O processo de formação do sintoma, de alguma forma, também está a serviço do dormir, por isso a cada vez que no seu lugar fazemos acontecer um encontro com a demanda ($<>D), desfazendo um certo circuito, “O sintoma simplesmente torna a brotar qual erva daninha, compulsão de repetição”, com o objetivo explicito de que não rememore o que deve ficar recalcado. Daí a afirmação de Lacan de que “Não se fica curado porque se rememora. Rememora-se porque se fica curado.”
Passemos ao exame do sonho da Bela Açougueira relendo o relato que ela mesma faz a Freud:
“Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia.”
Freud assim começa a análise deste sonho: “Respondi, naturalmente, que a análise era a única forma de decidir quanto ao sentido do sonho, embora admitisse que, à primeira vista, ele se afigurava sensato e coerente e parecia ser o inverso da realização de um desejo”. Mas de que material decorreu o sonho? Como sabe, a instigação de um sonho é sempre encontrada nos acontecimentos da véspera.”
“O marido de minha paciente, continua Freud, um açougueiro atacadista, honesto e competente, comentara com ela, na véspera, que estava ficando muito gordo e que, por isso, pretendia começar um regime de emagrecimento. Propunha-se levantar cedo, fazer exercícios físicos, ater-se a uma dieta rigorosa e, acima de tudo, não aceitar mais convites para cear. — Ela acrescentou, rindo, que o marido, no lugar onde almoçava regularmente, travara conhecimento com um pintor que o pressionara a lhe permitir que pintasse seu retrato, pois nunca vira feições tão expressivas. O marido, contudo, replicara, à sua maneira rude, que ficava muito agradecido, mas tinha a certeza de que o pintor preferiria parte do traseiro de uma bonita garota a todo o seu rosto. Ela estava muito apaixonada pelo marido e caçoava muito dele. Ela também implorara a ele que não lhe desse nenhum caviar.
Perguntei-lhe o que significava isso, e ela explicou que há muito tempo desejava comer um sanduíche de caviar todas as manhãs, mas relutava em fazer essa despesa. Naturalmente, o marido a deixaria obtê-lo imediatamente, se ela lhe tivesse pedido. Mas, ao contrário, ela lhe pedira que não lhe desse caviar, para poder continuar a mexer com ele por causa disso.”
A chave deste sonho encontra-se numa indicação clínica precisa: a identificação na histérica que deve ser abordada nesse ponto entre o sujeito histérico e a outra mulher. Este ponto que se define no que a outra tem de inimitável. “Se nossa paciente se identifica com sua amiga, é por esta ser inimitável no desejo insatisfeito daquele salmão...”. Sempre que se tende a pensar na histeria em termos de imitação, o que está sempre correto, deve ser vinculado a um ponto inimitável. Somente podemos saber do indutor do histérico, ao localizar este ponto inimitável no sujeito que verdadeiramente o fascina. No caso da Bela Açougueira, o ponto inimitável é o desejo insatisfeito de salmão da amiga que pode ser substituído pelo desejo insatisfeito de caviar da paciente. Esta operação e uma metáfora indicando que o sonho da paciente de Freud responde à demanda da amiga com a qual ela se identifica. O desenlace do sonho vai dizer que este ponto de identificação é o que surge no campo do Outro. Este ponto sobre o qual trabalhamos nas últimas postagens e que pode ser matemizado por S(A/). Manter este desejo insatisfeito é manter o Outro desejando, daí o sonho ter também um outro endereçamento: “Deu tudo errado, e o senhor diz que o sonho é a realização de um desejo. Como é que o senhor sai dessa, professor?”
A segunda indicação clínica gira em torno da ambivalência que se expressa no fato da paciente desejar e, ao mesmo tempo, não desejar o caviar. É preciso diferenciar esta ambivalência da que aparece nas neuroses obsessivas. Acontece que quando se trata de uma histeria, o desejo não é ambivalente, pois é desejo de ter um desejo insatisfeito. O que se verifica neste sonho é uma substituição de desejos e que está relacionada a uma demanda e não a uma ambivalência: o pedido que lhe faz a amiga para jantar em sua casa. Esta demanda, que nunca deve ser depreciada quando se trata de uma histérica, aponta a cena onde o desejo se articula: Seu marido fala de forma elogiosa desta amiga, mesmo que ele prefira as mulheres mais cheinhas. É, pois a partir da demanda da amiga que o sonho é produzido. Não nos esqueçamos que a demanda sempre aponta o vazio no campo do Outro.
Lacan, neste ponto de suas elaborações teóricas, pode contribuir de forma decisiva à prática clínica ao tratar a articulação entre demanda, desejo e necessidade. Esta articulação para qual estamos chamando a atenção, também vai acontecer no caso de neurose obsessiva que será trabalhado futuramente.
No sonho da Bela Açougueira, esta responde à demanda da amiga fazendo de seu desejo – substituído ao próprio – o fracasso de sua própria demanda. Sabemos que a demanda é intransitiva, ou seja, sem objeto, assim o sonho tem como função manter aberta a pergunta sobre o desejo, para que, ao final do sonho, possa surgir a identificação desta paciente com o salmão. Esta identificação com o objeto do desejo é o que faz com que o sujeito indeterminado do inconsciente, esse sujeito que desliza ao longo da cadeia significante, se detenha: “Ser o falo, nem que seja um falo meio magrelo. Não está aí a identificação última com o significante do desejo?”
O que está em jogo neste sonho? O nada que habita o entre dois significantes: o sujeito, inicialmente indeterminado, encontra em certo momento sua condição de existir no objeto que o determina. Objeto este desenhado no campo do Outro a partir da interpretação que se fez deste vazio inscrito na demanda como falta-a-ser.
Encontramos aqui uma definição de desejo preciosa, em sua articulação com a demanda e a necessidade, ao mesmo tempo em que explicita as paixões do ser como respostas à falta-a-ser:
“O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar dessa falta.” Com esta afirmação, Lacan localiza o desejo, a partir do Grafo, neste intervalo entre o (A), lugar da fala e o ($<>D), lugar onde o sujeito, articula a demanda à falta-a-ser S(A/).
“O que é assim dado ao Outro preencher, e que é propriamente o que ele não tem, pois também nele o ser falta, é aquilo a que se chama amor, mas são também o ódio e a ignorância.” Lacan localiza com esta passagem as paixões do ser no ponto de falta do Outro: S(A/) e conclui o parágrafo com uma explanação sobre o porque não é recomendável agir a partir da resposta à necessidade: “É também isso, paixões do ser, o que toda demanda evoca para-além da necessidade que nela se articula, e é disso mesmo que o sujeito fica tão mais propriamente privado quanto mais a necessidade articulada na demanda é satisfeita.” Esta entrada pelo viés da resposta da satisfação da necessidade desvela o engodo do amor ao explicitar que o “o ser da linguagem é o não-ser dos objetos” fazendo com que não seja possível situar o pensamento no nível de realidade que não seja a psíquica. Uma pequena referência à anorexia nervosa vem exemplificar muito bem do que se trata: “É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo.”
Continuaremos, retomando os caminhos do desejo pelos desfiladeiros do significante para tratar de um caso de um final de análise em uma neurose obsessiva.