Mas antes de passarmos à política, voltemos ao texto e, mais
especificamente, ao bridge analítico.
"Não é possível raciocinar com o que o analisado leva a pessoa do
analista a suportar de suas fantasias como com o que um jogador ideal avalia
das intenções de seu adversário. Sem dúvida, há também uma estratégia ali, mas
não nos enganemos com a metáfora do espelho, por mais que ela convenha à
superfície una que o analista apresenta ao paciente. Cara fechada e boca cosida
não têm aqui a mesma finalidade que no bridge. Com isso, antes, o analista
convoca a ajuda do que nesse jogo é chamado de morto, mas para fazer surgir o
quarto jogador que do analisado será parceiro, e cuja mão, através de seus
lances, o analista se esforçará por faze-lo adivinhar: é esse o vínculo,
digamos, de abnegação, imposto ao analista pelo cacife da partida da analise.
Poderíamos prosseguir nessa metáfora, daí deduzindo seu jogo conforme
ele se coloque "à direita" ou "à esquerda" do paciente, ou
seja, na posição de jogar antes ou depois do quarto jogador, isto e, de jogar
antes ou depois deste com o morto.
Mas o que há de certo é que os sentimentos do analista só têm um lugar
possível nesse jogo: o do morto; e que, ao ressuscita-lo, o jogo prossegue sem
que se saiba quem o conduz.”
Eis por que o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua
tática.
A partida que constitui uma análise está estabelecida sobre uma regra e a
direção consiste em fazer aplicar, pelo sujeito, esta regra analítica que é,
basicamente, uma regra de não-omissão. Quando Lacan menciona que o analista, ao
formular a regra ao analisante traduz a doutrina, ou seja, a ideia que ele
formou a propósito do procedimento e do final da empreitada a partir do ponto
em que ele mesmo atingiu no seu percurso, ele deixa claro que o jogo do qual se
trata não é um jogo comum, onde a regra transcende os parceiros. O mais
importante demonstrado por Lacan foi que o jogo analítico não se joga a dois, por
isso ele escolhe o Bridge e não o Xadrez para metaforizar a análise. A partir
do momento em que a estrutura da linguagem está incluída na prática analítica são exigidos quatro termos para a construção do ordenamento subjetivo.
Em função disso Lacan vai precisar o lugar do analista no dispositivo da
cura segundo o bridge analítico em dois momentos de seu ensino. O primeiro
neste texto que estamos trabalhando: “A direção do tratamento...”, e uma
segunda vez no ‘Seminário VIII, A transferência”.
Para aqueles que, como eu mesmo, ignoram a dinâmica do Bridge, uma
lembrança das regras básicas é necessário. O Bridge se joga entre quatro
pessoas, duas contra duas. Os parceiros se colocam um frente ao outro. Todas as
cartas do baralho são distribuídas, ou seja, treze cartas para cada jogador.
Tudo começa pelos anúncios, sendo que o último a falar deve efetuar o contrato
que consiste em estabelecer as metas e a quantidade de “vazas” ou “mãos”. Após
o ataque efetuado à sua esquerda, seu parceiro mostra as cartas para que todos
possam vê-las. O parceiro daquele que dita o contrato é chamado de morto. O
contratante passa, então, a jogar com suas cartas e com as do morto, seguindo o
sentido dos ponteiros do relógio.
O Morto
Jogador 1
Jogador 2
O contratante
No texto “A Direção do tratamento...” Lacan não desenvolve esta abordagem
do jogo no sentido da teoria dos jogos, onde cada jogada deve ser a melhor
possível, após citar o “jogador ideal” mas indica, isso sim, uma reserva quanto
ao modelo proposto. Mas, mesmo estando longe da teorização dos nós, este modelo
tem a sua utilidade no que diz respeito à posição do analista na direção do
tratamento.
Por tudo o que estamos desenvolvendo até aqui, fica claro que a posição
do analista é a do contratante, aquele que dirige o jogo e quem dita as
regras. Um segundo ponto se apresenta e
poderá causar surpresa: o analista joga para perder, do tipo: “quem perde
ganha” já que “com isso, antes, o analista convoca a ajuda do que nesse jogo
é chamado de morto, mas para fazer surgir o quarto jogador que do analisado
será parceiro, e cuja mão, através de seus lances, o analista se esforçará por
faze-lo adivinhar: é esse o vínculo, digamos, de abnegação, imposto analista
pelo cacife da partida da analise.”
Em outras palavras, ele vai tentar fazer com que o analisante conheça a
“mão” daquele que, no esquema acima, é proposto como jogador 2 ou jogador 1,
conforme ele se coloque à direita ou a esquerda. Estas duas posições, como
teremos oportunidade de verificar mais à frente, designam possibilidades
clínicas em função do caso clínico, apontando para uma clínica diferencial das
neuroses.
Neste ponto é fundamental relembrarmos o que está escrito no texto: “o
que há de certo é que os sentimentos do analista só têm um lugar possível nesse
jogo: o do morto; e que, ao ressuscita-lo, o jogo prossegue sem que se saiba
quem o conduz.” Com isso vemos Lacan insistir, uma vez mais, sobre a função da
direção do tratamento na ordem simbólica em oposição ao deverá ser apagado dos
sentimentos do analista no registro imaginário.
Para continuarmos nossa explicação sobre o Bridge analítico, será
importante fazermos uma articulação do esquema do jogo com um outro esquema: o
esquema L. No esquema L, um dos primeiros que Lacan desenvolveu, ele nos diz do
Estádio do Espelho e da constituição do sujeito e é onde encontramos o sujeito
estirado em seus quatro cantos: “a saber, S, sua inefável e estúpida
existência; a, seus objetos; a’ seu eu, a saber o que se reflete de sua forma
em seus objetos; e A o lugar de onde pode se colocar-lhe a questão de sua
existência.”[1].
Pois este esquema pode ser estirado sobre o modelo do jogo do Bridge para
esclarecer o que Lacan escreveu no texto: “Não é possível raciocinar com o
que o analisado leva a pessoa do analista a suportar de suas fantasias como com
o que um jogador ideal avalia das intenções de seu adversário. Sem dúvida, há
também uma estratégia ali, mas não nos enganemos com a metáfora do espelho, por
mais que ela convenha à superfície una que o analista apresenta ao paciente”.
Assim ficam os esquemas:
O morto a
Sujeito O outro
S a’
Analista A
Neste esquema, temos o a’, o Eu, frente ao sujeito, mas suas cartas
permanecem escondidas para este. Lembremos que a função do Eu é
fundamentalmente a de desconhecimento. Por outro lado, temos acesso ao “a” do
Outro, o analista, que é, da mesma forma, sua própria imagem especular, pois o
morto está visível para ele. Esta é uma forma de se demonstrar o desdobramento
que sofre a pessoa do analista na transferência.
Assinalamos a pouco os diferentes manejos da direção do tratamento
conforme o sujeito (analisante) se coloque à esquerda ou à direita do analista
neste esquema proposto por Lacan. Dois casos (“Dora” e “A Jovem Homossexual”)
examinados por Lacan no Seminário IV – A relação de Objeto – nos servirão de
parâmetros para esclarecer sobre estes lugares e o estilo necessário ao
analista, segundo o sujeito se oferece na cena transferencial desconhecendo sua
função, como no caso Dora esbofeteando o Sr. K. ou provocando um encontro, como
acontece com a Jovem Homossexual, que joga com seu ser na cena onde se
apresentam seu Pai e a Dama, objeto de seu amor.
Sr. K A Dama
Sra. K Dora Jovem Homossexual O pai (Freud)
O pai (Freud)
Nestas duas situações clínicas Lacan nos chama a atenção para o fato de
que, no primeiro caso, Dora se sentiu enganada por Freud, enquanto que no
segundo, Freud se sentiu enganado pela Jovem Homossexual. Ora, enganar ou ser enganado traduz a posição
do analista, em sua dimensão simbólica (A), conforme ele a ocupa, à direita ou
à esquerda do analisante na metáfora do Bridge. Em outras palavras, conforme
ele joga antes ou depois do quarto jogador, o parceiro do analisante, ou seja,
se ele joga antes ou depois do morto. (Se ele joga depois do analisante,
implica que este jogará com as cartas do morto antes dele). Para enganar é
preciso jogar com o morto antes do analisante, por isso Freud engana Dora,
jogando com o morto antes dela e, ao contrário, Freud é enganado pela Jovem
Homossexual na medida em que ele se imagina jogando depois dela e por esquecer
que o endereçamento da analisante visa, precisamente, sua imagem, aquilo que
ela imaginava ser a vontade do psicanalista: que ela se casasse e tivesse
filhos. Este lugar é aquele que no esquema L aponta para o lugar do Eu (a) do
psicanalista. O lugar do desdobramento de sua imagem na transferência, como já
vimos, e que vai desenhar a realidade sexual do inconsciente do analisante.
Este lugar é aquele que não deve ser reanimado, sob pena do jogo se interromper,
como aconteceu neste caso, ou de prosseguir “sem que se saiba quem o conduz”.
[1] Lacan, J., “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose”, in Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998, pág. 555.
Olá, boa noite! Os esquemas não estão aparecendo. Porém a explicação ajudou muito referencia de Lacan a partida de bridge no seminário 8 (cap XIII)
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