Uma cena que envolveu o ato de escrever e um olhar definiram um ponto de fixação de gozo, determinando um caminho e estabelecendo uma forma sintomática.
A busca da satisfação passava pelo conquista de ideais determinados pela demanda do Outro que, na impossibilidade de serem atendidas, deixavam permanecer um resto que se repetia no olhar de uma mulher. A marca da falta, presente neste olhar, era buscada como único sinal da existência de um Outro que pudesse ser inscrito na possibilidade da relação sexual. Sintoma que se fez valer, criando uma série cujo ponto de conclusão era postergado infinitamente.
Lacan nos diz que “O Outro é uma matriz com duas entradas” . O objeto pequeno “a” constitui uma destas entradas. E a outra é o Um do significante. Dissolver a presença deste Outro era fundamental para que o sujeito pudesse se livrar das diretrizes que determinavam a fixação do circuito pulsional.
O sintoma, por comportar um efeito de sentido, sofre a ação da interpretação. O seu valor de gozo, no entanto, é antinômico ao sentido, só se deixando apreender pelo equívoco, de onde se deduz a função da letra. A redução do sintoma à letra é uma forma de renovar o estatuto do simbólico, resumindo a pulsão à função de furo.
Por isso, a interpretação do analista pôde apontar o vazio e, assim, esclarecer o circuito que delimitava o objeto e que estava velado pela interpretação que o inconsciente havia feito do encontro traumático com o Outro sexo.
Este objeto, desde o congelamento do sentido na cena da fantasia fundamental, passou ser incrustado em todos aqueles que apresentassem um traço que pudesse repetir a cena fundamental, nos dizendo de um ponto de fixação pulsional. Ora, a pulsão é a força real da fantasia ao mesmo tempo que denuncia o limite do sintoma à ação do simbólico. O resto que escapa, foge, retorna sob a forma de mal estar e relança o vetor pulsional sempre na direção determinada pelo imperativo do super-eu. Desfazer este circuito, devolvendo ao objeto sua característica de ser qualquer um, mobilizando o seu valor de gozo é um dos objetivos de uma análise.
Neste seu objetivo, a estratégia da qual se utiliza a psicanálise consiste em oferecer, àquele a busca como solução, a possibilidade de que esta cena se repita na transferência ao instalar, no ponto de não saber, um sujeito suposto saber da significação de seu sofrimento. Esta estratégia, se utiliza do fato de que o “inconsciente existe e sua existência se sustenta, exatamente no fato da inexistência da relação sexual e que a sexualidade só se representa no inconsciente pela pulsão”. Utilizando-se do objeto pequeno ‘a’, enquanto agalma, pode-se ter entrada ao Outro, fazendo possível a construção desta cena fundamental, a partir mesmo da determinação de uma constante através da qual o sujeito se relaciona ao real do gozo. Balizada por esta construção, uma interpretação operou separando S1 do S2 e criou um intervalo onde reinava a opacidade própria do gozo do sintoma. Este foi o momento em que aconteceu a produção de um significante que indexou a falta, um nome que estabeleceu novos rumos, fazendo desaparecer os pontos de suspensão sintomáticas e fazendo intervir a letra como borda ao real.
O amor, resposta ao real da não relação sexual, sustentou o trabalho da transferência nesta relação ao Outro do saber, e se esvaziou pela ação da interpretação que desfez o mistério da diferença sexual. Este foi o momento em que o “analisante fez do objeto ‘a’ o representante da representação de seu analista”, abrindo uma nova relação ao saber e ao consentimento com seu modo próprio de gozo.
Esta passagem estabeleceu uma subversão do sintoma que, a partir de então, passou a se sustentar na alienação, não mais a um Outro do saber, um Outro sem barra, como define Lacan, mas sim ao Outro barrado, marcado pelo silêncio da pulsão. Podemos dizer que aconteceu uma extração do objeto “a”, como causa de desejo, a partir do gozo que sustentava o sintoma. Como consequência o sujeito, por querer o que deseja, assumiu uma responsabilidade onde antes se esperava uma garantia. Responsabilidade que se verifica como a única posição política possível. Responsabilidade definida, por J-A. Miller da seguinte forma: “Se tudo fosse calculado, então não teríamos mais responsabilidade. Há uma responsabilidade, justamente, porque há um furo e que é necessário cobri-lo pelo ato, decidindo-se em função de seu julgamento íntimo”.
Onde havia o trabalho de transferência, portanto, aconteceu a transferência de trabalho, dizendo de uma nova aliança com a pulsão. Esta nova aliança só pôde acontecer pela revitalização da marca do Nome próprio propiciando um “saber aí fazer com o sintoma”. “Saber aí fazer com o sintoma” se constitui numa das fórmulas possíveis da liberdade. “O ‘aí’ marca a suspensão de um ser que vai nomear o saber ou o fazer. É um ser que nomeia o ‘aí’ como o que vai para além de seu nome próprio, um nome para além da imagem de seu nome próprio. (...) É exatamente do nome próprio que nos fala Lacan a partir da fórmula “saber aí fazer com seu sintoma” .
Produzido um nome, retificado o circuito pulsional, foi possível dizer ao analista que o endereçamento do sujeito não mais se dirigia a ele, mas sim à Escola, estabelecendo os parâmetros de uma nova parceria.
Esta nova parceria só é possível depois da extração do objeto ‘a’ que, até então estava incrustado no Outro, sustentado por um significante qualquer, na esperança de obter uma resposta para o que ele é. A verdade é que só temos acesso ao nosso ser como fato do “dito”. Cito Lacan, no Seminário XX, para explicitar que a “única certeza do sujeito, certeza cartesiana, é esse significante da existência, a cópula do verbo ser, ‘ele é’, com a condição de estar separado de todo predicado. Se eu não estou amputado pelo conjunto de significantes pelos quais eu me designo, é porque eu já estou amputado de meu ser de gozo”.
O final de análise leva o sujeito leva o sujeito a abandonar, exatamente, esta crença de que um significante possa sustentá-lo enquanto ser. Esta destituição subjetiva leva ao fim a crença em um reino do Nome-do-Pai. Sabemos que Lacan adotou esta expressão, “nome-do-pai” como uma forma de afirmar o ponto de estôfo, uma espécie de garantia do grande Outro. Sabemos também que ele não se fixou a esta teorização, pois, ao construir mais tarde o matema S(A/) para nos dizer que o Outro não existe ele “confirmava o que estava previsto na pluralização dos nomes-do-pai. Este declínio do ‘reino do nome do pai’, coincidente com a inexistência do Outro, nos leva a abandonarmos a idéia do um e do múltiplo, de Deus Pai e suas criaturas para entrarmos numa era multipolar.
Poderíamos dizer, então, que esta nova parceria se traduz na transformação do trabalho de transferência em transferência de trabalho?
Esta articulação esclarece por que depois da análise onde o analisante, graças ao trabalho da transferência, tendo subjetivado suficientemente os significantes familiares aos quais ele estava assujeitado, poderá continuar seu caminho, subjetivando os significantes do Outro numa transferência de trabalho.
Consequência da interpretação analítica que visa exatamente este ponto onde não existe um Outro que possa responder a esta nova posição do sujeito, posição esta que permite referenciar seu ser que faz objeção ao saber. Livre, então, da angústia uma nova relação ao Outro barrado pode ser estabelecida.
Esta passagem poderá ser mostrada no Grafo do Desejo, se fizermos deslocar o que se passa no andar inferior s(A) - (A) para incluirmos o S(A/) no andar superior. Poderíamos dizer, com J-A Miller, que neste momento haverá uma alienação ao Outro barrado, o que permite uma relação especial à Escola enquanto nova parceria. Se levar em conta a idéia proposta por J-A Miller de um “real da Escola como experiência”, o que ele propõe é um lugar específico para a Escola e uma dupla relação, de cada um entre nós e a este lugar: “uma relação ao mesmo tempo de identificação, ao S1 e libidinal, ao ‘a’.
Estaria nesta identificação ao objeto ‘a’ o que pode ser considerado uma nova aliança pulsional, na medida que a travessia da fantasia, separando “$” de “a” extrai o objeto causa de gozo, dando lugar ao que J-A Miller denominou de uma autoridade autêntica (“que depende do foro íntimo de cada um”)