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segunda-feira, 21 de abril de 2014

Visitando o Seminário XI: A pulsão, seu circuito e seu objeto (II)

Outra forma de se trabalhar o que descrevemos na Postagem anterior, é assim descrita por Pierre Skriabine[1]: (Na transferência podemos identificar duas faces) “A face indexada por A, referida ao Outro - Outro da verdade e o Outro do amor - é aquela da suposição de saber, mas também aquela do engodo do amor e da identificação ideal.” A transferência se ordena aí entre $ e A/ e coloca em jogo uma suposição de saber que se liga ao significante. O Outro entra como Outro do saber e, o que se desdobra, fica no registro da alienação transferencial. O sujeito não tem outra escolha senão o registro do significante, permanecendo no campo, no plano, como o diz Lacan, da identificação.
A face ‘a’ é aquela da transferência como fechamento do inconsciente, mas que permanece referido também ao Sujeito Suposto Saber, e exige um Outro, um Outro completado do ‘a’ como consistência lógica. Um Outro a quem o sujeito será remetido à causa de seu desejo. A transferência coloca, então, em jogo o Outro do desejo, e supõe um saber que se liga ao objeto.
A separação é aí possível, e é isto que permite o desejo do analista, na medida em que ele leva a demanda à pulsão. O sujeito pode então vir a este lugar de ‘a’, e a relação ao Outro se jogará, neste momento, entre ‘a’ e ‘A’, sob o eixo de uma subjetivação sem sujeito, acéfalo, como diz Lacan. É o eixo, o plano da pulsão, e é porque o sujeito pode vir em ‘a’, se identificar ao objeto e encontrar seu complemento de ser na separação. O que temos, então, é o que Lacan chama de ultrapassagem do plano da identificação.
Quando Freud introduziu a pulsão, fazendo uso dos recursos da linguagem: voz ativa, passiva e reflexiva, ele o fez dando a elas nada mais do que o estatuto de um envelope. “O que é fundamental, ao nível de cada pulsão, nos diz Lacan, é o ir e vir onde ela se estrutura.”[2]
Este circuito, esta “Verkehrung”, demonstrada, p. ex., na “Shaulust” (prazer de ver) vai se apresentar como tendo três tempos, e não apenas dois, como se quis acreditar por muito tempo: No terceiro tempo vai acontecer a “aparição de ‘ein neues Subjekt’ que é preciso entender assim - não que já não houvesse aí um, a saber o sujeito da pulsão, mas é novo ver aparecer um sujeito. Esse sujeito, que é propriamente outro, surge na medida em que a pulsão pode fechar seu curso circular. É somente com sua aparição, ao nível do outro, que pode ser realizado isso que aí é a função da pulsão”[3].
O que temos até aqui: uma pressão (Drang) que parte das bordas que constituem a fonte (Quelle), a zona erógena em busca de um objeto (Objekt). Este circuito se sustenta por uma tensão que é sempre fechada e não pode ser isolada de seu retorno sobre a zona erógena.
Quanto ao alvo (Ziel), Lacan vai esclarecer que se Freud pode dizer que a pulsão é “zielgehemmt”, inibida quanto ao alvo, é porque, na verdade, a pulsão não se define em momento algum pela realização de uma função biológica. Aliás, é neste ponto que ela se separa, definitivamente, de uma possibilidade qualquer de psicologização. Sendo construída a partir de uma experiência do inconsciente, o “Trieb” vai interditar qualquer tentativa de moralização através do recurso ao conceito de instinto. “A pulsão freudiana nada tem a ver com o instinto”[4] e é nisso que ela é parcial.
Vamos diferenciar, com Lacan, o “aim” (alvo) da pulsão, do “goal” (objetivo - a palavra “goal”, diferenciando-se de “aim”, na língua inglesa, vai se prestar a explicitar melhor o trajeto pulsional. Enquanto o ‘aim’ (alvo) vai se definir pelo caminho, pelo trajeto mesmo da pulsão, o “goal” é outra coisa. Lacan utiliza o exemplo do tiro do arqueiro (a metáfora se presta, também para esclarecer a frase de Heráclito, que abre o seminário: “ao arco é dado o nome de vida - Bios, e sua obra, é a morte”),  para dizer que o pássaro que se abate é o “aim”, enquanto o “goal” vai ser: marcar um ponto.
“Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter alcançado isso que, aos olhos de uma totalização biológica, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão este retorno em circuito.”[5]
O exemplo máximo disto que acabamos de dizer pode ser facilmente observado em certos silêncios do analisando, “instância pura da pulsão oral, se fechando sobre sua satisfação”, à maneira como, nos diz Freud, de uma boca que, no auto-erotismo oral, beija a si mesma.
Como do que se trata aqui é da pulsão, devemos ter o cuidado de diferenciá-la de uma pura e simples satisfação auto-erótica. Na pulsão, como já vimos no último seminário, há um objeto em torno do qual ela vai fazer seu circuito. Este objeto, “não é mais do que a presença de um buraco, de um vazio, que pode ser ocupado, nos diz Freud, por não importa qual objeto, e do qual só o conhecemos sob a forma do objeto perdido pequeno ‘a’.”[6] Este objeto não é introduzido pela amamentação primitiva, mas como o resultado, o produto, do fato de que nenhuma amamentação jamais vai satisfazer a pulsão oral.
Falamos de pulsão oral, e as outras pulsões? Como se passa de uma à outra? Lacan vai enfatizar que, contrariamente ao que pensam os autores evulocionistas, não há nenhuma relação de engendramento de uma pulsão à outra. A passagem da pulsão oral para pulsão anal, p. ex., só acontece em função de uma intervenção de algo que não está no campo da pulsão: “é a intervenção, a reviravolta, da demanda do Outro”[7].
Estas pulsões, que não são muitas - não vamos nos esquecer de acrescentar aí, a pulsão escópica - sustentam-se como uma tensão estacionária, uma “Konstante Kraft” que, sob a égide do Princípio do Prazer, explicita que “... é em razão da unidade topológica dos espaços em jogo, que a pulsão toma seu papel no funcionamento do inconsciente”[8].
É desta forma que vamos poder entender que a pulsão, por, se articular  a partir dos termos de tensão, se manifesta ao modo de um sujeito acéfalo. Sua relação ao sujeito do inconsciente, portanto, se resume à topologia: ambos ocupam o mesmo espaço do inconsciente que, nos matemas lacanianos, se faz representar pelo <>: sinal que indica a presença do inconsciente entre a realidade e o sujeito. Por isso, é sempre uma surpresa vermos acontecer “ein neues Subjekt” ao final de um percurso pulsional. Este sujeito, no entanto, só vai acontecer se um Outro, como já dissemos acima, se apresentar.
A presença deste outro nos leva a estarmos atentos para não confundirmos pulsão e perversão. Aliás, Lacan é enfático quando  afirma que a pulsão não é a perversão: Na pulsão o sujeito não está ainda colocado, enquanto que a perversão, ao contrário, se define pela maneira como o sujeito aí se coloca.
A estrutura do voyeurismo se presta a esclarecer estes termos. Por ser uma perversão, o sujeito não está aí “ao nível da pulsão de ver”, mas no final da curva para, aproveitando-se do seu circuito em torno do objeto, fazer aparecer este objeto como possibilidade de gozo (neste caso, o objeto olhar).
Assim, quando o perverso se coloca a olhar, o que ele procura ver é exatamente o objeto, enquanto ausente, mas que pode ser reencontrado com a introdução do Outro (é o que sinaliza a vergonha, p. ex.). Quando Sartre descreve o momento em que um sujeito é surpreendido olhando pelo buraco da fechadura, vai dizer deste ponto em que a presença de um outro vai denunciar, ao sujeito, o fechamento da curva da pulsão que, retornando sobre ele, faz surgir aí, onde até então só havia uma curva acéfala, “ein neues Subjekt”. “A vergonha ou o orgulho me revela, diz Sartre em ‘O ser e o nada’, o olhar do próximo, e a mim mesmo no extremo deste olhar; faz-me viver, não conhecer, a situação de olhado. Porém a vergonha, é vergonha de si, é reconhecimento de que efetivamente sou esse objeto que outro olha e julga.”[9]  
“Se, graças à introdução do outro, a estrutura da pulsão aparece, ela não se completa verdadeiramente senão na sua forma reversa, na sua forma de retorno, que é a verdadeira pulsão ativa.”[10] Lembrem-se que lhes disse a pouco, citando P. Skriabine, que o plano da pulsão é aquele onde o objeto ‘a’, vem completar o Outro (A) com uma consistência lógica, remetendo-o a causa de desejo.
Na pulsão teremos um Outro que apresenta uma consistência lógica, a quem elegemos como causa de desejo (o desejo é desejo do Outro), na perversão, “a verdadeira visada do desejo é o outro, enquanto forçado, para além de sua implicação na cena”. Não é somente a vítima que é interessada no exibicionismo, é a vítima enquanto referida a qualquer outro que a olhe.




[1] Skriabine, P. - “Le defaut dans l’univers”, in Revue de l’Ecole de La Cause Freudienne, Fev.1992. Pag.?
[2] Lacan, J. - “Le Séminaire XI” Op. Cit. Pag. 162
[3] Lacan, J. - Ibidem. Pag. 162
[4] Lacan, J. - “Du ‘Treib...”, Op. Cit. Pag. 851
[5] Lacan, J. - “Le Seminaire XI”, Op. Cit. Pag. 163
[6] Lacan, J. - Ibidem. Pag. 164
[7] Lacan, J. - Ibidem. Pag. 164
[8] Lacan, J. - Ibidem. Pag. 165
[9] Sartre, J.P. - “El ser y la Nada”, Editorial Losada, S.A. Buenos Aires, 1966. Pag. 337. (grifos de Sartre)
[10] Lacan, J. - “Le Séminaire XI”, Op. Cit. Pag. 166

2 comentários:

  1. Muito obrigado, seu texto é esclarecedor para um aspirante a psicanalista como eu. Foi-me útil na compreensão do circuito pulsional de Lacan para escrita da minha Dissertação que trata da sexualidade na Educação Infantil.

    Alexsandro Ferreira Caitano

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    1. Alessandro, fico feliz por estar contribuindo ao seu caminho na psicanálise!

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