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quarta-feira, 8 de maio de 2013

Sobre a contra-transferência e o lugar do analista

Retomemos nosso trabalho com o texto "A direção do tratamento..." :
“I. Quem analisa hoje?
1. Que uma análise traga consigo os traços da pessoa do analisado, fala-se disso como se fosse óbvio. Mas acredita-se dar mostras de audácia ao manifestar interesse pelos efeitos que nela surtiria a pessoa do analista. É isso, pelo menos, que justifica o frêmito que nos percorre ante as expressões em voga sobre a contra-transferência, o que sem dúvida contribui para lhes mascarar a impropriedade conceitual: pensem na altivez de espírito de que damos testemunho ao nos mostrarmos feitos, em nossa argila, da mesma daqueles que moldamos.”

Este parágrafo define o que Lacan quer dizer com o hoje daquele tempo. Parece-me que esta afirmação se atualiza quando percorremos alguns textos publicados pela IPA, como por exemplo, um volume publicado em Paris e que se intitula: “Devenir Psychanalyste” Sob a direção de Paul Denis e Jacqueline Schaeffer. Vários de seus capítulos se dedicam ao ser psicanalista e à questão da contra-transferência. A frase que define este parágrafo é atual: “É isso, pelo menos, que justifica o frêmito que nos percorre ante as expressões em voga sobre a contra-transferência...” 
Vejamos como este conceito – Contra-transferência – evoluiu e porque Lacan começa este texto sobre a direção do tratamento exatamente por aí. No início dos anos 50, vê-se surgir como uma grande força a vertente teórica que enfatiza a técnica e que acaba por transformar em regra os usos da Contra-transferência. Se por um lado esta prática acabou mesmo por desviar o sentido no qual ele aparece em Freud, nem por isso Lacan o considera de todo inútil. É assim que no Seminário X, “A angustia” ele chega até mesmo a elogiar os introdutores desta prática. Na verdade, àquelas que introduziram esta prática já que o uso da contra-transferência, diz Lacan no Seminário mencionado, foi um grito de alerta das analistas mulheres que começavam a aborrecerem-se com as regras e a obsessivação que lhe impunham as Sociedades psicanalíticas a que pertenciam. Lacan faz referência a isso dizendo que esta foi a forma como elas acabaram por resistir ao pesado dispositivo que a vulnerabilidade do sexo masculino à obsessão havia instalado com a finalidade de criar Institutos sólidos e, por isso, tentaram introduzir algo diferente. 
O que Lacan tenta esclarecer na sua crítica à contra-transferência é uma redução da experiência a uma dialética intersubjetiva, onde se perde o fio da prática analítica. O que se observa nesta prática é que fica postulada semelhança entre analista e analisante, sua equiparação e, por aí acontece um desvio. É o que ele nos diz quando solicita que pensemos“na altivez de espírito de que damos testemunho ao nos mostrarmos feitos, em nossa argila, da mesma daqueles que moldamos”. Ora, toda e qualquer concepção da análise como um diálogo, ainda que se possa recorrer à lógica para atualizar o tema do diálogo, nada muda, pois a reciprocidade em analise é uma piada. 
Disse a pouco que, na verdade, o uso que se começou a fazer da contra-transferência foi um desvio até mesmo do emprego que Freud fez deste conceito.
Citemos Lacan em “A direção do tratamento...”: “Situar nesse nível a ação do analista implica uma posição de princípio diante da qual tudo o que se possa dizer da contra-transferência, mesmo não sendo inútil; funcionará como uma manobra diversionista. Pois é para-além disso que se situa, a partir daí, a impostura que aqui queremos desalojar.
Nem por isso estamos denunciando o que a psicanálise tem hoje de antifreudiano. Pois, nesse aspecto, deve-se reconhecer que tirou a mascara, uma vez que ela se vangloria de ultrapassar aquilo que alias ignora, guardando da doutrina de Freud apenas o suficiente para sentir o quanto lhe é dissonante o que ela acabou de enunciar de sua experiência.
Pretendemos mostrar como a impotência em sustentar autenticamente uma práxis reduz-se, como é comum na história dos homens, ao exercício de um poder”.

Muito bem!
Está fornecida uma chave de leitura: O exercício do poder vem como conseqüência direta da impotência em sustentar uma praxis!
 Percorrendo os textos freudianos podemos encontrar algumas passagens – que não são muitas – onde ele trabalha o conceito de contra-transferência que, observemos, foi construído num momento de impotência de Freud diante de seus pacientes. No entanto, ele todo o tempo, como vamos verificar, extraí daí uma nova posição do analista que nada tem a ver com o exercício do poder. Algumas vezes ele mesmo não respeita isso, e ele é humilde o bastante para dize-lo – como nos escrito em torno do Caso Dora retomado em 1920. Partiremos, pois, destas passagens para localizar onde os desvios aconteceram e o que permanece como útil.
Em 1910, no texto “As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica” Freud disse ter tomado consciência da contra-transferência a partir das “Outras inovações na técnica (que) relacionam-se ao próprio médico. Tornamo-nos conscientes da “contra-transferência que surge nele como resultado da influência do paciente em seus sentimentos inconscientes, e estamos inclinados a insistir que ele reconheça essa contra-transferência em si próprio e a supere. Agora que um número considerável de pessoas está praticando a psicanálise e trocando suas observações com outros, observamos que nenhum psicanalista vai mais longe do que permite seus próprios complexos e resistências internas e conseqüentemente requer-se do analista que ele comece sua atividade com uma auto-análise e continuamente a leve mais a fundo enquanto estiver fazendo suas observações em seus pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa auto-análise deste tipo pode, imediatamente, desistir de qualquer idéia de ser capaz de tratar pacientes pela análise.”
Nesta época, Freud acreditava que uma auto-análise permitiria controlar as inclinações pessoais do analista. Mas, nos anos vinte, a análise didática tornou-se a regra: “não era suficiente (...) que ele fosse, ele mesmo um pouco mais normal, ele deve ser submetido a uma purificação psicanalítica”. 
Mas a tendência à contra-transferência, por mais séria que tenha sido a formação do analista, não pode jamais ser totalmente eliminada, pois é inevitável que paciente e analista, assim como qualquer que seja o par de seres humanos, aja um sobre o outro de uma forma inesperada e mesmo irracional. Era assim que pensavam os pós-freudianos e, de alguma forma, isso não deve ser desprezado. O que importa é o uso que se vai fazer desta constatação. 
Voltando ao velho Freud, vamos constatar, percorrendo alguns de seus textos, que ele esperava que “as interpretações (do analista fossem) independentes de (seus) traços de caráter pessoal e que atingissem seu objetivo”. Mas, ele também sabia que a “personalidade” do analista não era “indiferente” e que “o fator individual (jogaria) sempre um papel mais importante na psicanálise do que em outros domínios”. Esta afirmação de Freud acabou por levar alguns psicanalistas a acreditar que “o analista cura menos pelo que diz e faz do que por aquilo que é.”
Mas, mesmo que Freud concordasse com a idéia de que a análise tinha certos limites, esta parecia, por vezes, fundar-se sobre normas utópicas; ele admitia que no curso do tratamento de um paciente, poderiam encontrar-se “momentos onde se é perturbado por alguma consideração pessoal – ou seja, quando se está perigosamente colocado abaixo do nível do analista ideal”. 
No entanto, pelo menos ao fim de sua vida, ele reconheceu que “as condições particulares do trabalho analítico podem, com efeito, ser causa das faltas próprias do analista impedindo-o de avaliar corretamente o que se passa em seu paciente e, a partir daí, reagir utilmente”.
Mas, se por um lado, Freud muito bem notou a existência dos sentimentos da contra-transferência, ele não desenvolveu este assunto. Talvez ele tivesse a idéia de que os únicos problemas emocionais importantes fossem os de seus pacientes e não os seus. Nesta vertente podemos assinalar os vários estudos que foram feitos em torno da posição contra-transferencial de Freud em relação à Dora, Homem dos Lobos, Homem dos ratos, A jovem homossexual, etc. Enfim, estudos que foram levados adiante pelos pós-freudianos criadores do uso da contra-transferência, bem como pelo próprio Lacan. Chamo a atenção em especial para um texto: ”Intervenção sobre a Transferência”, onde ele desenvolve um longo trabalho sobre os pontos cegos de Freud em relação à Dora.  
Mas a verdade é que Freud logo percebeu o interesse exagerado pela contra-transferência por parte de seus contemporâneos (vide Sándor Ferenczi), e, talvez por isso, ele tenha ido nos extremo oposto, ou seja, tentou minimizar sua presença na técnica.  Isto porque considerava a transferência uma espécie de engano e que não deveria, logicamente, se produzir no analista ideal. Como ele mesmo disse um dia: “Essa contra-transferência deve ser completamente dominada pelo analista; somente isso fará dele o mestre da situação analítica”. 
Penso que vale a pena lermos a passagem integral que se encontra no texto “Observações sobre o amor de transferência”, escrito em 1915. Freud assim descreve a contra-transferência: “Após o paciente ter se enamorado de seu médico, ele parte; o tratamento é interrompido. Mas logo em seguida a condição do paciente o leva a fazer uma segunda tentativa de análise, com outro médico. O que acontece é que ela também se enamora desse segundo médico; e ela interrompe com ele também e começa tudo de novo, a mesma coisa vai acontecer com o terceiro médico, e assim por diante. Esse fenômeno, que ocorre sem falha e que é, como sabemos, um dos fundamentos da teoria psicanalítica, deve ser avaliado por dois pontos de vista, aquele do médico que está dirigindo o tratamento e aquele do paciente que necessita dele. Para o médico, o fenômeno significa uma peça valiosa de esclarecimento e um aviso útil contra qualquer tendência a contra-transferência, a qual deve estar presente em sua própria mente. Ele deve reconhecer que o enamoramento do paciente induzido pela situação analítica não deve ser atribuída ao charme de sua própria pessoa, ou seja, não existe nenhuma sustentação, qualquer que seja, para se ficar orgulhoso de tal “conquista”, como poderia acontecer fora da análise. E é sempre muito bom recordar-se disso. Para o paciente, no entanto, existem duas alternativas: ou ela deve desistir do tratamento psicanalítico ou ela deve aceitar que se enamorar de seu médico é um destino do qual não pode escapar.”
Mais adiante, neste mesmo texto, Freud comenta os argumentos que poderiam existir no sentido do analista adiar certos sentimentos amorosos a seus pacientes até o momento em que seria possível realiza-los. Ele assim contesta esta argumentação: “Desde que solicitamos estrita confiança de nossos pacientes, nós colocaremos em risco toda nossa autoridade se nos deixássemos ser pegos por eles num desvio da verdade. Além disso, a experiência de deixar-se levar um pouco na trilha de sentimentos de ternura pelo paciente não deixa de ser, também, perigoso. Nosso controle sobre nós mesmos nunca é tão completo a ponto de pensar que um dia não iremos mais além do que tínhamos a intenção de ir. Na minha opinião, portanto, não devemos desistir da neutralidade em relação ao paciente, esta que adquirimos através de estarmos constantemente checando a contra-transferência”.
E, finalmente, uma referência que se encontra no texto de 1926. “A questão da análise leiga”: “Interprete!” Uma palavra detestável! Eu não gosto do seu som, ele me rouba toda certeza. Se tudo depende de minha interpretação quem pode garantir que eu interpreto certo? Pois, depois disso, tudo pode estar entregue ao meu capricho.”
Esta última citação, apesar de não trazer a palavra contra-transferência explicitamente, nos diz bem da angústia que pode estar presente no ato de interpretar, na medida que o capricho do analista pode se fazer presente ali onde o desejo do analista deveria estar no comando. Fica esta passagem para ser retomada oportunamente.  

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