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terça-feira, 30 de julho de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura VII

Retomando o nosso modelo topológico pode-se dizer que se o ato falta o analista vai ocupar, não este ponto fora da linha (a), mas um ponto na linha (i(a)), impedindo o deslizamento metonímico ao não permitir o ultrapassamento no ponto do infinito, ao não permitir uma passagem da face direita para a face avessa. Em outras palavras, teremos então um duplo corte e não mais uma dupla volta. Isto transforma as propriedades do objeto, criando uma banda circular e não mais uma banda de Moebius e um disco. Talvez então, agora, possa afirmar que é exatamente o ato, enquanto fio cortante da verdade, que, considerando “a necessidade lógica do momento onde o sujeito como X se constitui da “Urverdrängung, da queda necessária do significante primeiro” restaura o significante enquanto puro não sentido e portador da infinitização do valor do sujeito. Temos aí então a verdade não enquanto horror mais enquanto uma variável quântica: A verdade é não toda! Desta forma vamos ter não a instalação de um único sentido como se tenta, quando se ensina um saber a alguém, nem muito menos a abertura a todos os sentidos. O ato analítico simplesmente abole todos os sentidos. Desta forma, não se deixa outra saída ao analisante senão que aí, neste ponto do infinito, neste ponto onde um puro não-sentido foi produzido faça uma passagem e construa um saber no campo que se abre em conseqüência da incidência do fio cortante da verdade, pelo ato analítico.
Podemos concluir dizendo que este saber que se constrói, tem como centro um “não-saber” que, sendo o núcleo do entusiasmo, não surge por uma relação a si-mesmo, mas como pertencendo à estrutura de um modo essencial, até o ponto de constituir a possibilidade do “Único saber oportuno”.
Uma palavra sobre este recorte que o ato da interpretação promove. Podemos dizer que o analista, ao construir o saber e apontar a verdade deste sujeito, ele o faz porque já procedeu ao estabelecimento do texto. Isto nos permite compreender coisas diferentes. Por exemplo, porque Lacan evoca, nos Escritos, o que ele chama a carta forçada da clínica, quer dizer, a apresentação de casos clínicos, carta forçada, expressão forte e pejorativa. Carta forçada quer dizer que não deixamos ao outro a possibilidade de julgar. Eu creio que é porque quando se apresenta um caso clínico não se pode apresentar o volume das notas que se tem. (Exemplo do Homem dos Ratos de Freud). Apresenta-se o texto extraído, os pedaços do texto que o analista considerou determinantes. E, evidentemente, ele pode, forçosamente, ter deixado passar fatos capitais, ter exagerado alguns que outros julgariam secundárias, etc... Carta forçada. Conclui-se sobre os dados que ninguém pode verificar. Quando Lacan evoca “o justo estilo do resumo", isso visa o mesmo ponto, a dificuldade que existe de falar da clínica sem recobrir o caso por opiniões que o analista tem sobre o caso.
Trata-se, portanto, do que Lacan nos diz, na primeira parte deste texto que está sendo objeto de nosso estudo: o analista paga com  seu “julgamento mais íntimo”. “O que o justifica é toda sua experiência precedente, o que ele acumulou de saber. Certamente, mas é, mesmo assim, do ‘julgamento o mais íntimo’ (...), visando uma pulsão, buscando uma pulsão recalcada, sabendo o que ele tem a procurar”, pois ele escolhe, como Freud escolheu, suas intervenções no caso do Homem dos Ratos, por exemplo.






terça-feira, 23 de julho de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura VI

Vamos retomar o tema da interpretação utilizando a topologia. Escolho, para caminharmos em nosso tema, este objeto estranho e de tão difícil apreensão que é um Cross-Cap, “asfera” como a denomina Lacan. Produto da imersão de uma superfície de duas dimensões no espaço de três dimensões, o Cross-Cap é um objeto abstrato engendrado teoricamente e sem impurezas. No entanto, se admitirmos uma linha de sutura onde existem, abstratamente, duas componentes conexas que não se cruzam podemos obter uma imagem concreta do Cross-Cap.
O Cross-Cap com o qual Lacan trabalhou, e que nos interessa aqui, é aquele que podemos visualizar, mas ao qual atribuímos as propriedades daquele que não podemos ver. Dentre as muitas propriedades que este objeto apresenta escolhi algumas que mais convém ao meu propósito. Resumi-la-ei assim: no processo de imersão o ponto do infinito vem instalar-se exatamente ali onde as duas componentes conexas constituem esta linha de falsa auto-intersecção. Esta redução do horizonte a um ponto se precisa pelo fato de que esse ponto seja tal que toda linha traçada para aí chegar não o ultrapasse senão passando da face direita do plano a sua face avessa, após sofrer uma torção.
Continuando meu pensamento posso dizer, com Lacan, que essa linha traçada é a “linha sem pontos” do corte que representa o dito que faz sujeito e que não pode se produzir que de uma superfície já marcada por um “ponto fora da linha” ponto este que só se especifica por uma dupla volta instalada sobre uma esfera.
Suponhamos agora, e aqui está a minha contribuição, que esta linha enquanto percorrendo a face direita da “asfera” seja a mostração do trajeto do sujeito na medida em que se faz representar na cadeia significante que sustenta o saber do seu sintoma. Suponhamos ainda que esta cadeia deslize sem maiores problemas até um ponto em que uma estagnação acontece. Ora, é em função desta estagnação que vamos ver surgir aquilo que chamamos a pouco de “mal-a-mais” e que vai levar um sujeito a formular uma demanda de análise e uma transferência vai acontecer. Agora, se esta estagnação ocorre durante o tratamento é porque a transferência está operando enquanto resistência. Freud já nos esclareceu que estes pontos de resistência, pontos de silêncio que acontecem quando a associação livre é interrompida, são a conseqüência do analista estar ocupando um lugar destacado no pensamento do analisante. Michel Silvestre nos lembra que “estes momentos de estagnação longe de serem tempos mortos, perdidos para o sujeito, são ao contrário intervalos onde desponta um material específico, aquele da relação ao objeto, quer dizer, aquele da fantasia”.
Momento crucial onde o ato não deve faltar, pois somente um ato vai fazer restaurar a função do objeto “a” enquanto semblante, como vazio, assim como foi um ato que colocou o sujeito em análise. E não deve faltar sob pena do analista, então, se apresentar como presença maciça, fixa, entravando a espontaneidade da fala. Lembremos o que já dissemos, citando o texto “A Direção do Tratamento...”: “não há outra resistência à analise senão a do próprio analista.” Importante, portanto, assinalar que o operador que impede que presença maciça venha emperrar o percurso do sujeito é o desejo do analista que faz barra ao gozo que aí se apresenta, podendo relançar o vetor na direção da construção da fantasia.

terça-feira, 16 de julho de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura – V

Vamos localizar o analista na transferência e o lugar que ele ocupa para fazer acontecer uma interpretação que transforme a palavra do analisante em escritura. Para tanto vamos partir do que tratamos até aqui, formulando nossa questão a partir do saber e da verdade na transferência ou, em outras palavras, propor uma formalização da interpretação a partir da topologia.
A interpretação visa construir no lugar da verdade um saber que “possa operar enquanto verdade.”
Já dissemos, de várias maneiras, porque um sujeito procura uma análise e vamos, aqui, explicita-lo de uma outra forma: um sujeito procura analise quando se torna insuportável para ele sua divisão entre saber e verdade. Isto se dá no ponto onde o deslizamento metonímico da cadeia significante se interrompe: “As coisas até aqui caminharam, nos diz alguém, mais não sei porque pararam de andar e até pioraram”. Lacan no seu seminário XI nos diz que “os pacientes, não se satisfazem, como se diz, do que eles são. E portanto, nós sabemos que tudo isso que eles são, tudo isso que eles vivem, seus sintomas mesmo, surgem da satisfação, (...) eles satisfazem a qualquer coisa (...) e estando neste estado de tão pouco contentamento, eles se contentam”. Só que “por este tipo de satisfação eles se dão muito mal. Até certo ponto é este mal-a-mais que é a única justificativa de uma intervenção” para que no nível da pulsão este estado de satisfação possa ser retificado.
Assim, sendo, é a partir deste “mal-a-mais” que, surgindo neste ponto em que o saber constituído do sintoma deixa de obturar a verdade da qual o sujeito não quer nada saber, que vamos ver nascer uma demanda de análise e com ela a transferência.
Uma palavra sobre essa verdade da qual o sujeito não quer nada saber. Segundo J. A . Miller em seu seminário de 09.05.90, os escritos de Lacan dividem seu ensino em duas partes e terminam por uma exaltação da verdade, com o texto “A Ciência e a Verdade”. Na primeira fase deste ensino a verdade é colocada em oposição ao saber pelo seu caráter nascente na palavra. Ela corresponde à verdade horrível da castração. Já na 2ª fase, a verdade não é mais formulada no singular e torna-se uma variável. Em 1973, na “Nota italiana”, o horror da verdade é deslocado para o saber: Lacan vai opor ao horror de saber, "o desejo de saber do psicanalista”.
A transferência, como sabemos, se instala atribuindo a um Outro o saber que falta com o objetivo de se poder alcançar uma resposta que seja o saber último sobre esta verdade.  Este atribuir a um Outro o que lhe falta é a base da relação amorosa por excelência. Ama-se no Outro o “agalma”, objeto precioso, essência de um ser-em-falta que se ilude no amor ao saber.
Em se tratando da transferência, no entanto, vemos uma dessimetria colocada a priori já que nesta relação há pelo menos um que quer a mudança, há pelo menos um que calcula e, ao recusar o lugar de amante que lhe é oferecido responde, por seu não-saber, com um desejo de saber.
Isto nos aponta uma mudança, pois, se no início do movimento psicanalítico o inconsciente era pensado como um “não sabido” que iria se tornando cada vez mais sabido, a introdução do objeto pequeno “a” por Lacan, nos diz de uma exteriorização do não-sabido que escapa à cadeia significante e se coloca radicalmente excluído dela.
Fazer operar este objeto “a” enquanto semblante no discurso do analista é tarefa a ser sustentada por alguém: um analista. “A psicanálise é o que se espera de um analista” nos diz Lacan no seu seminário XVII, e continua “e o que se espera de um analista é que faça funcionar seu saber em termos de verdade. É bem por isso que ele se confina num meio-dizer”.
Em outras palavras podemos dizer que é preciso que exista um analista e este analista só existe na medida em que, colocando-se como ponto fora da linha, faz operar o vazio onde uma verdade poderá ser transmitida e não um saber ser ensinado.
Esta operação de transmissão só se faz em ato (a partir deste ponto vou me referir à interpretação como um ato analítico), ato analítico que, preparado pelo amor de transferência – é o amor que possibilita, enquanto signo, o giro do discurso da histeria para o discurso do analista – se conclui pelo vazio do sujeito. O ato acontece ali onde um sujeito deverá advir. Esta operação que tem como pivô o Sujeito Suposto Saber e, por objetivo, a destituição deste sujeito suposto, só se sustenta pelo desejo do analista.
Esta é uma operação lógica. O ato enquanto puro não-sentido institui um dizer e cria um fato, onde o axioma da existência – que Lacan traduziu por “Há o UM” (Y a d’l’ UN) – aponta todo o tempo para a infinitização do desejo, fazendo valer a castração como saída do Édipo.
Lacan, desde o início de sua atividade de transmissão da psicanálise, coloca a topologia, a lógica, e a matemática – enquanto campos da ciência que não comportam nenhuma afirmação de sentido – para auxilia-lo em suas elaborações teóricas.
Na próxima Postagem vamos trabalhar a interpretação a partir da topologia do Cross-Cap.

terça-feira, 9 de julho de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura – IV

Vamos partir, hoje, da subdivisão quatro, onde Lacan se poupa, como ele mesmo diz, de fornecer as regras da interpretação. Não que elas não possam ser estabelecidas, pois ele mesmo as esboça neste texto, quando define, no final da subdivisão oito, que “segundo um processo que vai da retificação das relações do sujeito com o real (aqui no sentido de realidade), ao desenvolvimento da transferência, e depois, à interpretação, que se situa no horizonte em que a Freud se revelaram as descobertas fundamentais que até hoje experimentamos, no tocante à dinâmica e à estrutura da neurose ...”
Nesta subdivisão quatro, Lacan retoma uma afirmação que trabalha deste o início de sua transmissão – considero aqui este início 1953, com o texto “Função e Campo....” – “não há outra resistência à analise senão a do próprio analista”.
Ele vai explicitar pela dimensão dual à qual se reduziu a prática analítica na época dizendo das paixões do analista que impediam - e impedem, pois penso, como temos afirmado ao longo de nosso trabalho, que este texto tem sua atualidade – que a interpretação produzissem efeitos. Ele as numera na subdivisão cinco para dizer que o maior problema da interpretação é articula-la à transferência, pois existe entre elas uma antinomia. O que nos diz Lacan das paixões do analista que vem se colocar no caminho da interpretação: trata-se “de seu receio, que não é do erro, mas da ignorância; de sua predileção, que não é satisfazer, porém não decepcionar; de sua necessidade, que não é de governar, mas de ficar por cima.”
Esta resistência que se apresenta na relação da interpretação e transferência, Freud a havia captado e, certamente, nos ensinou como trata-la, no entanto podemos deslocar esta dificuldade para a antinomia que existe entre transferência e interpretação. Para tratarmos deste assunto é fundamental sabermos qual é o lugar da interpretação em relação à transferência. Mais uma vez ele se coloca em combate com as fórmulas apresentadas pela psicologia do ego que propõe que a interpretação seja adiada até que a transferência esteja instalada para depois subordina-la a redução da transferência. Isto só nos coloca a questão das aporias daí decorrentes: têm-se que esperar que a transferência se instale complemente para podermos exercitar a interpretação, por outro lado não se interpreta porque a transferência já se instalou e é preciso reduzi-la para poder interpretar. A saída que a “Ego-Psychology” propunha era um trabalho intenso de perlaboração da transferência onde um excessivo forçamento imaginário apontava para re-conectar o sujeito com a realidade circundante. Era assim que o analista se via protegido na transferência e ocupava um lugar de onde poderia acossar os pacientes com seus acting-outs e proibindo-lhes uma série de coisas e transformando a vida deles em um verdadeiro pesadelo, onde o analista se fazia presente em cada esquina. O que Lacan propõe é um trabalho onde o simbólico se sobreponha ao imaginário. Mais uma vez vale relembrar que nesta época Lacan se empenha na supremacia do simbólico sobre o imaginário e o real.

terça-feira, 2 de julho de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura – III

Retomo Saussure para assinalar que foi ele quem primeiro pode isolar este significante paradóxico que é o significante que não significa nada. A Associação Livre só se sustenta pelo fato de que podemos confiar que "o significante não significa nada", ou seja, paradoxalmente confia-se que ele pode significar qualquer coisa. Ao confiarmos nisso podemos encontrar as significações mais essenciais do que se pode chamar a vida humana.
Um pequeno parêntese para que possamos perceber a possibilidade de operacionalizar estes passos que demos até aqui: Foi a partir mesmo desta possibilidade de fazer operar na associação livre este significante que não significa nada que Lacan pode construir seu matema da transferência e justificar a criação deste operador maravilhoso que se chama Sujeito Suposto Saber, este que não sabe nada, mas que basta entrar em operação na experiência analítica para que, quanto menos significar, mais significa algo. Ou seja, o significante cria, por suas permutações, o significado.
 
Esta seqüência, no entanto, só pode acontecer porque o todo não se faz e uma perda está posta no princípio mesmo da lógica do significante. É o que Freud denominou de recalque originário. O famoso umbigo do sonho, descrito por Freud, exemplifica este ponto que está sempre aquém de toda interpretação fazendo com que um significante a mais seja sempre chamado, indefinidamente, produzindo ramificações sempre muito complexas. Em outras palavras chegamos no ponto de poder dizer que isso acontece porque um significante nunca pode se colocar como idêntico a outro significante, pois o princípio diacrítico se coloca como um a priori: "um significante só é opondo-se a um ou dois significantes diferentes".
 
Citar Lacan, novamente, mas desta vez a partir de um debate que ele sustentou com estudantes de filosofia, vai nos ajudar neste nosso caminho: "O mínimo que vocês podem me atribuir no que concerne minha teoria da linguagem, é, se isso interessa a vocês, que ela é materialista: o significante é a matéria que se transcende em linguagem".
 
Retomo a lógica do significante. O passo seguinte à lógica do significante é a "questão do sujeito". Esses dois passos: a "lógica do significante" e a "questão do sujeito" já foram explicitamente citados a partir do texto que trabalhamos: “Percebe-se que o que aqui se furta é a natureza de uma transmutação no sujeito, e de um modo ainda mais doloroso para o pensamento, por lhe escapar no exato momento em que passa à ação. Nenhum indicador basta, com efeito, para mostrar onde age a interpretação, quando não se admite radicalmente um conceito da função do significante que capte onde o sujeito se subordina a ele, a ponto de por ele ser subornado.”
 
Relembro que o significante é um elemento que não tem nenhuma consistência própria e que só existe por sua diferença com outros elementos do mesmo tipo. É, pois um elemento não substancial, que não pode ser descrito por suas propriedades intrínsecas. É um elemento diferencial. O próprio Saussure nos disse, de várias maneiras, que a língua é feita somente de diferenças, por isso é que o falar é uma atividade que não é substancial, mas sim um lançar-se em um campo de diferenças. E Lacan soube muito bem escutar e fazer disso um instrumento da interpretação psicanalítica: utilizar o cristal da linguagem com os mal entendidos que ela provoca para fazer surgir este elemento diferencial que vai denotar a presença de um sujeito, ao mesmo tempo em que nos diz que não é possível desenhar um todo no campo do significante. Esta oposição entre a estrutura própria do significante e o todo nos ajuda a pensar que a possibilidade de se fechar o campo do significante em um conjunto só é possível às custas de uma perda, da instalação de uma exceção, da presença de um significante que não esteja inserido no conjunto. Isso é essencial no campo do significante Saussuriano: existe pelo menos um significante que não pertence ao conjunto, traduzindo-se assim um famoso sintagma lacaniano: nada é tudo!
 
Tudo o que venho falando até aqui acaba por desembocar na própria estrutura da cadeia significante que vai implicar sempre um significante a mais, "um outro significante que escapa", que se traduz muito bem na metáfora que Lacan utiliza: o Tonel das Danaïdes. Em várias ocasiões esta metáfora vai ser utilizada para nos dizer do que é essencial na cadeia significante: o sentido desliza sob a barra, ali onde um significado final não pode ser alcançado. Este processo é, também, conhecido como "Fuga do sentido". Esta forma de colocar as coisas modifica um pouco a questão relativa ao inefável, àquilo que não pode ser dito. Na verdade não existe nada que não pode ser dito, no entanto, qualquer coisa que se diga, vai sempre dizer que existe um outro significante que não foi tocado. Não se trata, e aí está uma diferença que se coloca em relação a outras teorizações da psicanálise, não se trata de nenhum significante em particular que estaria impedindo ou atraindo para si todos os demais. O que podemos dizer é que qualquer que seja o conjunto de significantes que delimitemos, sempre vai faltar um, sempre vai ficar um de fora. É, no entanto, muito importante assinalar que este que fica de fora é aquele que, no momento em que uma interpretação acontece, vai estabelecer, no movimento de só depois, um significado. Por isso, como já fizemos alusão, este significante que permite este ponto de amarração simbólica e a produção de significação é também conhecido como Sujeito Suposto ao Saber.

S _________________  Sq
      S(S1, S2, S3... Sn)
 
Introduzimos com esta falta e com a possibilidade de se constituir o SsS o que é apreendido como sendo da ordem do Um - o Um da fenda, do traço, da ruptura -, a brecha por onde a neurose se liga a um real que não é determinado. Lacan explicita esse “Um” do Unbewusste como o Unbegriff, não o não-conceito, mas o conceito de falta. Com essa digressão estamos anunciando, também, o conceito daquilo que claudica, do “Um” que não vai com os outros e que coloca em evidência a questão da causa.
 
Com esse “Um” que falta e a introdução do conceito de Inconsciente como sendo algo que escapa (lembre-se que o inconsciente apresenta a mesma estrutura que sustenta a lógica do significante, ou seja, a estrutura de uma linguagem onde existe a fuga do sentido), esse “Um” adquire um novo valor se o escrevermos conforme a proposta de Lacan em sua subversão do signo sausurriano, dando-nos a estrutura elementar da cadeia significante: S1 - S2. O que isto quer dizer? Que existe sempre um deles que não fica ao alcance de nossas mãos, o que não nos impede de escreve-los de uma mesma maneira, apenas fazendo a diferença através dos índices 1 e 2. Esta forma de escrever a cadeia significante - uma forma de abreviar o que Lacan chamava de discurso, foi lentamente elaborada, por Lacan, durante seu ensino.
 
O que o discurso assinala, antes de tudo, é que a diferença entre um e dois deixa um espaço vazio onde vai habitar um sujeito que será, ao mesmo tempo, efeito desta mesma articulação. É um sujeito que é admitido no universo do discurso como um elemento que se introduz por não ser idêntico a si mesmo. Este é o sujeito que se define por um significante que o representa para outro significante. Lacan o escreve com uma barra para nos dizer que este sujeito não é o mesmo que o ego que, desde Fichte, é definido como igual (em francês a homofonia egos=égaux, várias vezes aludida por Lacan). Miller assim se refere a este sujeito: "O sujeito do qual se trata na lógica do significante é um sujeito diferente de si mesmo e esta é a leitura que lhes proponho dessa barra: um sujeito que cumpre essa função de um elemento não idêntico a si mesmo". Esta proposta de Lacan, estabelecendo a ex-sistência de um sujeito não idêntico a si mesmo é o que vai permitir criarmos a ilusão de um saber total. Saber que só poderá ser estabelecido a partir do "sacrifício do sujeito que habita tal ilusão".
 
Dentre as muitas implicações clínicas deste fato está a escrita que Lacan propõe para este um a mais no universo do discurso: S(A/), para nos dizer que esse um a mais do universo do discurso faz com que este universo não exista, apenas ex-siste o “um” da falta. Por isso é necessário que uma análise aconteça em presença, por isso é necessário que "alguém simule o aporte do significante a mais, desde um lugar distinto da associação livre, onde se faz a concatenação significante. É necessário que desde outro lugar venha ao menos um significante".  Por isso Lacan vai nos dizer, ao final da subdivisão cinco que a presença necessária vai mais além da física: “Primum vivere, sem dúvida: há que evitar o rompimento. Que se classifique com o nome de técnica a civilidade pueril e honesta que ensina com tal finalidade, ainda passa. Mas, quando se confunde essa necessidade física da presença do paciente na hora marcada com a relação analítica, comete-se um engano e se desencaminha o novato por muito tempo.”
 
Lacan, em sua Conferência à Universidade de Milão, em 12 de maio 1972, sobre o Discurso Analítico nós diz algumas coisas que penso ser muito importante transcrever aqui com o intuito de concluir nosso texto, hoje:
“Basta que analisemos um sonho para ver que só se trata de significante. E do significante em toda esta ambigüidade que denominei a pouco como resvalo (dérapage). 
Ou seja, que não existe um significante no qual a significação seria assegurada. Ela pode sempre ser outra coisa, e mesmo passar seu tempo a deslizar muito longe do que queremos na significação. Tão sensível na Interpretação dos Sonhos, isso não é menos em A Psicopatologia da Vida Cotidiana, e mais ainda em O Chiste. Isso me parece essencial, é essencial.”
E. finalmente:
“O significante é o que introduziu no mundo o Um, e basta que haja o Um para que isso ... isso comece, isso comanda o S2, quer dizer, o significante que vem depois, depois que o Um funciona: ele obedece. O que há de maravilhoso é que, para obedecer, é preciso que ele saiba alguma coisa.” 
Para a próxima Postagem continuaremos trabalhando a interpretação sabendo que Lacan introduziu o termo “Bem dizer” em “Televisão”, em 1973. É um termo que atravessa todo aquele texto. O bem dizer é uma ética, uma nova formulação da ética da psicanálise. “Não há ética senão a do Bem dizer”.  Também sabemos que a ética da psicanálise é relativa à prática da palavra no campo da linguagem e na experiência analítica. Como disse Lacan, “encontra seu lugar em uma lógica”, que á lógica do significante.