Nascido em Viena, com o século, Ernst Kris desde muito cedo fez serem reconhecidas sua inteligência e capacidade intuitiva-descritiva. Como historiador de arte, venceu as fronteiras da Europa quando, aos 27 anos, publicou um catálogo sobre camafeus e entalhes da Renascença Italiana.
Mas foi o casamento com a filha de Oskar Rie, colaborador de Freud , que o faz aproximar-se da psicanálise. Rapidamente, E. Kris, adquiriu a confiança do mestre, que, em 1936, lhe confiou, juntamente com Anna e Martin Freud, a leitura dos manuscritos do polêmico texto “Moisés e o Monoteísmo”.
Após sua análise com Anna Freud iniciou a prática de psicanálise com crianças, pois era o que se autorizava, em Viena, aos leigos, praticantes da psicanálise. Nesta época seguia os seminários de H. Deutch e W. Reich. Data deste tempo o estudo: “Um escultor psicótico do século XVIII”, texto que será objeto de nossos comentários. Este estudo, uma biografia de artista, é um bom exemplo do trabalho ao qual E. Kris se dedicou desde os seus primeiros contatos com a psicanálise: associar psicanálise e arte. Esta associação nos remete à pertinência da pergunta de J. Adam em sua biografia de E. Kris: “será possível servir a dois mestres e passar de um a outro, da arte à psicanálise, sem desfalcar as duas disciplinas e desnaturar seu núcleo essencial?”
Com a invasão nazista, E. Kris, acompanha Freud a Londres e, em 1940, muda-se para Nova York, onde vai criar, juntamente com R. Lowenstein e H. Hartmann o que veio a ser conhecido como Psicologia do Ego. Com esta teoria, que se baseia numa abordagem explicitamente genética do psiquismo, o “homem de juízo reto”, conseguiu conciliar o rigor das virtudes morais com o liberalismo triunfante do mundo ocidental.
E. Kris, nos entanto, somente veio ocupar o trono da psicanálise americana após o reconhecimento público de Anna Freud que, por volta dos anos 50, o autorizou a editar, com Marie Bonaparte, os escritos inéditos de Freud a Fliess: “As Origens da Psicanálise”.
A partir deste momento, Kris sustentou por quatro anos um seminário com M.Mahler, E. Jacobson, P. Greenacre e A. Reich, entre outros, onde foram discutidos oito casos clínicos de pacientes que apresentaram dons artísticos precoces.
Muito provavelmente, devido à sua formação como historiador, E. Kris sempre colocou a metodologia acima do achado e o inaudito da descoberta freudiana. Uma aposição que Freud não teria apreciado, ele que gostava de dizer que “os metodologistas me fazem pensar nas pessoas que passam o tempo a limpar os óculos, sem jamais achar a ocasião de utilizá-los...”.
2 - A psicologia do Ego
E.Kris, sempre levou em conta o que teria sido formulado nos trabalhos de Freud sobre técnica, deixando claro que houve uma precedência das formulações técnicas sobre as teóricas. Precedência esta que , conforme nos diz, “se estendeu-se por todo o desenvolvimento de Freud”... desde os “Estudos Sobre Histeria” quando Freud escreveu sobre técnica deixando a Breuer a tarefa da teoria” .
Toda a técnica da Psicologia do Ego vai se sustentar na recomendação, feita por Freud de que a análise deve começar pela superfície, e a resistência ser analisada antes da interpretação dos conteúdos. Estes princípios básicos nos levam a compreender que, interpretar as resistências não se refere apenas à sua existência e determina sua causa, mas afirma que “a resistência não é simplesmente um ‘obstáculo’ para a análise, mas sim parte da superfície psíquica que tem de ser explorada.”.
Partindo do que Freud disse, nos seus últimos trabalhos: a interpretação só poderá ser sabida como verdadeira pela reação do paciente, E. Kris vai enfatizar a existência de uma área de cooperação entre analista e paciente. Esta é a área de autonomia do ego, a mesma que sustenta o trabalho do ego do artista quando,durante o processo de criação, vai acontecer uma regressão parcial e temporária. É esta parte autônoma do ego que vai ser utilizada para estabelecer um contato com o público despertando sua participação e promovendo uma subseqüente identificação com o artista.
A identificação, pedra angular da teorização da Psicologia do Ego, vai se explicitar quando lemos que se espera que “uma interpretação enfatize o mecanismo de identificação, não apenas por ser a mais ampla, mas também porque pode abrir o maior número de novas possibilidades e ser a interpretação que o paciente pode mais facilmente aplicar a si-mesmo”.
3 - “Um escultor psicótico do século dezoito”
“Frans Xaver Messerchmidt, nascido em 1736, em Wiensensteig, Alemanha, apresentou um talento precoce e decisivo para uma carreira artística que teve a influência de dois tios, escultores famosos.
Entre fatos que marcaram seu caminho, cito o seguinte: após ter sido nomeado assistente na seção de escultura da Academia de Viena, Messerschmidt adoeceu: Esquizofrenia Paranóide.
No final de sua vida, Messerschmidt foi gradativamente abandonando as encomendas dos clientes e protetores, para iniciar uma série de bustos e cabeças masculinas, esculpidas em tamanho natural. Mudou-se para Bratislava, e passou a trabalhar somente nas cabeças e bustos, de forma tal que mais de sessenta foram encontradas em seu atelier, após sua morte. Adquiriu uma casa próxima ao cemitério, onde recebia os turistas e apreciadores de artes que não se deixavam abater pelos inconvenientes da viagem e da vizinhança. No entanto, várias vezes Messerschimdt recusava a recebê-los ou a mostrar-lhes suas esculturas. Como conseqüência, cultivava o sentimento de que não era suficientemente reconhecido e ameaçava destruir suas obras. Acredita-se até que algumas foram realmente destruídas. Morreu de pneumonia em 1783, com 47 anos de idade.
Suas esculturas, consideradas durante o século XIX como estudos de fisionomia e traços de caráter ou como representações das paixões humanas, foram batizadas com títulos que pretendiam traduzir as expressões dos rostos.
A tentativa de Kris, no texto em questão é, partindo “das instâncias freudianas de conceitos a priori, da organização psíquica” e dos dados biográficos de amigos do artista, compreender a intenção de Messerschmidt nas produções das expressões faciais. Como nos lembra Jacques Adam, Lacan criticou na prática de E. Kris, exatamente o princípio que afirmava que “o paciente jamais tenha o sentimento de que o analista não compreende. Que, pelo contrário, o paciente tenha a todo momento a impressão de que o analista o acompanha nas profundezas de seu imaginário, o que torna o trabalho da transferência possível”. Buscando esta compreensão, E. Kris, vai percorrer, minuciosamente, os nomes dados às imagens para nos dizer que apenas duas denominações foram adequadas: “O sono tranqüilo” e “O Bocejador”.
Na busca de subsídios para melhor interpretar o estilo e as nuances da obra de Messerschmidt, E. Kris vai em busca das influências que o artista teria sofrido, e conclui que foi a corrente que “se esforçava em mostrar como a face humana sofre deformações diante de diferentes experiências”. O objetivo do escultor era representar as transformações dos músculos da face no curso de diferentes funções como bocejar ou dormir. “Ele não estava interessado na representação das emoções”.
Nas minúcias das descrições das obras, Kris vai passando das “distorções de musculaturas” para as “constelações mímicas que se repetem em inúmeras variações”, até chegar nas “deformações que atingem o nariz”, para concluir que a “careta” é “um movimento expressivo malogrado”, que nos diz de uma tendência reprimida que interfere com a seqüência da expressão intencionada - p.ex., o sorriso de alguém que dá os pêsames. A constelação mímica dos bustos de Messerschmidt pertence pois à categoria das caretas, das “deformações ou alterações da fisionomia”, com a ressalva que “no seu caso são manifestações de processos inconscientes” que vão nos surpreender “se examinarmos a série completa dos bustos, com seus ares rígidos e o vazio de suas expressões.”
Foi durante uma visita de F. Nicolai, amigo do artista, à sua casa, que este lhe confessou que os demônios lhe visitavam, especialmente à noite. Felizmente, por causa de sua vida casta, dizia Messerschmidt, ele podia viver em bons termos com eles. O demônio da proporção, afirma, o inveja pois, ele, quase atingiu a perfeição na proporção. Esta é a explicação do artista para o fato de ser acometido de dores no abdome e nas pernas quando trabalhava, em “seus mármores ou bronzes”, numa certa parte do rosto “que é semelhante a uma certa parte na região baixa do corpo”. Com este recorte da vida de Messerschmidt , E. Kris nos diz de sua perspicácia clínica, se associarmos o que disse, ao que hoje sabemos, com Lacan, ser a impossibilidade da proporção sexual. O aparecimento dos demônios faz parte da tentativa do psicótico de sustentar um delírio onde o um se estrutura mantendo, ou melhor tentando manter, fora, longe, toda possibilidade de denotação da falta estrutural, sob pena de ter sua frágil estabilidade fragmentada.
No entanto, apesar desta aproximação que faz E. Kris, a falta de sustentação teórica promove um deslizamento pelo viés do sentido, deixando escapar o que há de estrutural.
Continuando seu trabalho, E. Kris vai destacar uma característica dominante na série de cabeças produzidas por Messerschmidt: a sua uniformidade, para dizer que todas as tentativas para “interpretar a expressão” são logo abandonadas pois a constelação mímica é imediatamente reconhecida como uma careta... A impressão que se tem é que a capacidade de criação do artista foi comprometida por alguma limitação e que “a espontaneidade deu lugar à monotonia... ”. Neste ponto é impossível não associarmos esta descrição à formulação teórica de Lacan que afirma ser o psicótico o mestre do significante, resumindo, sua produção a um enxame de S1, onde nenhum sentido se sustenta pelo deslizamento significante, o que faz com que a série seja sempre monótona, um infinito do mesmo.
No entanto, e aí está o grande achado do texto: apenas dois bustos se diferenciam. Caricaturas de rostos humanos que figuravam, na fantasia delirante de Messerschmidt, os demônios da proporção. A diferença, destes dois rostos, fica ainda mais marcante na medida em que o artista vai dizer-se capaz de refazer toda a série, com exceção das duas cabeças pontudas.
Na impossibilidade, mais uma vez explicitada, de poder reconhecer nestas duas figuras estranhas-familiares, que se intrometem na série, algo da estrutura, Kris vai optar pelo caminho das frágeis associações imaginárias, destacando os lábios como o foco da atenção... É verdade que a presença da pulsão, no seu trajeto de ir e vir em torno do objeto, vai ser descrita por Kris: “Há uma impressão fálica envolvida, um sentido geral de atividade e direção. Somos levados a supor que essa atividade é atribuída, por projeção, aos demônios enquanto perseguidores.”, mas a plasticidade que é oferecida pela interpretação que se baseia no imaginário vai, no entanto, levá-lo a concluir “que estes dois bustos de fato representam, segundo nossa interpretação, é a ilustração direta de uma prática sexual (felatio), à qual os demônios convidam e forçam Messerschmidt”.
Ao comentar os efeitos provocados nos observadores, pelas duas imagens, E. Kris vai afirmar que eles não são somente mais intensos do que os outros, como também, diferem na qualidade: “não há nenhuma careta aparente, nenhuma constelação mímica. O aspecto do “rosto é mantido intacto e, como observou Nicolai, os traços humanos não se ‘perderam’, mas o artista lida com eles com uma certa liberdade”. E. Kris, mais uma vez, passa perto do que se diferencia da monotonia do significante, do que escapa ao significante e se presta a ser encapsulado por uma imagem qualquer, provocando as mais diversas reações e fazendo de sua posição psicológica algo particular: o objeto a.
Podemos dizer,neste ponto que, a “intuição” (conceito colocado ao lado do “planejamento”, como essenciais à interpretação) levou Kris a formular que “talvez seja porque descobrimos nas duas figuras a mais convincente expressão do núcleo da fantasia delirante de Messerschmidt, é que podemos dizer que esta é uma transformação artística da realidade, levada ao extremo, a fim de disfarçar a fantasia latente.
As interpretações, a partir daí, passam pelas teorizações que Freud desenvolveu nos textos sobre Psicose, principalmente “O Caso Schreber”, assim como pelo conceito de narcisismo.
A presença do espelho na vida de Messerschmidt, que não usou diferentes modelos, mas copiou sempre o reflexo de seu próprio rosto é, p. ex., assinalada por E. Kris. Essas tentativas tiveram, para o artista, a finalidade de provar incessantemente sua própria existência como pessoa, criando, a cada vez formas novas e satisfatórias de adornos exteriores. Este é seu esforço para a recuperação da própria sanidade. Uma tentativa de reconstruir o mundo que está sempre ameaçado de destruição. Foi nesta tentativa que ele falhou. As expressões fisionômicas de seus auto-retratos revelam-se superficiais, o que nos leva a acrescentar: demonstrando a falha narcísica, ou seja, o fracasso da função da imagem na promoção da identificação ao próprio corpo. Mas, mesmo assim, sua arte tornou-se o instrumento de um ritual mágico. Os demônios da proporção deveriam ficar distante o suficiente para não destruírem o frágil arranjo de seu mundo, mas, também, perto o suficiente para serem controlados.
O caso de Messerschmidt ilustra, nos diz E. Kris, o que, poder-se-ia denominar, dentro da teoria da arte, o limite estético. É o mesmo limite que Freud traça entre o sonho, o devaneio e a narrativa coerente, ou entre a fantasia e a poesia.
A identificação de Messerschmidt com Deus - o escultor criador, é demonstrada em vários relatos de F. Nicolai sobre sua convivência com o artista. Esta identificação é interpretada por E. Kris, não só pela crença mitológica de que o artista é dotado de poderes mágicos, como o criador, mas porque, enquanto ele trabalhava, apalpava suas próprias costelas a fim de criar figuras humanas. Ao acrescentar que nesse momento o círculo se fecha e o que ele esculpe - sua própria imagem, seu rosto - tem para Messerschmidt uma conotação feminina, E. Kris demonstra apreender muito bem o que Lacan, mais tarde, vai chamar de empuxe-a-mulher, já descrito por Freud no “Caso Schreber”.
A identificação do artista esquizofrênico com Deus, o criador, vai determinar igualmente a fantasia delirante de Messerschmidt segundo a qual o demônio da proporção persegue-o por inveja. Para ele, como para muitos outros artistas, a proporção - divina proporzione - é o segredo de Deus, que leva o artista a violar a proibição divina na sua luta para atingi-la.
4 - CONCLUSÃO
E. Kris não é apenas uma referência do ensino lacaniano através do seu caso “o homem dos miolos frescos”, mas é saudado, também, por autores como sendo verdadeiramente o “cabeça pensante do triunvirato da Ego-Psychology”
O que ele tenta, em suas biografias de artistas e, especialmente na que acabamos de comentar, é de transportar para suas interpretações o mesmo padrão que utilizou no seu trabalho como historiador da arte, levando-o, muitas vezes, por labirintos sem saída.
Seu suporte teórico nas proposições freudianas, no entanto, lançam luzes que, infelizmente, são abortadas por ignorarem a lógica do significante e a função da letra como, p. ex. quando comenta os desenhos de um artista esquizofrênico que estava sob seus cuidados: “Seus desenhos não são obras de arte que ele deseja autenticar, mas sim afirmações que deseja concretizar ... ‘não tem valor artístico’, confirma o paciente, não são desenhos, ‘mas sinais escritos’. Mesmo com todas estas indicações, E. Kris, no entanto, retoma as interpretações do sentido das imagens.
É por isso que podemos dizer que o trabalho de E. Kris, mesmo que por vezes toque pontos cruciais da psicanálise, trazendo contribuições importantes, vai se perder no “a priori” de uma teoria que se construiu para promover o tamponamento do cerne da descoberta freudiana: S(A/).
Foi o que demonstrou Lacan, todas as vezes que comentou o caso clínico do “homem dos miolos frescos”. Afinal, o desejo é sempre desejo de nada.
Bibliografia:
Adam, J. - Ernst Kris - 1900-1957. De l’art à l’ego, in Ornicar? 34. Navarin Editeur, Paris.
1985
Kris, E. - Psychologie du moi et interpretation dans la therapie psychanalytique, in Ornicar? 46. Navarin Editeur, Paris. 1988
Idem - Psicanálise da Arte. Editora Brasiliense, São Paulo. 1968
Lacan, J. - Écrits, Editions du Seuil, Paris. 1966