Vamos localizar o analista na transferência e o lugar que ele ocupa para fazer acontecer uma interpretação que transforme a palavra do analisante em escritura. Para tanto vamos partir do que tratamos até aqui, formulando nossa questão a partir do saber e da verdade na transferência ou, em outras palavras, propor uma formalização da interpretação a partir da topologia.
A interpretação visa construir no lugar da verdade um saber que “possa operar enquanto verdade.”
Já dissemos, de várias maneiras, porque um sujeito procura uma análise e vamos, aqui, explicita-lo de uma outra forma: um sujeito procura analise quando se torna insuportável para ele sua divisão entre saber e verdade. Isto se dá no ponto onde o deslizamento metonímico da cadeia significante se interrompe: “As coisas até aqui caminharam, nos diz alguém, mais não sei porque pararam de andar e até pioraram”. Lacan no seu seminário XI nos diz que “os pacientes, não se satisfazem, como se diz, do que eles são. E portanto, nós sabemos que tudo isso que eles são, tudo isso que eles vivem, seus sintomas mesmo, surgem da satisfação, (...) eles satisfazem a qualquer coisa (...) e estando neste estado de tão pouco contentamento, eles se contentam”. Só que “por este tipo de satisfação eles se dão muito mal. Até certo ponto é este mal-a-mais que é a única justificativa de uma intervenção” para que no nível da pulsão este estado de satisfação possa ser retificado.
Assim, sendo, é a partir deste “mal-a-mais” que, surgindo neste ponto em que o saber constituído do sintoma deixa de obturar a verdade da qual o sujeito não quer nada saber, que vamos ver nascer uma demanda de análise e com ela a transferência.
Uma palavra sobre essa verdade da qual o sujeito não quer nada saber. Segundo J. A . Miller em seu seminário de 09.05.90, os escritos de Lacan dividem seu ensino em duas partes e terminam por uma exaltação da verdade, com o texto “A Ciência e a Verdade”. Na primeira fase deste ensino a verdade é colocada em oposição ao saber pelo seu caráter nascente na palavra. Ela corresponde à verdade horrível da castração. Já na 2ª fase, a verdade não é mais formulada no singular e torna-se uma variável. Em 1973, na “Nota italiana”, o horror da verdade é deslocado para o saber: Lacan vai opor ao horror de saber, "o desejo de saber do psicanalista”.
A transferência, como sabemos, se instala atribuindo a um Outro o saber que falta com o objetivo de se poder alcançar uma resposta que seja o saber último sobre esta verdade. Este atribuir a um Outro o que lhe falta é a base da relação amorosa por excelência. Ama-se no Outro o “agalma”, objeto precioso, essência de um ser-em-falta que se ilude no amor ao saber.
Em se tratando da transferência, no entanto, vemos uma dessimetria colocada a priori já que nesta relação há pelo menos um que quer a mudança, há pelo menos um que calcula e, ao recusar o lugar de amante que lhe é oferecido responde, por seu não-saber, com um desejo de saber.
Isto nos aponta uma mudança, pois, se no início do movimento psicanalítico o inconsciente era pensado como um “não sabido” que iria se tornando cada vez mais sabido, a introdução do objeto pequeno “a” por Lacan, nos diz de uma exteriorização do não-sabido que escapa à cadeia significante e se coloca radicalmente excluído dela.
Fazer operar este objeto “a” enquanto semblante no discurso do analista é tarefa a ser sustentada por alguém: um analista. “A psicanálise é o que se espera de um analista” nos diz Lacan no seu seminário XVII, e continua “e o que se espera de um analista é que faça funcionar seu saber em termos de verdade. É bem por isso que ele se confina num meio-dizer”.
Em outras palavras podemos dizer que é preciso que exista um analista e este analista só existe na medida em que, colocando-se como ponto fora da linha, faz operar o vazio onde uma verdade poderá ser transmitida e não um saber ser ensinado.
Esta operação de transmissão só se faz em ato (a partir deste ponto vou me referir à interpretação como um ato analítico), ato analítico que, preparado pelo amor de transferência – é o amor que possibilita, enquanto signo, o giro do discurso da histeria para o discurso do analista – se conclui pelo vazio do sujeito. O ato acontece ali onde um sujeito deverá advir. Esta operação que tem como pivô o Sujeito Suposto Saber e, por objetivo, a destituição deste sujeito suposto, só se sustenta pelo desejo do analista.
Esta é uma operação lógica. O ato enquanto puro não-sentido institui um dizer e cria um fato, onde o axioma da existência – que Lacan traduziu por “Há o UM” (Y a d’l’ UN) – aponta todo o tempo para a infinitização do desejo, fazendo valer a castração como saída do Édipo.
Lacan, desde o início de sua atividade de transmissão da psicanálise, coloca a topologia, a lógica, e a matemática – enquanto campos da ciência que não comportam nenhuma afirmação de sentido – para auxilia-lo em suas elaborações teóricas.
Na próxima Postagem vamos trabalhar a interpretação a partir da topologia do Cross-Cap.
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