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