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sábado, 5 de dezembro de 2015

Sobre “O Balcão” de Jean Genet - Uma formalização (II)

     
O esquema R, de Lacan, pode nos servir de orientação neste ponto. O eixo lateral phi à I e o eixo I à P esclarece que no lugar de se constituir um Ideal do eu - que nos diz da simbolização do falo como produto da castração, do Édipo - verifica-se a transformação em imagem deste falo. Esta inversão do vetor na direção do phi esclarece, por sua vez, o ponto onde a castração não pode fazer barreira a este imaginário que aí prolifera.
Em seu texto sobre Kant com Sade, Lacan nos lembra que é neste ponto que vamos ver surgir uma vontade de gozo onde um desejo deveria acontecer, deixando o sujeito, como disse certa vez um paciente, "escravo do prazer". 
Neste ponto de nossa elaboração, acredito podermos pensar um eixo que parte de uma afirmação de J-A. Miller, em SILET: "a toda falha simbólica responde uma inserção imaginária"(15) e que pode ser articulada com a questão do enigma, com a questão deste lugar da significação que, na Metáfora Paterna, permanece como um X. 
Eric Laurent, em um texto sobre "Enigma e Psicose" (16) nos diz que, "segundo Littre, o enigma é a definição de coisas em termos obscuros, mas que reunidos, designam exclusivamente seu objeto e são dados à adivinhar". 
Dentro da perspectiva do enigma, o ensinamento de Lacan pode ser dividido em três momentos: 

1 - De inicio o enigma é abordado a partir do sentido e de sua fuga. Lembro-lhes que, nesta fase Lacan desenvolvia sua teorização a partir da barra que mantinha separados significante e significado. Sua proposta girava em torno da possibilidade do simbólico recobrir todo o campo do imaginário, ficando o desejo como um X, um enigma que desliza metonimicamente a partir da significação produzida pela ação da metáfora paterna. 

2 - Num segundo momento vemos Lacan deslocar o enigma do sentido para uma "significação segunda, significação de significação", como nos diz Laurent. Desta forma o enigma passa a ser a significação produzida pela ação do significante, "que é o objeto mesmo da comunicação".

3 - Finalmente, a partir da revisão que Lacan faz de sua teorização do falo e do objeto quando retoma os conceitos fundamentais freudianos, é que ele vai "se referir diretamente à experiência de gozo como sendo o verdadeiro enigma. No momento em que o sentido se ausenta do mundo, o sujeito é deixado vazio de significação, invadido por esta presença que é a experiência de gozo. Enigma fundamental para o ser falante, ele nada tem a ver com a liberação das alegrias do sexo"(17). 
Este deslocamento, do sentido e sua fuga para a experiência do gozo, só foi possível à medida em que Lacan foi, passo a passo, deixando de lado a formalização onde o simbólico se apresenta recobrindo todo o imaginário, a partir mesmo da barra do algoritmo S/s, para estabelecer que na relação do simbólico com o real o que está em jogo é um corte que deixa um resto. 
Ora, esta solução encontrada por Lacan e que estrutura, basicamente, a relação do sujeito e do objeto vai nos dizer que o que existe fundamentalmente é uma falta, "que é efeito do significante e que à falta devido ao efeito mortificante do significante responde este elemento de vida, este elemento de gozo vivo que é o objeto pequeno a (...), que tem a necessidade, em Freud, do conceito de pulsão"(18).
Esta articulação entre objeto a e pulsão é fundamental para darmos mais um passo que vai desembocar no conceito de falo, uma vez que é exatamente do lado deste conceito que está o complemento de vida a que faz alusão J-A. Miller na citação acima. Conceito que, desde a antiguidade até nossos dias, se apresenta como a grande imagem do fluxo vital. "Por isso Lacan pode dizer aqui, nos lembra Miller(19), que o vivo do ser do sujeito encontra seu significante no falo."(20) O paradoxo do falo se constitui exatamente no fato de ele ser, por um lado o que está pressuposto significar a vida, mas, sendo um significante, haver nele algo da morte. 
O falo será pois, o significante, a marca da conjunção do logos e do desejo, da morte e da vida. Pode-se dizer que ele é a marca da refenda do sujeito a partir da diferença que resulta da subtração do "incondicionado da demanda" à "condição absoluta do desejo". Isto vai estabelecer um "campo feito para que aí se produza o enigma que a relação sexual - pois ela é que vai ocupar esse campo fechado do desejo, é aí que o sujeito vai jogar sua sorte - provoca no sujeito ao lhe "significar" de maneira dupla: retorno da demanda que ele suscita, em demanda sobre o sujeito do desejo...."(21). 
No Seminário sobre "As formações do Inconsciente" nos deparamos com o que se pode chamar de vestimentas fálicas, as roupagens com que se apresentam os sujeitos diante do real do sexo. Sabemos que o que vai caracterizar a posição perversa como recusa da mediação simbólica, ou até mesmo diante da falha no simbólico [S(A/)], é uma extrema valorização da imagem: "se trata de uma projeção disso que não se cumpriu na ordem simbólica, sobre o eixo imaginário"(22). 
A peça "O balcão", de Jean Genet, fornece subsídios para se pensar a função da comédia através desta realização cênica onde o sujeito toma sua relação à fala não como sendo seu “affaire", mas como algo que, ao articular-se, ele mesmo, como aquele que aí goza, ... está destinado a absorver a substância, a matéria. A consequência disto é que o seu próprio significado, ou seja, "fruto da relação significante, vai surgir efetivamente sobre a cena da comédia plenamente desenvolvida (...) numa certa relação com a ordem significante (ou seja): a aparição desse significado que se chama falo."(23) 
Neste momento de sua elaboração teórica, Lacan atribuía a função de enigma, como se disse no inicio, "ao desejo como um x que desliza metonimicamente". Lembro-lhes que o falo, sendo o significante do desejo, é o que não pode ser atingido, porque "o falo ... é uma sombra (...) escorregando sempre entre os dedos"(24). 
Em seu Seminário RSI, Lacan retoma esta temática do falo para nos dizer, mais uma vez, do seu caráter essencialmente cômico. Após dizer que no horizonte de “um menos” e de “um mais” é onde se insere o gozo, ele assinala este ponto ideal, que é o falo, a essência do cômico no ser falante: "desde que se fale algo que tem uma relação ao falo, é o cômico - que nada tem a ver com o chiste. O falo é cômico como todos os cômicos - triste"(25). Esta citação de Lacan se articula, pode-se pensar, com o que ele mesmo disse 20 anos antes: "A comédia, podemos dizê-la ser a representação do fim da refeição comunitária a partir da qual a tragédia mesma foi evocada"(26). 
Este esforço para separar o cômico do chiste, já o sabemos desde Freud que, no seu texto "O chiste e sua relação com o inconsciente" assinalou que, enquanto no cômico são os muitos elementos imaginários que provocam risos, exatamente por sua relação ao ridículo com que se apresentam nas mais variadas formas de comportamento, o chiste vai se distinguir por seu elemento linguístico. Pode-se dizer que "a intenção do chiste é, antes de tudo, produzir prazer"(27) a partir de uma certa articulação significante que não deixa de inserir algo do enigma e sua resposta. 
Esta diferenciação entre o chiste e o cômico vai, também, nos auxiliar a acompanhar o desenvolvimento da peça até o ponto onde surge o desvelamento da inutilidade do uniforme fálico que os personagens utilizam (O Bispo, O General e O Juiz). O próprio ato de castrar-se, executado pelo indivíduo fantasiado de "chefe de polícia" (cuja roupa era uma pantomima do falo), deixa "claro que aquele que representa o desejo simples, o desejo puro e simples,(...) encontra seu assento, sua norma e sua redução a qualquer coisa que possa ser aceita como plenamente humana, e que só se reintegra á condição, precisamente, de se castrar, quer dizer, de fazer com que o falo seja qualquer coisa que seja, de novo, reduzida ao estado de significante ..."(28) 
O enigma não faz referência á condição do falo como um significante puro e simples, mas sim à letra, suporte material do significante, suporte da interpretação e do que mantém a borda do buraco do simbólico. É este buraco que vai produzir a fuga do sentido, ao furar o texto. Este furo, este buraco do simbólico que Lacan adjetiva de inviolável(29) tem, entre suas várias virtudes a de fazer enigma mantendo o interesse pela escritura e conferindo um poder a quem sabe decifrá-lo(30). 
O falo, no entanto, enquanto tentativa de pluralizar-se em imagens, nada mais é do que o cômico, como demonstra o estudo que faz Lacan da peça de Jean Genet e como, de alguma forma, nos diz o perverso quando expõe seu pênis ao tentar fazer frente à falta no Outro. 
Assim, do enigma ao cômico, vemos oscilar o paradoxo do falo que vai se traduzir nas mais diversas formas do que é "o coração da relação do sujeito ao significante (...) a identificação"(31). 


Notas:

15) Miller, J-A., "Silet", Seminario 94-95, inedito 

16) Laurent, E., "Enigme & Psychose", Revue de Psychanalyse, La Cause Freudianne, nº 23, pag. 43. 
17) Laurent, E. "Deficit ou énigme" in Revue de Psychanalyse, nº 23, ECF, pag. 3-4 

18) Miller, J.A., "Silet", Op.Cit 

19) Idem, "L'interpretation", seminário inédito, curso de 28/02/96. 

20) Cf. Lacan, J., in Écrits, Ed. Seuil, Paris, 1966, pag. 693. 

21) Lacan, J., "La signification du Phallus", in Ecrits, Editions du Seuil, Paris, 1966 pag. 691 

22) Miller, J. A. "Silet" op.cit., curso de 13/06/95 

23) Ibidem. 

24) Lacan, J., "Hamlet" in ORNICAR? nº 26/27, pag. 42-43. 

25) Idem, "RSI", Liçao de 11/03/75 in ORNICAR? nº 5, pag. 17. 

26) Idem, "As formaçoes do inconsciente", Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999, pag. 272. 

27) Miller, J-A., "L'interpretation", seminário 95-96, inedito, curso de 20/03/96. 

28) Lacan, J., "As formações do inconsciente", op.cit. pag. 279. 

29) Lacan, J., "RSI" Op. cit. 

30) Cf intervenção de Bernard Nominé no Seminário de J-A. Miller, curso de 20/03/96. 

31) Miller, J-A., "L'interpretation" Op. cit., curso 20/03/96.
 

 

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Sobre "O Balcão" de Jean Genet (I)

 


"A comédia não é o cômico". Com esta frase Lacan nos introduz à parte de seu Seminário dedicado a examinar "O Balcão" de Jean Genet. 
A comédia está fundamentalmente ligada ao "momento em que a representação da relação entre o homem e a mulher era objeto de um espetáculo que tinha um valor cerimonial"(1). Esta foi uma forma encontrada para representar, diante da comunidade, "a existência de um Homem como tal"(2). 

Fazendo um contraponto entre a tragédia e a comédia, Lacan vai nos remeter ao tempo do teatro grego onde a tragédia representava a relação do homem com a fala, na vertente de sua fatalidade. Já a comédia vai se apresentar em cena quando o sujeito e o homem "tentam assumir, com a fala, uma relação diferente da que existe na tragédia"(3). É neste ponto que Lacan introduz uma metáfora que é, a meu ver, muito esclarecedora, e que retomaremos, de alguma forma no final deste texto: a representação do fim do banquete comunal a partir do qual a tragédia foi evocada, quando o homem se vê como aquele que "consome tudo o que é feito presente, ali, de sua substância, de sua carne comum"(4). 

Ao colocar em cena as funções humanas em sua relação simbólica, Genet aproxima-se da linha que Lacan traçou neste Seminário. Lembro-lhes que esta linha pode ser definida, como nos diz JAMiller, a partir de um dos títulos dados a uma das lições deste Seminário: "Da imagem ao significante ..."(5). É assim que veremos desfilar, um após outro, o Bispo, "o poder conferido por Cristo à posteridade de São Pedro (...) de estabelecer a ligação e a separação entre a ordem, o pecado e o erro"(6); o Juiz, "o poder daquele que condena e castiga"(7); e o General, "o poder daquele que assume o comando nesse grande fenômeno que é a guerra"(8). 

Todos estes personagens se apresentam diante de nossos olhos dizendo da alienação do sujeito, pois eles só podem representar funções da fala das quais o sujeito nada mais é que suporte. 

Assim construída, esta peça, encenada no "Palácio das Ilusões”, deixa claro os descaminhos do Ideal do eu quando, em lugar de construir uma sublimação que traria um certo apaziguamento das "forças enraizadas no interior"(9), ela escorrega, desliza "por uma erotização da relação simbólica"(10). Só mesmo a partir de uma inversão no trajeto da imagem ao significante é que estas posições alienadas se prestam aos mais diversos frequentadores do "Palácio das Ilusões". Por isso podemos dizer que a lei da comédia se faz presente ai, ao acentuar a busca de uma resposta à questão sobre como estes ilustres gozam com estas funções(11). 

As cenas, é importante assinalar, só podem acontecer na medida em que, sendo simulacros, deixam entrever na cumplicidade dos parceiros,
a crença de que realmente estão participando. Este enlaçamento é o que vai nos dizer que o "comprazer-se em buscar a satisfação nessa
imagem (só é possível) na medida em que ela é o reflexo de uma função essencialmente significante"(12). 

É em meio a esta desordem que se introduz o que, nestas ocasiões, resume toda possibilidade da ordem: a polícia, que nesta peça será representada pelo seu chefe e que acaba, como já vimos, buscando na fantasia do falo um signo que o pudesse identificar, assim como barrete ao Bispo, o quepe ao General e a toga ao Juiz. A Escolha desta imagem, o falo, não é sem propósito. Enquanto significante primordial do desejo, portanto como significante que, uma vez recalcado, vai descompletar a articulação, deve permanecer fora, dando sustentação ao conjunto do código, possibilitando a que mensagens possam chegar a seu destinatário ao mesmo tempo que possibilita a interpretação vir a acontecer como aquela que acrescenta um sentido na medida em que ela tenta acrescentar um significante que falta. Esta função, então, é a que pode manter a ordem, pode manter uma relação do homem com a fala que o toma em sua fatalidade. 

Ao representar, em cena, toda a degradação pela qual a sociedade se define, na medida que existem brechas na articulação simbólica, Genet vai questionar a relação do homem com a função da fala, através mesmo da posta em cena da perversão, ou como me disse Eric Laurent: fazer o significante obsceno. O significante Falo surge como imagem denegando seu desaparecimento, ao mesmo tempo que satura o intervalo com espelhos. E assim procedendo ele sustenta uma critica ao "homem integro, homem real, aquele que não dúvida de que seu desejo seja capaz de realizar-se, impor-se como tal, e de maneira harmoniosa"(13). O que vai se desenrolar no palco deixa claro o
que se pode dizer da perversão: quando chega o momento em que o chefe de polícia arregimenta os perversos para que assumam, autêntica e
integralmente, as funções que encarnavam, vai se estabelecer um dialogo que é definido, por Lacan, como de "grande despudor político".
Cada um dos convocados só fazem demonstrar sua repugnância em substituir a ordem que, até então, existia: "uma coisa é gozar na intimidade, sob a proteção dos muros dessas casas (...) lugar em que a ordem é mais minuciosamente preservada, outra coisa é ficar à mercê dos vendavais ou, muito simplesmente, das responsabilidades implicadas nessas funções realmente absurdas"(14). Esta é a grande farsa. 

Em outras palavras, o que se vê aqui é como a perversão questiona a relação do sujeito com a função da fala, enquanto que, como se disse
mais acima, a tragédia que teve no teatro grego sua era grandiosa, representou a relação do homem com a fala. Esse questionamento vamos vê-lo, principalmente, na erotização a que está submetida a relação simbólica que se apresenta na forma de uma hipertrofia do imaginário. 
(Continua)

1)Lacan, J., "As formações do inconsciente", Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1999, pag. 272. 
2) Idem. 
3) Idem, pag. 273. 
4) Idem. 
5) Idem, pag. 221. 
6) Idem, pag.274. 
7) Idem. 
8) Idem. 
9) Idem. 
10) Idem, pag. 275 
11) Idem. 
12) Idem. 
13) Idem, pag. 277. 
14) Idem, pag. 278. 





sexta-feira, 6 de novembro de 2015

“A Nomeação” Sobre o nó Borromeu ou Por uma clínica das suplências (II)

Da forclusão generalizada e das suplências

Foi no seu texto sobre “A questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” que Lacan pensou numa suplência possível no “vazio repentino percebido na Verwefung inaugural”. No entanto, foi só no fim de seu ensino que ele deu a esta função toda a sua extensão.
A mudança do estatuto do Outro, no curso de seu trabalho foi o responsável por esta valorização da função de suplência pois, na sua elaboração, ele deixou de partir deste Outro para dar ênfase ao UM, quer dizer, a uma axiomática do gozo.
Nos primeiros tempos, nos tempos do “Esquema L”, bem como da “Questão Preliminar”, era da dialética do sujeito e do Outro que se tratava, como hipótese central. O Outro, então, era completo e consistente: o Outro verdadeiro e absoluto que poderia anular o sujeito e que comportava sua própria garantia. Podemos dizer que o Outro do significante era completado pelo Outro da lei, havia um Outro do Outro que fazia a lei ao Outro. Seu significante era o Nome-do-Pai: “Quer dizer (o) significante que, no Outro, enquanto lugar do significante, é o significante do Outro enquanto lugar da lei”. Em outras palavras, o Outro conteria seu próprio significante: o Outro do Outro existe.
Foi a partir do Seminário sobre a Ética que Lacan fez valer, no processo de simbolização, a absorção da Coisa no Outro. A linguagem apaga o gozo e o reabsorve, deixando um resto que é o objeto a, mais-de-gozar, irredutível a um significante.
Foi desta forma que o Outro constituiu-se em um conceito organizado em torno de um nó, um vacúolo de gozo, um ponto de extimidade. Tem-se, portanto um Outro marcado por uma falta central: (S(A/). Este ponto de extimidade representado por um significante diferente dos outros, na medida que é o significante sem os quais os outros nada representarão, mas concebido como extimo, ele mesmo, em relação aos outros.
Por isso que Outro será marcado pela inconsistência, pois somente um elemento heterogêneo poderia vir no lugar desta falta. Foi só depois desta constatação que Lacan pode escrever, em “subversão do Sujeito...” que “o Outro não existe” e que “não há Outro do Outro”.  Valorizando assim o que, verdadeiramente, funda a alteridade do Outro: o objeto a como resto não simbolizado da Coisa.
Ao fazer esta passagem, Lacan vai de uma axiomática do desejo para uma axiomática do gozo, fazendo pensar a fala não mais como veículo de comunicação, mas como veículo de gozo.
Foi neste contexto que Lacan, no Seminário “Encore” forjou o conceito da Lalangue, um simbólico disjunto do Outro e referido ao UM. Colocar assim, o acento sobre o “há do UM”, é colocar o gozo e Lalangue como prévios à linguagem como estrutura, prévios a um Outro que se apresenta, desde então problemático.
Após estas suas últimas formulações é que Lacan pode tirar as consequências da divisão do Outro (A) e da função do S(A/). Foi quando pode-se depreender a função do Nome-do-pai como um tampão desse A/. Função esta que, mesmo sendo operatória, vai deixar-se ver como um mito freudiano e desvelar-se como não única, pluralizando-se, como suplências à falência estrutural do Outro.
Em outras palavras, ao Outro falta-lhe seu próprio significante, ele é foracluido, e isto é fato de estrutura que se generaliza, portanto, como qualquer coisa “a menos” fazendo com que o Nome-do-pai apareça como algo “a mais”, como um complemento.
É neste ponto que podemos fazer entrar em cena a topologia do Nó Borromeu como um esforço para pensar a estrutura: o simbólico, fora de uma referência ao Outro, transformando-o como condição de possibilidade para se pensar a experiência analítica.
O objetivo principal de Lacan, como já vimos, foi de colocar “uma medida comum”, assim buscou abrigar o UM, o gozo, a partir dos três registros Real, Simbólico e Imaginário. Eles são registros fundamentalmente heterogêneos que suportam o ser falante, na medida em que um gozo aí se encontra encerrado.
Ao se enlaçarem, estes três registros perdem sua diferença e o nó borromeano se torna uma quarta entidade, nova: é a medida comum, mínima, de qualquer maneira a solução ideal, talvez mítica.
Em Freud, como observa Lacan, estes três registros são deixados independentes, à deriva. Isto o levou a conceber o que chamou de “realidade psíquica”, que nada mais é que o complexo de Édipo, ou seja o que veio fazer o enlaçamento dos outros três termos, dos três anéis livres: R, S. I.
O complexo de Édipo cumpre, nesta figuração de nó a quatro, o que o enlaçamento borromeano realiza implicitamente no nó de três.
Em outras palavras, podemos dizer que este quarto anel vem disfarçar o ponto de não enlaçamento que designa a foraclusão.
No Nó borromeu no entanto, mesmo estando implícito este quatro termo como vimos a pouco, é necessário um quarto anel, explicito, suplementar, que faça suplência no ponto de foraclusão, para restituir uma estrutura de enlaçamento borromeano.
Este quarto anel, refere-se à “função radical do Nome-do-Pai que é de dar um nome às coisas com todas as consequências que isso comporta, até gozar, notadamente” (Lacan, RSI). Dar um nome: é aí que “o falatório se enlaça a qualquer coisa de real”.
No nó a três tem-se uma solução perfeita, “os Nomes-do-Pai são isso, o Simbólico, o Imaginário e o Real; esses são os nomes primeiros, na medida que eles nomeiam qualquer coisa”. Isto quer dizer que qualquer um dos três, não somente é um nome, mas também enlaça os dois outros, e como terceiro traz igualmente a eficiência do enlaçamento como quarto nó implícito. 
Quando Lacan vai estruturar o nó a quatro, ele o faz complementando, fazendo suplência a um dos três na sua função primeira que é de dar nome, nomear. Dito de outra forma, dar um nome, nomear, é onde reside a suplência, isso que vai responder a S (A/), à falha do Outro.
É por isso que Lacan vai poder propor as “três formas do Nome-do-Pai”, aqueles que nomeiam o Imaginário, o Simbólico e o Real. Como se constata, “não é necessário que o simbólico tenha o privilégio dos Nomes-do-Pai, não é obrigado que a nomeação seja conjunta ao buraco do simbólico” (Lacan, RSI).
Assim Lacan acrescenta à nomeação do simbólico como sintoma, as nomeações do Imaginário como inibição e a nomeação do Real como angústia.
Pode-se, então, depreender que Lacan vai valorizar o sinthoma como quarto nó, como suplência à função do pai, como um dos Nomes-do-Pai necessários a disfarçar a falha estrutural do Outro, e realizar o enlaçamento do R, S e I.
Este quarto nó, como Lacan diz no Seminário sobre Joyce, traz um tipo de renovação do estatuto do simbólico.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

“A Nomeação”: Sobre o nó Borromeu ou Por uma clínica das suplências (I)

Sobre o nó Borromeo

É de nosso conhecimento que desde o início de seu ensinamento Lacan buscou na topologia subsídios para mostrar seus achados clínicos e teóricos. Como vamos utilizar o nó borromeu, convém esclarecer que ele é na verdade uma cadeia e que se o chamamos de nó é por um abuso de linguagem. Jeane Granon-Lafont nos esclarece que “um nó é, com efeito, formado por um único fio que apresenta um trajeto suficientemente particular para não ser reduzido a um simples anel”. A escolha destas “ rodelas de barbantes”, como Lacan as designa em seu Seminário XX, deve-se ao objetivo de homogeneizar as três consistências que os três anéis representam. Lacan faz desta possibilidade de homogeneizar o nó para estabelecer, aí, a escrita da existência.
Se num primeiro momento, Lacan fala que foi por acaso que começou a sua reflexão da cadeia borromeana, esta logo passou a adquirir a dimensão da necessidade. Esta estrutura vem escrever as relações de troca entre os três registros do Real, Simbólico e Imaginário, com o que eles aí escrevem de “medida comum”, fazendo existir aquilo de que se trata na prática analítica.
Ao nos dizer que aconselhava a “usar bestamente” sua topologia, Lacan deixa entrever o sentido de seu procedimento e escreve no Seminário RSI: “Eu somente encontrei uma forma de dar medida comum a esses três termos, Real, Simbólico e Imaginário, que é de enoda-los com o nó borromeano” ... “eu sempre soube que o nó me incitava a enunciar do Simbólico, do Imaginário e do Real alguma coisa que os homogeneizasse”. Trata-se, somente de achar como contá-los, a partir do momento em que a conta começa em três, e saber que o nó não virá somente ilustrar as relações entre estes termos, mas sim criá-las. Ao criar estas relações deixa-se claro que, mesmo que o nó carregue a marca do três, ele empresta a cada elo a unidade, o “um”, que é a “medida comum” e faz compreender suas relações no enodamento.
Estas relações, Lacan as depreende pelo que delas se define pela ex-sistência, pelo furo e pela consistência. A consistência é o laço do imaginário que lhe fornece, na medida que, como nos diz Lacan, a matéria é imaginária, nisso que ela tem de embutido no corpo, e é ao se fazerem três pela adição do imaginário que os outros dois laços se mantêm juntos. A problemática da imagem no espelho talvez venha clarear um pouco esta questão, e vem nos lembrar que para pensar o Real é necessária uma casaca de imaginário, da mesma forma que para dizer do simbólico é necessário o recurso do imaginário, na medida em que para Freud, o “pai morto” seria uma imaginarização do simbólico.
“Assim, como Lacan diz, “real elevado à potência dois”, seria preciso dizer “imaginário elevado à potência dois” para evocar sua consistência: “a consistência, para o falesser, é o que se fabrica e se inventa. Nesse caso, é o nó na medida em que o trançamos, mas justamente não é na medida em que o trançamos, que ele existe. Esta existência é o que responde ao real”. (J. Granont-Lafont).
Quanto à ex-sistência, no momento do enodamento, a consistência, a matéria de cada elo, representada pelo fio de barbante, deve entrar e sair de cada furo. Neste entrelaçamento, é a presença do terceiro que faz nodular os outros dois colocados um ao lado do outro. Lacan define este terceiro, na sua função ex-sistente aos outros dois. Ex-sistir quer dizer se situar alhures, noutra parte, se bem que a presença seja, no entanto, necessária aos outros dois como ponto de apoio. “O ex-sistente é o que gira em torno do consistente e faz intervalo”.
Lacan faz corresponder esse termo ex-sistência ao registro do real, aquilo que por definição não é simbolizado e que está fora do sentido, mas no entanto ele vai dizer que “a ex-sistência não se define senão por apagar todo o sentido”. (Vemos aí a função da interpretação como está descrita no Seminário XI).
Quanto ao furo, esta outra maneira de definir as relações no nó, Lacan vai, num primeiro momento, fazer equivaler ao real e depois ao simbólico: “a correspondência que eu tento primeiramente do furo com um real, se encontrará mais tarde condicionado à ex-sistência. mais tarde Lacan vai dizer que “nós somos conduzidos a colocar que o furo é da ordem do simbólico, o qual eu fundei do significante”.
(Continua...)

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Uma passagem forçada: A Histericização do Discurso

Eu pasmei de invejar tanta pobre criatura,
Correndo ao hiante abismo, e de alma alucinada,
Que tem no próprio sangue a embriaguez que procura
E que prefere a dor à morte e o inferno ao nada.
(O Jogo, Baudelaire)




Afirmar que todos aquele que  procuram um analista chegam a fazer uma análise, não é bem a verdade pois, o percurso de um sujeito é sempre complexo, carecendo de uma série de momentos cruciais onde passagens possam acontecer.
Estes momentos cruciais sempre foram preocupação para Freud e Lacan, que a eles se dedicaram em vários pontos de suas obras, seja ao formalizar um caso clínico, seja na tentativa de teorizar e ordenar logicamente cada um desses momentos.
Em seu texto “A Direção da Tratamento...” Lacan nos diz que um tratamento “se ordena (...) segundo um processo que vai da retificação das relações do sujeito com o real, ao desenvolvimento da transferência, depois à interpretação”.1
O que lhes proponho aqui é fazer uma articulação entre estes três momentos do ordenamento proposto por Lacan e os discurso do mestre, da Histeria e do Analista, respectivamente. A ênfase ao discurso da histeria como uma passagem forçada, para que uma análise possa acontecer, será o eixo de minha proposta.
Quando Maria me procurou para “fazer uma análise”, suas razões para tal decisão eram múltiplas: “quero me conhecer melhor já que a terapia que fiz antes não adiantou, além disso tenho alguns problemas com minha mãe e com meu namorado, sem contar que estou querendo trabalhar, sair de casa e não consigo...”
Suas queixas se desdobravam por um longo fio de um rosário infinito, sem contudo, um sofrimento qualquer vir a se enlaçar em alguma de suas reclamações. Tudo se passava como se não fosse com ela que aquelas dificuldades aconteciam, apesar dela saber muito bem todas as causas destes problemas.
Foi assim que começaram as entrevistas preliminares, este tempo fundamental no desenvolvimento da direção do tratamento.
Estas entrevistas foram logo marcadas por comentários que expressavam a diferença entre esta e a outra “terapia”: o tempo das sessões era mais curto e, principalmente, o analista quase não falava e nem fornecia orientações ou interpretações esclarecedoras.
Ao mesmo tempo em que Maria parecia pedir orientações ou interpretações esclarecedoras, a tônica da posição que ela sustentava era de quem sabia sobre seu sintoma. Ao endereçar seu pedido ao Outro ela o fazia apenas com a solicitação de que lhe fosse confirmado o que sabia.
Dito de outra forma e, desta vez utilizando a topologia dos discursos.
Posso dizer-lhes que até este ponto Maria trazia suas queixas (S1) como agente de um discurso que se dirige a Outro supostamente Saber (S2) que está ali para servi-las e do qual espera obter-se um produto (a) que, sendo do Outro, mantenha afastada, mascarada, a sua verdade. A divisão de quem fala ($).
É o discurso do Mestre fazendo o laço social.
Esta formulação deixa claro, que este é o único discurso a tornar impossível a articulação da fantasia, na medida que nesta relação do mais-de-gozar (a) com a divisão do sujeito ($) há um impedimento que é de estrutura. Relação que se apresenta como fundamentalmente interditada, na medida em que o Mestre renunciou ao gozo no momento em que se expôs à morte.
É por aí que tudo começa: a função da fala, no campo da linguagem, é definida por dois pólos: o agente e o outro, onde um significante representando um sujeito para outro significante traz como consequência um resto que, escapando à articulação significante aí permanece para dizer do que nunca foi, ao mesmo tempo que diz de uma impossibilidade da estrutura: “existe o universo do discurso (...). Porque não há o todo, nada é tudo. O tudo é o índice do conhecimento...”2
Como “o discurso que se mantém, é aquele que pode se sustentar tempo suficiente sem que haja necessidade de demandar-lhe razão de sua verdade”.3 poderíamos aí permanecer, ad infinitum, não fosse um fato simples mas de difícil consecução estar, então, operando: o silêncio do analista. Este fato estabelece uma dissimetria fundamental pois, sustentado por um desejo, marca no Outro a falta de um significante (S(A/)) e diz de um ponto de não-saber neste Outro. Isto vai jogar por terra a consistência que lhe era atribuída até então.
Os sonhos e atos falhos começam, gradativamente, a tomar a cena no lugar dos relatos “certinhos” e magistralmente preparados. Problemas de competição com o saber universitário de sua mãe ganham o centro de sua atenção e trazem o medo de que sua mãe possa morrer.
O que vemos acontecer aqui é o seguinte: Ao ser introduzido, este ponto de não-saber questiona a razão da verdade do discurso que até então se sustentava. A destituição deste Outro suposto saber  promove um giro de quarto de volta sobre a estrutura do discurso fazendo surgir, no lugar de agente, um sujeito dividido ($) entre o saber e a verdade. Sujeito dividido que agora vai dirigir-se a um terceiro a “um homem que será animado do desejo de saber”4, e que possa produzir este saber sobre o que falta para ser restaurada a consistência perdida do Outro.
“Isso que o analista institui como experiência analítica pode se dizer simplesmente – é a histerização do discurso. Dito de outra forma, é a introdução estrutural, por condições de artifício, do discurso da histeria”5 ou seja, era de se esperar que tendo o significante nós nos entendêssemos mas, no entanto, é exatamente por isso que não nos entendemos. “O significante não está feito para as relações sexuais” 6.
Desta forma, se é verdade que no inicio era o discurso do mestre enquanto o que funda a ex-sistência do inconsciente, este “aí ex-siste tanto mais ao se atestar a claras no discurso da histeria”7, desde que exista pelo menos um que se disponha a escutá-lo.
Passagem forçada no trajeto de quem se faz analisar, a histerização do discurso se apresenta como a lei, a regra do jogo.
Esta passagem, onde vemos retificada as relações do sujeito com o real, marca a entrada efetiva no segundo momento da ordenação lógica proposta por Lacan. É quando um trabalho de transferência efetivamente pode ocorrer pois, ali onde o saber falta ao Outro, surge um sujeito suposto Saber enquanto terceiro. Sujeito Suposto Saber o que? Saber o que vale esta pessoa que fala pois, “enquanto objeto ‘a’, ela é queda, queda do efeito do discurso”8 , resto e que portanto, ela não quer um mestre que se acomode aí mostrando-a como alguém que não vale a pena ser escutada.
Em outras palavras, podemos dizer, com Lacan que, “isso que no limite a histérica quer que saibamos é que a linguagem derrapa sobre a amplidão disto que ela pode abrir, como mulher, sobre o gozo. Mas isso não é o que importa à histérica. Isso que lhe imporá é que o outro, que se chama homem, saiba qual objeto precioso ela se torna neste contexto de discurso”9
Maria conseguiu um emprego. Muito animada, a princípio viu neste emprego um belo futuro. Haviam-lhe prometido sucesso rápido. Com o correr dos dias o trabalho foi ficando cada vez mais pesado, até que afinal, disse: “não era bem o que esperava”. O mal estar que esta frustração provocou foi logo apaziguado por um flerte que começou a acontecer no ambiente de trabalho. Tudo passou a girar em torno das presenças e ausências do fulano. O coração batia mais rápido, as mãos suavam e a voz sumia cada vez que ele surgia no fundo do corredor. Assim, tudo parecia caminhar bem até que, um certo dia, o “não” surgiu onde um “sim” era aguardado. A tristeza e a revolta acabaram de tomar posse do cenário. Parecia que ela não valia mais nada: o chefe não lhe escutava as queixas de excesso de trabalho e agora, o galã da firma a havia desprezado. Foi em meio a todas estas coisas que lhe chegou a notícia de que um ex-namorado, dos tempos de adolescência, havia falecido. Ao relatar este episódio e as lembranças daquela época em que se dizia feliz, exclamou: “é... não dá para voltar mais”..” Neste ponto o analista intervêm dizendo : “é ...alguma coisa se perdeu mesmo!...”
É o ato da interpretação que, preparado pelo trabalho da transferência vem marcar o 3º momento da ordenação lógica. É o ato da interpretação que, enquanto verdade específica para este sujeito visa exatamente este ponto de gozo de seu sintoma: “Estou perdida, ninguém me ama”. Com isto, mais um quarto de volta ocorre instalando como agente o objeto ‘a’ ao mesmo tempo que, deslocando o sujeito para o lugar do Outro coloca-o a trabalho para que produza um significante que diga de um saber que possa  operar enquanto verdade.
Talvez, agora, uma análise possa acontecer...


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1 – Écrits, pág. 596.
2 – Scilicet 2.3, pág. 93.
3 – Séminaire XVI, sessão de 20/11/68.
4 – Séminaire XVII, pág. 36.
5 – Séminaire XVIII, pág. 35.
6 – Séminaire XVII, pág. 36.
7 – Télévision, pág. 26.
8 – Séminaire XVII, pág. 37.
9 – Séminaire XVII, pág. 37.
BIBLIOGRAFIA

Lacan, J. – La direction de la cure et les príncipes de son pouvoir, in Écrits, 
                  Editions du Seuil. Paris, 1966.
Le Séminaire XVI – D’um Autre à l’autre.
Le Séminaire XVII – L’envers de la psychanalyse, Editions du Seuil – Paris, 1991.
Le Séminaires XIX - ... ou pire,
Savoir du psychanalyste, Inédito
Radiophonie, in Scilicet 2.3, Editions du Seuil – Paris, 1970.

Télévision, Editions du Seuil – Paris, 1974.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Da queixa ao sintoma analítico (III)

O discurso do mestre é o discurso do inconsciente. É o discurso que está o tempo todo produzindo sentido. É o discurso do sintoma. É o discurso que mantém sob a barra o sujeito e seu objeto, é o discurso em que normalmente o sujeito chega em nossos consultórios.
No discurso do mestre debaixo da barra está o desejo inconsciente do sujeito, sujeito desejo de objeto. O discurso do analista vai acontecer quando conseguirmos inverter isso, ou seja, passar para cima da barra os elementos que estão escondidos abaixo da barra no discurso do mestre.
Quando Lacan disse que o discurso do analista é o avesso do discurso do mestre, ele tinha em mente a estrutura moebiana. A banda de Moebius é aquela fita na qual se faz uma meia torção e se cola as pontas de tal maneira que podemos percorrer toda a fita sem tirar os dedos de cima dela. Ela é muito interessante porque diz do movimento do discurso do analista. A banda de Moebius tem somente um lado e uma borda , portanto diz muito bem que numa análise só tem um sujeito em questão, o analisante. Ela demonstra bem como sair do discurso do mestre para o discurso do analista  percorrendo um só lado. Assim, topologicamente o discurso do mestre está do mesmo lado do discurso do analista. Se a banda tem um lado só, pode-se chegar ao outro lado, ao seu avesso, sem sair do seu lugar. Ao fazer isso expõe-se a cena que sustenta o sujeito na vida: a cena da fantasia fundamental.
O discurso do analista é pontual porque ele é insuportável. Ninguém consegue estar frente a frente com sua verdade muito tempo e o objeto a é a verdade do falasser do sintoma: é o ser de verdade do sintoma. Lacan define o sintoma como contendo duas partes. Uma  é o ser de verdade que remete ao real da castração, e a outra é o seu invólucro formal: a cadeia de significantes, as palavras, enfim. Então, cada vez que se pronuncia uma palavra,  diz-se da fantasia fundamental. É isso que se chama estilo. A forma que cada um dá ao pouco de realidade que o circunda. 
Sabendo que a estrutura do matema dos discursos traz na sua forma a Banda de Moebius verificamos que ao possibilitar o seu giro vemos passar para cima da barra, no discurso do Analista (a - $), o que está sob a barra no discurso do Mestre ($ - a).

Importante concluirmos dizendo que este giro só acontece se sustentado pelo amor. Pelo amor de transferência. Este amor que se instaura a partir de uma suposição de saber atribuída a quem se oferece como causa. No entanto cumpre ressaltar que esta causa só se sustenta se o analista sabe que o “saber” a ele atribuído, ele não tem. Para isto é preciso fazer operar o desejo do analista. Este desejo construído em análise que propicia ao sujeito do analista ficar fora da cena. Esta é a ética que rege o encontro com um analista.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Da queixa ao sintoma analítico (II)

Temos então a seguinte situação: o sujeito chega e dirige seu pedido, sua queixa, sua demanda, a um outro sujeito qualquer ou, em outras palavras, ele chega com um significante de sua queixa e se dirige a um significante qualquer. Lacan diz que é um significante qualquer mas não é qualquer um. É um significante qualquer porque pode-se escolher qualquer um mas, no momento em que se escolhe, esse "qualquer um" deixa de ser qualquer para ser aquele: o significante da transferência. Isso porque esse significante é o que vai nos dizer do sintoma. O sintoma, este que nada mais é que uma interpretação feita pelo sujeito do desejo do Outro. Por isso o sintoma implica numa certa alienação ao Outro.
 O matema da transferência, desenhado por Lacan no texto da "Proposição de 9 de Outubro", pode ser lida da seguinte forma: Um sujeito chega ao analista trazendo consigo um significante qualquer (S) que é sua queixa, e transfere a um significante qualquer (Sq) uma suposição de saber, constituindo esse outro como “sujeito suposto saber” para que todo seu conteúdo inconsciente seja decifrado e lhe seja devolvido
Diante deste movimento, o analista tem duas possibilidades, pelo menos. Primeiro, ele pode acreditar que sabe e, segundo, ele pode ter certeza de que não sabe. Na primeira possibilidade vamos ter a Psicoterapia e, na segunda, uma possibilidade de análise.
Em 1957/58 Lacan estava seriamente empenhado em esvaziar a parafernália imaginária que os supostos freudianos fizeram com a Psicanálise. Nos anos 30, nos anos pós-guerra e principalmente nos anos 50 a Psicanálise inflou-se de imaginário de uma forma insuportável. Lacan, então, se dedicou a esvaziar esse imaginário ou, em outras palavras,  reduzir o processo analítico a certas fórmulas que ele chamou de matemas que pudessem trazer, como consequência, uma operação lógica e não uma operação imaginária. Um desses elementos é o grafo do desejo.
No grafo do desejo o s(A) significa, em linguagem lacaniana, “significação do Outro”. O sujeito procura a análise porque ele interpretou a significação que o Outro deu a ele... estou falando em interpretação porque isso diferencia do que o sujeito interpretou da realidade.  Vive-se muito mais essa realidade que é nossa interpretação do que aquilo que podemos chamar de realidade exterior. Isso que Lacan chama de significação do Outro é o que se pode chamar um sintoma.
Quando a significação do Outro falha o sujeito vai perguntar ao Outro “o que foi mesmo que você falou comigo?” “Repete o que você quer!” Neste momento o analista pode dizer, se ele acreditar que sabe: “faça assim, seja assim, faça como eu”. O analista mostra uma série de modelos sustentados em um ideal do que deveria ser para fornecer um ideal de identificação.
Seguindo o matema do Grafo do desejo, pode-se dizer que a esse sujeito lhe é oferecido uma i(a), um modelo “x” qualquer a partir do qual ele pode constituir no “m” (de moi = eu) a partir da esperança de ser igual àquele modelo. A esse respeito Lacan diz claramente que “a psicoterapia é um grande mal” porque você acaba com toda e qualquer possibilidade do sujeito que a ela se submete de vir a fazer análise algum dia. Isso porque  a ele é fornecido um modelo que reforça seu sintoma.
 Esta pode bem ser uma primeira consequência da queixa transformar-se em sintoma, ela pode transformar-se em sintoma e permanecer sintoma, e não se transforma em sintoma analítico.
Existe uma outra vertente. O sujeito encontra um analista que o acolhe em seu sofrimento. A partir daí as demandas poderão ser dirigidas àquele analista.
Escutar as demandas não implica ter que respondê-las. Aliás, longe disto. As demandas não são feitas para serem respondidas. Sabe-se que toda demanda, na verdade, é demanda de amor. E o amor? É dar o que não se tem, define muito bem o Dr. Lacan! 
Exatamente por saber da não reciprocidade amorosa - e isto o analista deve saber - , ele deve fazer silêncio para que as demandas que lhe são dirigidas possam retornar levando a própria mensagem de volta a quem demanda. Importante assinalar que esse silêncio não é qualquer um. É aquele que denota a falta de uma palavra que possa responder à demanda e que está muito bem matemizado por S(A/).
Essas duas situações aqui definidas como próprias  à uma Psicoterapia e à uma Psicanálise, podem ser ditas de outra forma. Na Psicoterapia temos dois sujeitos em questão, o sujeito que sofre e o sujeito que sabe e diz as soluções. Numa Psicanálise temos apenas um sujeito em questão: o analisando. O sujeito do analista fica fora e aí se mantém graças ao exercício do desejo do Analista. 

(Continua)

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Da queixa ao sintoma analítico (I)

Ao se tratar da clínica psicanalítica é fundamental que se fale da entrada em análise pois somente uma boa entrada pode promover uma boa saída e, uma má entrada, muitas vezes, provoca uma interrupção precoce do tratamento. É evidente que praticamos a Psicanálise desde o momento em que recebemos um candidato à analisando pela primeira vez em nosso consultório pois, o que se espera de um analista é que ele possa assumir esta condição desde este início.
Eu vou partir do sintoma. Posso definir o sintoma como “uma solução para evitar a castração”. Ressalto que nossa referência é o sujeito da linguagem, o sujeito do inconsciente, e não a pessoa ou indivíduo. Esse sujeito nasce como efeito de um menos (-). Lacan define esse (-) como “menos de gozo”. Para evitar qualquer mal entendido a vertente do gozo de que vamos tratar se refere àquele estado em que o sujeito está ali, sem existir como sujeito, mas sim como coisa.
Nestas circunstâncias, a percepção de um significante, de uma palavra que veio do outro cava, neste espaço vazio, uma extração. Retira-se um elemento e, desse lugar onde o elemento foi retirado, pode surgir ali um sujeito. Isso é o que Lacan define, de uma forma concisa e às vezes enigmática: o sujeito é a resposta do real. Isso porque no lugar onde deveria haver um significante que o designaria totalmente tem-se um vazio. Diante desse vazio que Lacan chama de Real tem-se uma resposta que é o sujeito.
Essa operação de extração de gozo do campo do Outro é uma operação que instala o que se pode denominar de mal-estar ou incômodo. Esse incômodo foi definido por Freud no “Projeto de uma Psicologia Científica” como encontro com o das Ding que produz, como consequência, uma busca incessante ali, onde algo se perdeu numa tentativa de reduzir a zero o que incomoda, dando início a uma repetição infinita.
Essa repetição Lacan chamou de automaton no Seminário 11: uma repetição que não é a repetição do mesmo. não é a repetição de um mesmo significante, mas sim, a repetição da impossibilidade. A cadeia significante constitui-se em automaton porque nela se repete a impossibilidade. O que não cessa de se não escrever.
Lacan denominou isto que não cessa de se escrever de objeto a”, ou seja, algo que escapa à tentativa do significante de apreender em suas malhas e que dele temos apenas as bordas.
Assim, pode-se dizer que a repetição acontece porque algo não cessa de não se escrever, e porque algo não cessa de não se escrever promove-se um movimento que não cessa de se escrever: a palavra. Ou seja, uma necessidade consequência do impossível. Essa necessidade nada mais é que o sintoma que nasce exatamente a partir do recalque originário, aquele que Freud definiu como o primeiro impossível da existência de um sujeito.
Esse movimento só sustenta o sujeito porque nesse “não cessa de não se escrever” fica uma promessa, a promessa de que um dia, quem sabe, isso que “não cessa de não se escrever” vai se escrever. É por isso que Lacan nos diz que quando se está na cadeia de significantes, sob o regime do automaton, pode-se eventualmente se deparar com uma tykhe, um encontro. É um encontro sempre faltoso que exige, como diz Freud, um dispêndio de energia adicional para lutar contra o desprazer original que a falta constitutiva do sujeito promoveu. Esse desprazer ou sofrimento é o que pode promover a criação do novo.
Portando, vamos ao que é importante: o sintoma é algo da ordem da necessidade que está regida pelo automaton e que pode, na sua repetição, promover uma tykhe, ou seja, um encontro; encontro este que pode propiciar uma retificação qualquer neste sintoma. É por isso que Lacan, num texto muito interessante que está nos Escritos – “De Nossos Antecedentes” – nos diz que o envelope formal do sintoma - que eu entendo como a cadeia de significantes - pode nos levar a um ponto de encontro onde o sintoma reverte-se em efeito de criação. Em outras palavras, uma análise acontece porque o sintoma propicia, na sua repetição, pontos onde uma intervenção pode acontecer e trazer um novo sujeito como efeito de criação.
Cabe agora uma pergunta: por que o sujeito procura um analista? A maioria das pessoas não procura a análise porque o sintoma delas funciona. Só se procura uma análise quando o sintoma deixa de funcionar. Esse é o momento em que acontece uma conjunção entre queixa e sofrimento.
Nós conhecemos um grande número de pessoas que passa a vida se queixando e não aceita nenhuma indicação de análise. Por que isso? Porque, como diz Lacan, o homem é feliz. O homem é feliz porque ele se satisfaz no sofrimento. Traduzindo, ele se satisfaz porque está sob a regência de uma pulsão e não de instintos, portanto, ele se satisfaz com qualquer coisa. Ele se satisfaz com o fato da pulsão fazer o seu trajeto. É só isso que interessa ao homem, não lhe importa um objetivo ou um sentido a alcançar.
A diferença entre a pulsão e o instinto é que o instinto não se satisfaz se não tiver o seu objeto. Quando  se está com fome não nos interessa o que comer, um pedaço de pão serve. Agora, quando se está sob a regência da pulsão, quando a fome não está se sobrepondo à pulsão oral enquanto elemento da necessidade, do instinto, pode-se, perfeitamente, ter prazer em assentar à mesa de um restaurante e escolher o cardápio. Esse é o exemplo que Lacan nos dá no Seminário 11 para dizer que à pulsão só interessa o percurso. Imaginem o cardápio como o campo do Outro. O sujeito passa por ele e escolhe seus significantes e fica satisfeito só com o fato de escolher.
A pulsão diferencia-se do instinto porque à pulsão não interessa o objeto. Freud descobriu isso a partir das pulsões sexuais e sabemos muito bem que a diferenciação da via da pulsão e do instinto é clara. Basta observarmos as escolhas sexuais. O fetichismo, por exemplo.
O sujeito busca uma análise, portanto, quando seu sintoma falha. O que esse sujeito busca é recolocar o sintoma no lugar onde estava antes, fazendo-o funcionar como antes. Assim uma demanda de análise acontece no momento em que uma queixa se associa a um sofrimento. Na verdade, o que acontece é um pedido a uma outra pessoa, a um outro sujeito que ele escolhe da seguinte forma: “estou aqui porque eu percebi que você sabe, porque eu acho que você sabe e, como eu não quero saber, eu faço uma suposição de saber a você mas, para isso você vai ter que restituir meu sintoma ao ponto em que ele me dava satisfação”. Em outras palavras, é assim que chegam os candidatos à análise: quando o seu sintoma falha e ele procura alguém, qualquer um, a quem ele empresta um saber sustentado por um traço que ele acredita vai restituir-lhe um sintoma que funciona. 
É assim que se instala o que chamamos  de transferência. Em outras palavras, a criação de um sujeito suposto saber restituir ao seu estado anterior um sintoma que deixou de funcionar.

(Continua)

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Visitando o Seminário XI: o amor, a pulsão e o desejo (II)

Quanto ao que tantas vezes se fala: liquidar a transferência, será que na verdade o que  isto aponta é para liquidar o sujeito suposto saber?
Este sujeito suposto saber alguma coisa de você, mas que na verdade não sabe nada, pode ser considerado liquidado no momento quando, ao final da análise ele começa exatamente, sobre você pelo menos, saber um pouco. “É pois no momento onde ele toma mais  consistência,  que o sujeito suposto saber deverá ser suposto vaporizar. ... se o termo liquidação tem um sentido, a liquidação permanente do que se trata é deste engano por onde a transferência tende a se exercer no sentido do fechamento do inconsciente.”  Este mecanismo se refere à relação narcísica, por onde o sujeito se faz amável. “De sua referência àquele que deve lhe amar, ele tenta induzir o Outro numa relação de miragem onde ele o convence de ser amável.”
A identificação especular, imediata é apenas a sustentação da identificação que está em jogo aqui. Ela sustenta a perspectiva do sujeito no campo do Outro, de onde a identificação especular pode ser vista sob um aspecto satisfatório. “O ponto do Ideal do eu de
onde o sujeito se verá, como se diz, visto pelo outro - isso que lhe permitirá de se suportar numa situação dual, para ele satisfatória do ponto de vista do amor. Entanto que miragem especular, o amor tem a essência de engano.” É aqui que se instala o único significante necessário a introduzir uma perspectiva centrada sobre o ponto do Ideal: “I”. Este ponto, para que possa se tornar o ponto de visada tem necessariamente de se referir ao objeto ‘a’, desta forma, teremos neste ponto  onde se instala  o sujeito suposto saber um I(a). 
É nesta convergência que a análise é chamada pela sua face de engano na transferência que algo de paradoxal  acontece: a descoberta do analista. Isto só é compreensível se nós o situamos na ordem da relação de alienação. No entanto a visada do analisado é algo  para além disto que se apresenta como traço de onde  ele poderá ser visto como amável. Portanto é como se o  analisado dissesse a seu parceiro, ao analista: Eu te  amo, mas, porque inexplicavelmente eu amo em ti qualquer coisa mais do que tu - o objeto ‘a’, eu te mutilo.”  Podemos continuar com esta suposta fala do paciente que, apesar do acento oral, nada tem a ver com a amamentação, mas sim com a mutilação: Eu me dou a ti, mas este dom de minha pessoa - mistério! se transforma inexplicavelmente em um presente de merda.
Quando esta virada é obtida, ao termo da elucidação interpretativa, compreende-se a vertigem da pagina branca, desta barragem sintomática de todo acesso ao Outro.
Podemos instalar aqui o primeiro andar do Grafo:
s(A) ————-> A
O que se passa quando um sujeito começa a falar ao analista: na verdade é a ele que oferecida qualquer coisa que vai, de início, necessariamente,se formar em demanda. Mas o que o sujeito demanda, já que ele  sabe que, qualquer que seja seu apetite, quaisquer que  sejam suas necessidades, ninguém encontrará  aí satisfação, senão a de aí organizar seu menu.
A fábula que Lacan conta do sujeito que para diante de um menu em chinês e demanda que lhe traduzam. Depois, mesmo tendo em mãos a tradução, ele, não conhecendo o que lhe é oferecido, demanda finalmente:  “aconselhe-me isso quer dizer - que é que eu desejo aí dentro, é você quem sabe. Se minha fábula quer dizer  alguma coisa, é porque o desejo alimentar tem um outro  sentido que a alimentação. Ele é aqui o suporte e o símbolo da dimensão do sexual, único a estar rejeitado do psiquismo. A pulsão em sua relação ao objeto parcial está aí, subjacente.
O  analista, não é suficiente que ele suporte a função de Tirésias, é preciso ainda, como o diz Apollinario, que ele tenha mamas. “Eu quero dizer que a operação e a manobra da transferência são reguladas de maneira a manter a distância entre o ponto de onde o sujeito se vê amável, - e este outro ponto onde o sujeito se vê causado como falta pelo ‘a’, e onde ‘a’ vem tampar a brecha que constitui a divisão inaugural do sujeito.
O  pequeno ‘a’ não ultrapassa jamais esta brecha.
Reportem-se, como ao termo o mais característico a apreender a função própria do objeto ‘a’, ao olhar. Este ‘a’ se apresenta  justamente, no campo da miragem da  função narcísica do desejo, como o objeto ilegal, se podemos dizer, que permanece atravessado na garganta do significante. É neste ponto de falta que o sujeito tem a se reconhecer.
Se  tomamos o oito interior como a figura topológica que melhor diz desta situação que acabamos de  descrever,  vamos verificar que uma linha atravessa a curva por um ponto a ser determinado. Esta linha travessa, é para nos isso que pode simbolizar a função da identificação.
Todo trabalho que conduz o sujeito, que se diz em análise, a orientar seu propósito no sentido da resistência da transferência, do engano do amor, bem como o da agressão - acontece algo do fechamento,  demonstrado  pela própria curva que se espirala em
direção ao centro: a identificação como conceito de fim de análise. 
- Há um para-além desta identificação, e este para-além
é definido pela relação e a distância do objeto ‘a’ ao grande “I” idealista da identificação.
-  Há uma diferença essencial entre o objeto definido
como narcísico, o i(a), e a função do 'a'.
- Freud dá assim seu estatuto à hipnose ao superpor, no mesmo lugar, o objeto ‘a’ como tal e essa referência significante que se chama o ideal do eu.
-  Definir a hipnose pela confusão, em um ponto, do significante ideal  onde se referência o sujeito com o objeto ‘a’, é a definição estrutural mais segura que se avançou.
- Distinguir a hipnose da análise: a mola fundamental da operação analítica é a manutenção da distância entre o “I” e o‘a’.
-  se a transferência é isso que, da pulsão, afasta a demanda, o desejo do analista é isso que aí retorna a demanda. E por esta via, ele isola o ‘a’, ele o coloca à maior distância possível do “I” que ele, o analista, é chamado a encarnar. É desta idealização que o analista deve cair para ser o suporte do ‘a’ separador, na medida em que seu desejo lhe permite, numa  hipnose ao avesso, de  encarnar, ele o hipnotizado.
- É para-além da função do ‘a’ que a curva se fecha, ai onde ela não é  jamais  dita, no que concerne à saída  da análise. A saber, após a distinção do sujeito em relação ao ‘a’, a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão.
- Isto só é abordável do lado do analista, na medida que lhe é exigido ter precisamente atravessado na sua totalidade o ciclo da experiência analítica.
Só há uma psicanálise, a psicanálise didática - isso  quer dizer uma psicanálise que concluiu esta curva até o seu termo. A curva deverá ser percorrida muitas vezes - este é o durcharbeiten.
-  A  transferência se exerce no sentido de levar a demanda à identificação. É na medida que o desejo do analista, que permanece um x, vai no sentido exatamente contrário à identificação, que a ultrapassagem do plano da identificação é possível, pelo intermédio da separação do sujeito na  experiência. A experiência do sujeito é assim restabelecida ao plano onde pode se apresentar, da realidade do inconsciente, a pulsão.
- O sacrifício significa que, no objeto de nossos desejos, ensaiamos encontrar o testemunho da presença do desejo deste Outro que eu chamo aqui o Deus obscuro.
Spinoza disse: o desejo é a essência do homem - quando ele institui este desejo na dependência radical da universalidade dos atributos divinos, que só é  pensável através da função do significante. Kant sustenta, de alguma forma a lei moral a um extremo que
podemos dizer que ele preconiza o desejo em estado  puro sacrificando, com isto o objeto amoroso da suavidade humana - não somente ao rejeitar o objeto patológico, mas o seu sacrifício e a sua morte. Por isso Lacan escreveu Kant com Sade. 
- O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado  ao significante  primordial,  o sujeito vem pela primeira vez em posição de aí se sujeitar. Aí somente pode surgir a significação de um amor sem limite, porque ele está fora dos limites da lei, onde somente ele pode viver.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Visitando o Seminário XI: o amor, a pulsão e o desejo (I)

À pergunta que lhe fez M. Safouan sobre a diferença entre o objeto na pulsão e no desejo, Lacan responde que, na verdade  trata-se apenas de uma questão de terminologia. “Os objetos que estão no campo do  Lust  tem uma relação tão fundamentalmente narcísica com o sujeito, que ... o mistério da pretensa regressão do amor,  na identificação, tem sua razão na simetria desses dois campos: Lust e Lust-Ich. O que não se pode guardar fora, tem-se sempre a imagem, dentro:  a identificação ao objeto de amor.” Assim Lacan define, em poucas palavras o “objeto de amor”.
No entanto,  há uma diferença fundamental  entre você dizer “eu amo um guisado de carneiro”  e “eu amo fulana de tal”.  Esta diferença não está, nem na forma, nem no fato de você dizer, mas sim no fato de você poder dizer isto à fulana de tal.
A bela açougueira ama o caviar, mas ela não o quer. É por isso que ela o deseja. “Compreender que o objeto do desejo, é a causa do desejo, e esse objeto causa do desejo, é o objeto da pulsão - quer dizer o objeto em torno do qual gira a pulsão. Não quer dizer que o desejo se enganche ao objeto da pulsão - o desejo aí faz volta,  na medida em que ele está agindo na  pulsão. Mas nem todos os desejos, forçosamente agem na pulsão. Há também os desejo vazios, os desejos tolos, que partem justamente disso - trata-se do desejo disso que, p. ex. você está se defendendo.  ... o que não deixa você
fazer outra coisa senão aí pensar.
Lacan vai trabalhar o que ele considera o eixo, uma  noção fundamental deste seminário XI: a dustuchia, o mal-encontro. E ele o faz começando por interrogar “qual é ordem de verdade que nossa práxis engendra?”
Para tentar responder esta pergunta, ele percorreu os quatro conceitos de base: o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão. Mas é a exploração do conceito de transferência, que encerra este seminário, que podemos colocar, com Lacan, a questão que vai
nortear este último capítulo: “como nos assegurar que não estamos na impostura?” 
Todo o caminho feito para diferenciar o objeto de amor,  do objeto na pulsão e no desejo visa exatamente fazer avançar o que há de verdade na práxis psicanalítica. 
Esta colocação em questão da análise faz sentido se levarmos avante o que está em suspenso não só na  opinião, mas na vida íntima de cada psicanalista, a  impostura plena, contra a qual o psicanalista se arma de um certo número de cerimonias, de formas de ritos.
Este questionamento repete o que os Homens das luzes, que também foram os homens do prazer, fizeram quando questionaram a religião como uma impostura, no século XVI. Isto não impediu que a religião goze ainda de um respeito universal. 
O que se coloca neste ponto é a  crença, que  impõe  uma alienação fundamental. “É só no momento onde a significação da crença parece, mais profundamente, se esvanecer, que o ser do sujeito traz à luz o que seria, falando propriamente, a realidade desta crença”.
O final da Idade Média foi marcado por uma separação entre a ciência e a religião, tirando aquela dos grilhões da fé. Foi São Tomás de Aquino quem abriu as portas para que pudéssemos sair da Igreja, da prática de uma alienação fundamental na qual de sustenta toda crença, ao retomar Aristoteles na  tentativa de cristianizá-lo,
buscando a grande síntese da fé e do conhecimento. O que propiciou esta associação foi exatamente o fato de Aristoteles acreditar na causalidade. Assim, tanto para São Tomás, quanto para Aristoteles, podemos dizer que há uma causa primordial que coloca em marcha todos os processos da natureza.
É porque a ciência se situa neste ponto preciso da separação é que ela pôde sustentar o modo de existência do sábio, do homem da ciência. Ameaçado,  então, pela  religião, o  cientista teve que se manter ao abrigo de questões que a própria ciência lhe colocava. Isto do ponto de vista social, já que quanto ao estatuto a dar ao corpo da aquisição cientifica, era uma tarefa mais simples. 
“Este corpo da ciência, só podemos conceber o alcance,
ao reconhecer que ele é, na relação subjetiva, o equivalente a isso que chamei aqui o objeto pequeno ‘a’.”
Por isso é que à questão do que é, na psicanálise, redutível ou não à ciência se explica, em efeito, num para-além da  ciência  - tomamos A ciência aqui no sentido moderno, a partir de Descartes.
Este para-além é o que pode levar a psicanálise a ser classificada no grau da Igreja, portanto, como uma religião.
A única maneira de abordar este problema é de partir disso que a religião, entre os modos do homem de colocar a questão de sua existência no  mundo, e mais  além, a  religião como  modo  de subsistência  do sujeito  que  se  interroga, se  distingue  por  uma dimensão que lhe é própria, e que é marcada por um esquecimento. 
Aí  é que  entra  o sacramento, como algo operatório.   “Não podemos evocar esta dimensão operatória sem percebermos que no interior da religião, e por razões perfeitamente definidas - separação, impotência, de nossa razão, de nossa finitude - está isso que é marcado  pelo esquecimento”.
Este esquecimento também marca a análise que encontra, na cerimônia, no ritual, o que podemos chamar de mesma face vazia.
“Mas a psicanálise não é uma religião. Ela  procede do
mesmo estatuto que A ciência. Ela se engaja na falta central onde o sujeito se experimenta como desejo. Ela tem o mesmo estatuto mediador, de aventura, na brecha aberta no centro da dialética do  sujeito e do Outro. Ela não tem nada a esquecer, pois ela não implica nenhum reconhecimento de alguma substância sobre a qual ela pretende operar, nem mesmo sobre a sexualidade.”
Aliás, sobre a sexualidade ela opera quase nada, ainda não se inventou nada de novo à operação sexual. “A psicanálise só toca a sexualidade na medida em que, sob a forma da pulsão, ela se manifesta nos desfiladeiros do significante, onde se constitui a dialética do sujeito no duplo tempo da alienação e da separação.  ...  a psicanálise não tem, sobre o campo da sexualidade  ...  promessas, ela não tem porque não é seu terreno.”