“É tu que está escrevendo teu rótulo!” – Paulo Vilheña, ator. [1]
“Tatuagem é alma!” – Tatiane, modelo.
“Tatuagem não é moda, é coisa definitiva“, Tatuador.
Desde Freud sabemos que o sintoma psíquico tem, no corpo, seu substrato. Nesta
vertente ele pôde inventar um
conceito que acabou sendo seu mito principal: a pulsão. Conceito limítrofe entre o somático e o psíquico deu uma consistência lógica à articulação entre o Real do
corpo, o Simbólico da palavra e à superfície corporal enquanto imagem. Se o sintoma encontra neste campo uma
forma de se escrever, é também neste campo que se verifica como, ao
longo dos séculos e nas mais
diversas culturas, o homem buscou escrever a sua letra de gozo.
E ele o fez utilizando o espaço que sempre designou seu, na tentativa
de vencer as barreiras que a entrada do simbólico trouxe na sua relação com a coisa
corporal. “Entre o homem e seu
corpo há um jogo, no duplo
sentido do termo, nos diz Le Breton. De maneira artesanal, milhões de indivíduos fazem-se “bricoleurs” inventivos e incansáveis de seus corpos.”[3] Isso traduz, de alguma maneira um movimento de tomar posse do corpo
através da inscrição de uma marca própria: “É tu que está escrevendo teu rótulo!” ou então uma forma de investir o corpo como
lugar de prazer e criação: “Tatuagem é alma!”. Mas tudo isso
numa busca de substituir os limites que o sentido que sustenta o sujeito no
mundo, a partir da interpretação que ele fez do
desejo do Outro, pode ser ampliado ao ultrapassar os limites da marca que o
simbólico inscreveu.
Assim ele pode “[4] fixar o sinal de sua diferença”: “Tatuagem não é moda, é coisa definitiva“. Uma conseqüência é que se tenta criar uma outra pele que
acaba funcionando ao fazê-lo crer existir “Paredes para se proteger”.
Riscos, rabiscos, marcas em um corpo que tem
a sua origem na incidência de um simbólico que se faz suporte, pois é sabido que a imagem não pode consistir sem esta marca que
Lacan, seguindo Freud, chama de traço unário.
Em outras palavras podemos dizer que por um
lado existe uma representação primordial do
sujeito que se resume nesta marca. Para além dela, para que o sujeito aí se reconheça, ele precisa de
uma imagem que esteja estruturada por esta marca do traço unário.
Esta marca produz, além disso, um orifício que acontece
como consequência do processo de
nomeação. Estes orifícios corporais, produtos do simbólico na forma imaginária têm, como efeito, o
real em torno do qual a pulsão vai fazer seu
percurso. Um bom exemplo são as orelhas,
presença real, às quais responde a voz fazendo eco da
palavra sobre o corpo.
O que Lacan vai construir como objeto “a” é o resultado dos
buracos produzidos pela nomeação no imaginário do corpo. Eles têm valor de real enquanto marca e a letra deriva desta marca. Assim se
pode constituir a identidade: “uma articulação, um nó entre a forma, o nome e o real que é produto da articulação entre a imagem e
o sentido.”[5] Além disto, é importante
destacar que existe uma “afinidade da marca
com o próprio corpo, onde se
indica que é apenas pelo gozo,
e de modo algum por outras vias, que se estabelece a divisão em que se distingue o narcisismo da relação com o objeto”[6].
Minha proposta é trabalhar estes “rabiscos”, letras que marcam um corpo, a partir da
borda, limite que elas podem impor ao gozo. O objetivo é, pontualmente, tentar apreender como o traço pode nos sinalizar a relação que um determinado sujeito tem com o seu corpo enquanto Outro e,
desta forma, fornecer subsídios para trabalhar
este tempo para compreender que é a adolescência.
Parto da estrutura da cadeia borromeana,
pois ela nos permite trabalhar este “ponto lacaniano”, que é o objeto “a”, enquanto margeado
pelo enlaçamento dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário.
Na articulação R-S temos Jφ − Gozo Fálico
Na articulação R-I temos JA – Gozo do corpo
enquanto Outro.
Na articulação I-S temos S1-S2 - Gozo do sentido
Esta é a estrutura que faz emergir o sujeito nos distintos pontos onde o gozo
parcial se manifesta, e sempre com a esperança de poder transpassar os limites para alcançar um gozo total, ilusório e assim
capturar o que estaria mais além destes limites,
reunindo-os neste condensador de gozo que é o objeto “a”, aqui colocado como ponto central.
Neste contexto, em que a amarração borromeana nos permite falar de uma
estrutura que faz emergir o sujeito, podemos nos perguntar a respeito da potência da letra, da escritura como o que
pode sustentar e até mesmo fazer
reparos quando o pouco de realidade que um sujeito construiu a partir da extração do objeto “a” não opera. Uma primeira resposta é que a escritura funciona como um ponto
de capitonagem, uma sustentação que permite ao
sujeito manter e, inclusive, ser produtivo no laço social.
Com respeito à letra podemos fazer duas considerações, conforme nos sugere Sergio Larriera[7]: “Em primeiro lugar a
letra cumpre a função de transcrever
sons da língua (...) entre o
que é o traço da escritura e o som dos fonemas que
compõem a palavra existe
uma ida e vinda da escritura à leitura, um círculo da letra que vai do traço ao som. (...) Por outro lado a leitura
e a escritura podem dirigir-se ao sentido, à significação ou à perda de sentido ou o sem-sentido.” Lacan, entretanto, desenvolve uma teoria
da escritura em seu Seminário IX, onde
desenha uma articulação entre o traço unário e a identificação. Neste momento
de seu ensino, Lacan vai nos apresentar uma teoria da origem da escritura a
partir da letra, sem que esta tenha a função de descrever sons. A letra teria surgido em relação a um objeto determinado, no sentido de ser apenas um traço. O som foi acrescido simultaneamente a
partir da associação com o objeto, ou
seja, a partir dos efeitos da língua, com o que se
nomeiam os objetos. Desta forma, simultaneamente, se nomeia e se rabisca, se
marca o objeto sem, contudo, haver uma conexão entre eles. Será somente em um
segundo momento, no só depois, que o som
vai ser associado ao traço.
Está aqui exposta a razão da potência da letra, na medida em que ela pode
estabelecer uma circularidade entre o traço e o som, produzindo efeitos de sentido e de sem sentido. É nesta circularidade e utilizando-se das
bordas que demarcam o espaço do objeto “a” que vamos entender o que se pode chamar de gozo parcial da letra.
Disse bordas e parcial para definir que o gozo absoluto seria a satisfação pulsional sem limites, o que seria a
pulsão de morte. A
letra, pelo contrário, apresenta um
efeito de castração, e assim pode
funcionar, também, como índice de condensador de gozo. Isto
acontece porque a letra produz uma certa mutilação do gozo para coloca-lo em função da letra. A conseqüência disto é que a letra não se restringe a marcar um único tipo de gozo, mas opera com vários tipos de gozo.
Pode-se propor, seguindo Larriera, três tipos de gozo:
1 – gozo próprio do corpo da
letra;
2 – gozo uniano da letra;
3 – gozo da produção de sentido.
O primeiro, o gozo próprio do corpo da letra, se evidencia pelo exercício mesmo da escrita, na forma como se trata, p. ex. a caligrafia.
Neste tipo de gozo o que se destaca é o aspecto imaginário da letra: o
fazer letras simplesmente por faze-las, letras sem sentido, independente do som
a que ela corresponde, ou ao sentido que uma sequência pode produzir. Seria como dizer que o rabisco no corpo é como arte, pois afinal: “Tatuagem é alma!”
O segundo, o gozo uniano da letra, refere-se
á invenção do Um, o famoso “há o Um” (Il y a d’Un) que Lacan constrói em seu Seminário XIX[8]. Para não entrar em todas
as elaborações matemáticas e filosóficas com as quais Lacan sustenta sua invenção, vamos resumi-la, para nosso propósito, dizendo que este gozo uniano da letra trata da função da letra como puro traço que borra o objeto. Esta referência vai na direção do que se disse acima quando tratamos da origem da escritura a partir
do que Lacan elaborou no Seminário IX, quando o
traço tinha a função apenas de negar as particularidades do
objeto, reduzindo-o a um traço, uma marca na
parede da caverna. Este gozo uniano está na corrente do que se propõe Joyce, p.ex. quando desmonta a língua em seus escritos, negando-lhe o serviço a qualquer significação. Não se podem compor cadeias,
restringindo-se aos puros sons, à musicalidade,
embora isto se aproxime muito da poesia. Este é o gozo uniano da letra, com o qual se nega a particularidade da
comunicação, ou seja, do
significante enquanto o que representa um sujeito para outro significante,
deixando apenas restos pulverizados da língua. Neste caso, pode-se dizer que assim se constroem “Paredes para se proteger”.
O terceiro modo, o gozo da produção de sentido, diz respeito a um gozo semântico que busca aproximar-se do impossível do objeto, modela-lo, desfrutando do
deslizamento metonímico, e do prazer
metafórico de produzir
sentido. Talvez aqui possa ser inscrita a presença do traço unário como sustentação do significante em sua função de representar um sujeito para outro significante e, desta forma
dizer que, ao marcar o corpo, traduzindo passagens, lembranças, amores de sua vida, vai-se estar “escrevendo teu rótulo”.
Seja qual for a causa que mobiliza o “rabisco”, ele “não é moda, é coisa definitiva“ e se presta ao “mal-entendido que faz andar o mundo.
É graças ao Mal-entendido universal que o mundo
inteiro se entende. Porque se algum dia, para nossa desgraça, nos compreendêssemos, jamais chegaríamos a um acordo”[9].
Referências
Bibliográficas:
Baudelaire, Charles. Poesia e Prosa.
Trad. Fernando Guerreiro, Editora Nova Aguilar S.A. Rio de Janeiro, 1995.
Brousse,
Marie Helene. “A propósito del cuerpo en la enseñaza de Lacan”. Seminario de Investigación: El cuerpo en Psicoanálisis, Escuela Lacaniana de Psicoanálisis del Campo Freudiano, Madrid, 2001.
Lacan,
Jacques. Le Seminárie XIX – Ou pire... Inédito.
Lacan, Jacques. O Seminário VII – O avesso da psicanálise. Trad. Ari
Roitman. Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro. 1992.
Larriera,
Sergio, “El cuerpo en Joyce”. Seminario de Investigación: El cuerpo en Psicoanálisis, Escuela Lacaniana de Psicoanálisis del Campo Freudiano, Madrid, 2001.
Le
Breton, David. Signes d’identité – Tatouges, piercings et autres marques
corporalles. Éditions Métailié, Paris, 2002.
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