Fazer valer o princípio do “paciente esquecer que se trata apenas de palavras” é considerar que se pode atingir, fazer aparecer a ação sem meta que é aquela onde aparece a marca do gozo, e onde se misturam, por sua vez, verdade e gozo. Ora, o gozo é sem meta, pois não tem outra meta além de si mesmo, o que nos leva a dizer que todo gozo é cínico, pois desconhece o Outro. Lacan, ao citar Ângelus Silesius: “A rosa é sem porque”, define o gozo como o gozo da rosa. Assim, esta frase do texto nos diz que nosso objetivo é fazer aparecer nos ditos do analisante, o vazio que está sob suas ações, e o fazemos com a ajuda da potência da linguagem, do equivoco significante, enfim, tendo em vista o que Freud chamou de sobre-determinação. Em outras palavras, podemos afirmar que é preciso ao menos um duplo sentido para que o analista possa operar sobre o dito do analisante e, exatamente por isso “não (se) justifica que o próprio analista esqueça” que se trata apenas de palavras.
Trago-lhes um exemplo de minha própria clínica, que considero paradigmático no que se refere à possibilidade de intervenção do analista a partir mesmo do fato de que não se deve esquecer que se trata de palavras: uma paciente busca análise com uma queixa: não consegue concluir o que começa. Suas metas nunca são alcançadas. Ao longo de um tempo, que não foi pequeno, pode-se construir uma história onde pode-se localizar o sujeito submetido a uma fantasia de culpa muito intensa. Fruto de uma relação proibida entre dois primos, a notícia da sua chegada acabou por provocar um crime: O pai de sua mãe matou o pai da analisante. Esta construção nos propiciou, um certo dia, apontar o gozo que sustentava a repetição sintomática (abro parênteses para dizer que a construção é diferente da interpretação, sendo em função daquela que está pode ser comunicada ao analisante). Esta analisante já havia utilizando várias palavras para definir a repetição: não consigo concluir, terminar, acabar, finalizar, etc. No entanto, neste dia ela diz, tão logo se deitou no divã: “eu não consigo arrematar nada!” Como o analista não pode esquecer que se trata de palavras e que palavras não são signos, mas significantes que representam um sujeito para outro significante, foi possível fazer um escanção: “A–ré-matar!” para, em seguida, fazer um corte na sessão. Como resposta à interpretação, foi possível escutar como este sujeito recebeu sua própria mensagem invertida: Ela trouxe a conclusão sob forma de uma pergunta (quem pergunta já sabe a resposta, nos diz Lacan): “Não entendi nada do que aconteceu ontem. Será que você disse aquilo por causa do crime que aconteceu em função do meu nascimento?” Ao operar sobre as possibilidades das palavras, seus equívocos, o analista abre espaço para que as identificações sejam demolidas e novas escolhas possam acontecer a partir da combinatória da linguagem e, ao mesmo tempo desvelar o horizonte do dizer. Este exemplo, assim como outros que podemos encontrar no dia-a-dia de nossa prática, demonstram bem como este lugar da verdade - ou do vazio que o filósofo apenas se apressa em mostrar - é o que vai sustentar o exercício mesmo da função do analista no uso particular que faz da linguagem ao reduzi-lo à sua função de potência combinatória onde uma nova implicação subjetiva vai surgir e uma nova relação ao sintoma se constitui.
É muito importante destacar aqui que utilizar o duplo sentido das palavras com o objetivo de apontar o vazio que se encontra por trás do dito do analisante descarta a idéia do “compreender”. O “não compreender” ou o esquecer tudo que se sabe antes de começar a escuta de um novo candidato à análise (como nos recomenda Freud) é “conseqüência, unicamente, do fato de não haver metalinguagem, isto é, não se poder explicar uma frase a partir de outra definitiva, sem que se reproduza e se continue a possibilidade de nova posição subjetiva”. Quem nos lembra isso é J.A.-Miller em um dos seminários que ditou em Curitiba (27/07/87). Nesta mesma ocasião Miller esclarece que o vazio que está sob a combinatória é onde vamos localizar o sujeito e é onde se localizam as variações da posição subjetiva que nos dizem dos modos de gozo de um determinado sujeito. Para se alcançar esta caixa vazia é preciso por entre parênteses o que o sujeito diz e fazê-lo perceber que suas posições estão modalizadas pelo seu dito.
Miller conclui a conferência citada respondendo à questão: “Que é o sujeito?” Como é disso que estamos tratando aqui, vou transcrever sua resposta: “É essa caixa vazia, o lugar vazio onde se inscrevem as modalizações, que encarna o lugar de sua própria ignorância, e também o fato de que a modalidade fundamental que deve surgir, através de todas as variações, é a seguinte: “Eu (o paciente) não sei o que digo”. E, nesse sentido, o lugar da enunciação é próprio lugar do inconsciente”.
Se esta segunda subdivisão da primeira parte nos diz de como começa uma análise, a terceira vai tratar da verdade ao final de uma análise. Verifica-se com isso que o movimento de Lacan neste texto é de um ir e vir por onde vai tecendo os meandros da Direção do Tratamento:
“3. Aliás, havíamos anunciado que é pelo lado do analista que tencionamos introduzir nosso assunto.
Digamos que, no investimento de capital da empresa comum, o paciente não e o único com dificuldades a entrar com sua quota. Também o analista tem que pagar:
— pagar com palavras, sem dúvida, se a transmutação que elas sofrem pela operação analítica as eleva a seu efeito de interpretação;
— mas pagar também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência; e haveremos de esquecer que ele tem que pagar com o que ha de essencial em seu juízo mais íntimo, para intervir numa ação que vai ao cerne do ser (Kern unseres Wesens escreveu Freud [6]): seria ele o único a ficar fora do jogo?
Que não se preocupem comigo aqueles cujos votos se dirigem a nossas armas, ante a idéia de que eu me esteja expondo aqui, mais uma vez, a adversários sempre felizes por me devolverem à minha metafísica.
Pois é no seio da pretensão deles de se bastarem com a eficácia que se eleva uma afirmação como esta: a de que o analista cura menos pelo que diz e faz do que por aquilo que é. Sem que, aparentemente, ninguém peça explicações dessa afirmação a seu autor, nem o lembre do pudor, quando, dirigindo um sorriso de enfado ao ridículo a que se expõe, ou à bondade, a sua (é preciso ser bom, não há transcendência nesse contexto), que ele apela para pôr fim a um debate sem saída sobre a neurose de transferência. Mas, quem teria a crueldade de interrogar aquele que se verga sob o fardo da bagagem, quando seu porte leva claramente a supor que ela está cheia de tijolos?
No entanto, o ser é o ser seja quem for que o invoque, e temos o direito de perguntar o que ele vem fazer aqui.”
O que se pode depreender deste parágrafo é que o analista não será apenas uma tela em branco, uma superfície que se presta à projeção das fantasias do paciente, pois ele também paga seu preço. Se do ponto de vista do imaginário paga com sua pessoa, no que diz respeito ao simbólico o pagamento vai acontecer com palavras e quanto ao real, o pagamento será ao nível do ser, mais especificamente, ao núcleo de seu ser. Este núcleo que é a verdade do final: o que começa como artifício culmina como verdade do ser: sua falta constitutiva. Quando Lacan evoca “o que há de essencial no seu julgamento mais íntimo”, podemos ler como ser referindo ao ser, à verdade do ser e isso concerne ao real, tal como vai ser desenvolvido mais tarde.
Em outras palavras pode-se dizer que a interpretação é abordada pelo simbólico, daí o pagar-se com palavras; a transferência é abordada pelo imaginário enquanto que a relação ao ser constitui-se no que vai definir a política da análise: a análise visa o real. Estas três posições serão amplamente discutidas nas próximas três divisões do texto, já que esta que trabalhamos no momento pode ser classificada como introdutória: “Qual é o lugar da interpretação?” tratará do pagamento com palavras; “Qual a situação atual da transferência?” visa tratar da questão do pagar-se com sua pessoa, enquanto que o “Como agir com o seu ser?” vai tratar de saber se analista deve se regular por seu ser ou por sua falta a ser.
O que lhes disse até aqui denota estarmos diante de duas lógicas completamente distintas quando se fala em início e final do tratamento. O que pode ser chamado ao esclarecimento desta passagem se baseia na transferência, ou seja, como vai se opor o real da transferência à ficção do dispositivo ou do enquadre psicanalítico. No entanto, é fundamental não trabalharmos esta questão pelo viés da oposição entre estes dois pólos, mas sim pela dialética que pode aí se estabelecer. Esta dialética vai determinar a direção do tratamento e sua orientação. Para dar conta disso Lacan convoca Clausewitz, um teórico das questões militares e que divide as ações em três planos: a política, a estratégia e a tática. O que vamos destacar agora é como estes três planos estão presentes no processo e para isso vamos à quarta subdivisão desta parte que questiona: “Quem analisa hoje?”
“4. Colocarei novamente o analista na berlinda, portanto, na medida em que eu mesmo o sou, para observar que ele é tão menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu ser.
Intérprete do que me é apresentado em colocações ou atos, decido acerca de meu oráculo e o articulo a meu gosto, único mestre/senhor em meu barco, depois de Deus, e claro, longe de poder avaliar todo o efeito de minhas palavras, mas justamente advertido e procurando prevenir-me contra isso, ou, dito de outra maneira, sempre livre quanto ao momento, ao número e também à escolha de minhas intervenções, a tal ponto que a regra parece ter sido inteiramente ordenada para não atrapalhar em nada meu trabalho de executante, ao que é correlato o aspecto de “material” sob o qual minha ação aborda aqui o que ela produziu.”
Esta passagem se refere à liberdade que o analista tem em relação à interpretação. Ele tem a liberdade de dizer o que tem a dizer. Cumpre ressaltar que Lacan raramente utiliza o termo liberdade, pois ele não considera que o homem seja livre. Na verdade, quando ele se refere ao homem livre ele o faz em relação à psicose, pois o psicótico é o senhor do significante já que escapa da lei fálica. Mas aqui Lacan fala da liberdade tática, da possibilidade do analista ser “único mestre/senhor em (s)eu barco” mas também advertido de que pode “avaliar todo o efeito de (suas) palavras”. Por isso, em várias ocasiões, ele nos fala que a surpresa do ato acontece tanto para o analisante como para o analista o que vai provocar, no analista, um horror ao ato na medida em que este desvela o real que o envelope formal do sintoma mantém sob proteção. No entanto esta liberdade só se sustenta dentro de uma estratégia. Daí a quinta subdivisão quando a transferência será abordada como a estratégia mesmo da direção do tratamento.
5. Quanto ao manejo da transferência, minha liberdade, ao contrário, vê-se alienada pelo desdobramento que nela sofre minha pessoa, e ninguém ignora que é aí que se deve buscar o segredo da análise. O que não impede que se creia estar progredindo nesta douta afirmação: que a psicanálise deve ser estudada como uma situação a dois. Decerto se introduzem nela condições que lhe restringem os movimentos, no entanto disso resulta que a situação assim concebida serve para articular (e sem maiores artifícios do que a já citada reeducação emocional) os princípios de um adestramento do chamado Eu fraco, e por um Eu o qual há quem goste de considerar capaz de realizar esse projeto, porque é forte. Que não se enuncie isso sem constrangimento é o que atestam certos arrependimentos de uma inabilidade impressionante, como aquele que esclarece não ceder à exigência de uma "cura por dentro". Mas só é mais significativo constatar que o assentimento do sujeito, por sua evocação nesse trecho, vem apenas no segundo tempo de um eleito inicialmente imposto.
Não e por nosso prazer que expomos esses desvios, mas, antes, para, com seus escolhos, balizas para nosso caminho.
De fato, todo analista (nem que seja os que assim se extraviam) sempre experimenta a transferência, no deslumbramento do eleito menos esperado de uma relação a dois que seria como as outras. Ele diz a si mesmo que, nesse aspecto, tem que contemporizar com um fenômeno pelo qual não é responsável, e sabemos com que insistência Freud enfatizou sua espontaneidade no paciente.
Faz algum tempo que os analistas, nas dilacerantes revisões com que nos brindam, preferem insinuar que essa insistência, da qual se fizeram baluartes por muito tempo, traduziria em Freud uma certa fuga do compromisso pressuposto pela idéia de situação. Como vocês vêem, estamos em dia.
Mas é sobretudo a exaltação fácil de seu gesto de atirar os sentimentos — imputado à contratransferência — no prato de uma balança em que a situação se equilibraria por seu peso que atesta, para nós, uma consciência pesada que se correlaciona com a renúncia em conceber a verdadeira natureza da transferência.
Não é possível raciocinar com o que o analisado leva a pessoa do analista a suportar de suas fantasias como com o que um jogador ideal avalia das intenções de seu adversário. Sem dúvida, há também uma estratégia ali, mas não nos enganemos com a metáfora do espelho, por mais que ela convenha à superfície una que o analista apresenta ao paciente. Cara fechada e boca cosida não, têm aqui a mesma finalidade que no bridge. Com isso, antes, o analista convoca a ajuda do que nesse jogo é chamado de morto, mas para fazer surgir o quarto jogador que do analisado será parceiro, e cuja mão, através de seus lances, o analista se esforçará por faze-lo adivinhar: é esse o vínculo, digamos, de abnegação, imposto analista pelo cacife da partida da analise.
Poderíamos prosseguir nessa metáfora, daí deduzindo seu jogo conforme ele se coloque “à direita" ou "à esquerda" do paciente, ou seja, na posição de jogar antes ou depois do quarto jogador, isto e, de jogar antes ou depois deste com o morto.
Mas o que há de certo é que os sentimentos do analista só têm um lugar possível nesse jogo: o do morto; e que, ao ressuscita-lo, o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz.
Eis por que o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática."
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