Outra forma de se trabalhar o que descrevemos
na Postagem anterior, é assim descrita por Pierre Skriabine[1]:
(Na transferência podemos identificar duas faces) “A face indexada por A,
referida ao Outro - Outro da verdade e o Outro do amor - é aquela da suposição
de saber, mas também aquela do engodo do amor e da identificação ideal.” A
transferência se ordena aí entre $ e A/ e coloca em jogo uma suposição de saber
que se liga ao significante. O Outro entra como Outro do saber e, o que se
desdobra, fica no registro da alienação transferencial. O sujeito não tem outra
escolha senão o registro do significante, permanecendo no campo, no plano, como
o diz Lacan, da identificação.
A face ‘a’ é aquela da transferência como
fechamento do inconsciente, mas que permanece referido também ao Sujeito
Suposto Saber, e exige um Outro, um Outro completado do ‘a’ como consistência
lógica. Um Outro a quem o sujeito será remetido à causa de seu desejo. A
transferência coloca, então, em jogo o Outro do desejo, e supõe um saber que se
liga ao objeto.
A separação é aí possível, e é isto que
permite o desejo do analista, na medida em que ele leva a demanda à pulsão. O
sujeito pode então vir a este lugar de ‘a’, e a relação ao Outro se jogará,
neste momento, entre ‘a’ e ‘A’, sob o eixo de uma subjetivação sem sujeito,
acéfalo, como diz Lacan. É o eixo, o plano da pulsão, e é porque o sujeito pode
vir em ‘a’, se identificar ao objeto e encontrar seu complemento de ser na separação.
O que temos, então, é o que Lacan chama de ultrapassagem do plano da identificação.
Quando Freud introduziu a pulsão, fazendo
uso dos recursos da linguagem: voz ativa, passiva e reflexiva, ele o fez dando
a elas nada mais do que o estatuto de um envelope. “O que é fundamental, ao
nível de cada pulsão, nos diz Lacan, é o ir e vir onde ela se estrutura.”[2]
Este circuito, esta “Verkehrung”,
demonstrada, p. ex., na “Shaulust” (prazer de ver) vai se apresentar como tendo
três tempos, e não apenas dois, como se quis acreditar por muito tempo: No
terceiro tempo vai acontecer a “aparição de ‘ein neues Subjekt’ que é preciso
entender assim - não que já não houvesse aí um, a saber o sujeito da pulsão,
mas é novo ver aparecer um sujeito. Esse sujeito, que é propriamente outro, surge
na medida em que a pulsão pode fechar seu curso circular. É somente com sua
aparição, ao nível do outro, que pode ser realizado isso que aí é a função da
pulsão”[3].
O que temos até aqui: uma pressão
(Drang) que parte das bordas que constituem a fonte (Quelle), a zona
erógena em busca de um objeto (Objekt). Este circuito se sustenta por
uma tensão que é sempre fechada e não pode ser isolada de seu retorno sobre a
zona erógena.
Quanto ao alvo (Ziel), Lacan vai
esclarecer que se Freud pode dizer que a pulsão é “zielgehemmt”, inibida quanto
ao alvo, é porque, na verdade, a pulsão não se define em momento algum pela realização
de uma função biológica. Aliás, é neste ponto que ela se separa,
definitivamente, de uma possibilidade qualquer de psicologização. Sendo
construída a partir de uma experiência do inconsciente, o “Trieb” vai
interditar qualquer tentativa de moralização através do recurso ao conceito de
instinto. “A pulsão freudiana nada tem a ver com o instinto”[4] e
é nisso que ela é parcial.
Vamos diferenciar, com Lacan, o “aim”
(alvo) da pulsão, do “goal” (objetivo - a palavra “goal”, diferenciando-se de
“aim”, na língua inglesa, vai se prestar a explicitar melhor o trajeto
pulsional. Enquanto o ‘aim’ (alvo) vai se definir pelo caminho, pelo trajeto
mesmo da pulsão, o “goal” é outra coisa. Lacan utiliza o exemplo do tiro do
arqueiro (a metáfora se presta, também para esclarecer a frase de Heráclito,
que abre o seminário: “ao arco é dado o nome de vida - Bios, e sua obra, é a
morte”), para dizer que o pássaro que se
abate é o “aim”, enquanto o “goal” vai ser: marcar um ponto.
“Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter
alcançado isso que, aos olhos de uma totalização biológica, seria a satisfação
ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é
outra coisa senão este retorno em circuito.”[5]
O exemplo máximo disto que acabamos de
dizer pode ser facilmente observado em certos silêncios do analisando,
“instância pura da pulsão oral, se fechando sobre sua satisfação”, à maneira
como, nos diz Freud, de uma boca que, no auto-erotismo oral, beija a si mesma.
Como do que se trata aqui é da pulsão,
devemos ter o cuidado de diferenciá-la de uma pura e simples satisfação
auto-erótica. Na pulsão, como já vimos no último seminário, há um objeto em
torno do qual ela vai fazer seu circuito. Este objeto, “não é mais do que a
presença de um buraco, de um vazio, que pode ser ocupado, nos diz Freud, por
não importa qual objeto, e do qual só o conhecemos sob a forma do objeto
perdido pequeno ‘a’.”[6]
Este objeto não é introduzido pela amamentação primitiva, mas como o resultado,
o produto, do fato de que nenhuma amamentação jamais vai satisfazer a pulsão
oral.
Falamos de pulsão oral, e as outras
pulsões? Como se passa de uma à outra? Lacan vai enfatizar que, contrariamente
ao que pensam os autores evulocionistas, não há nenhuma relação de
engendramento de uma pulsão à outra. A passagem da pulsão oral para pulsão
anal, p. ex., só acontece em função de uma intervenção de algo que não está no
campo da pulsão: “é a intervenção, a reviravolta, da demanda do Outro”[7].
Estas pulsões, que não são muitas - não
vamos nos esquecer de acrescentar aí, a pulsão escópica - sustentam-se como uma
tensão estacionária, uma “Konstante Kraft” que, sob a égide do Princípio do
Prazer, explicita que “... é em razão da unidade topológica dos espaços em
jogo, que a pulsão toma seu papel no funcionamento do inconsciente”[8].
É desta forma que vamos poder entender que
a pulsão, por, se articular a partir dos
termos de tensão, se manifesta ao modo de um sujeito acéfalo. Sua relação ao
sujeito do inconsciente, portanto, se resume à topologia: ambos ocupam o mesmo
espaço do inconsciente que, nos matemas lacanianos, se faz representar pelo
<>: sinal que indica a presença do inconsciente entre a realidade e o
sujeito. Por isso, é sempre uma surpresa vermos acontecer “ein neues Subjekt”
ao final de um percurso pulsional. Este sujeito, no entanto, só vai acontecer
se um Outro, como já dissemos acima, se apresentar.
A presença deste outro nos leva a estarmos
atentos para não confundirmos pulsão e perversão. Aliás, Lacan é enfático
quando afirma que a pulsão não é a
perversão: Na pulsão o sujeito não está ainda colocado, enquanto que a
perversão, ao contrário, se define pela maneira como o sujeito aí se coloca.
A estrutura do voyeurismo se presta a
esclarecer estes termos. Por ser uma perversão, o sujeito não está aí “ao nível
da pulsão de ver”, mas no final da curva para, aproveitando-se do seu circuito
em torno do objeto, fazer aparecer este objeto como possibilidade de gozo
(neste caso, o objeto olhar).
Assim, quando o perverso se coloca a olhar,
o que ele procura ver é exatamente o objeto, enquanto ausente, mas que pode ser
reencontrado com a introdução do Outro (é o que sinaliza a vergonha, p. ex.).
Quando Sartre descreve o momento em que um sujeito é surpreendido olhando pelo
buraco da fechadura, vai dizer deste ponto em que a presença de um outro vai
denunciar, ao sujeito, o fechamento da curva da pulsão que, retornando sobre
ele, faz surgir aí, onde até então só havia uma curva acéfala, “ein neues
Subjekt”. “A vergonha ou o orgulho me revela, diz Sartre em ‘O ser e o nada’, o
olhar do próximo, e a mim mesmo no extremo deste olhar; faz-me viver,
não conhecer, a situação de olhado. Porém a vergonha, é vergonha de si,
é reconhecimento de que efetivamente sou esse objeto que outro
olha e julga.”[9]
“Se, graças à introdução do outro, a
estrutura da pulsão aparece, ela não se completa verdadeiramente senão na sua
forma reversa, na sua forma de retorno, que é a verdadeira pulsão ativa.”[10]
Lembrem-se que lhes disse a pouco, citando P. Skriabine, que o plano da pulsão
é aquele onde o objeto ‘a’, vem completar o Outro (A) com uma consistência
lógica, remetendo-o a causa de desejo.
Na pulsão teremos um Outro que apresenta
uma consistência lógica, a quem elegemos como causa de desejo (o desejo é
desejo do Outro), na perversão, “a verdadeira visada do desejo é o outro,
enquanto forçado, para além de sua implicação na cena”. Não é somente a vítima
que é interessada no exibicionismo, é a vítima enquanto referida a qualquer
outro que a olhe.
[1] Skriabine, P. - “Le defaut dans
l’univers”, in Revue de l’Ecole de La Cause Freudienne, Fev.1992. Pag.?
[2] Lacan, J. - “Le Séminaire XI” Op.
Cit. Pag. 162
[3] Lacan, J. - Ibidem. Pag. 162
[4] Lacan, J. - “Du ‘Treib...”, Op.
Cit. Pag. 851
[5] Lacan, J. - “Le Seminaire XI”, Op.
Cit. Pag. 163
[7] Lacan,
J. - Ibidem. Pag. 164
[8] Lacan,
J. - Ibidem. Pag. 165
[9] Sartre,
J.P. - “El ser y la Nada”, Editorial Losada, S.A. Buenos Aires, 1966. Pag. 337.
(grifos de Sartre)
[10] Lacan,
J. - “Le Séminaire XI”, Op. Cit.
Pag. 166
Muito obrigado, seu texto é esclarecedor para um aspirante a psicanalista como eu. Foi-me útil na compreensão do circuito pulsional de Lacan para escrita da minha Dissertação que trata da sexualidade na Educação Infantil.
ResponderExcluirAlexsandro Ferreira Caitano
Alessandro, fico feliz por estar contribuindo ao seu caminho na psicanálise!
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