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terça-feira, 17 de dezembro de 2013

“O Desejo do Analista é o pivô do tratamento" (II)

Serge Cottet desenvolve este tema começando por definir que “o desejo de um analista é o que se chama contra-transferência e é o interfere no dispositivo por sobre-determinar a direção que lhe dá.” Já o desejo do analista é o que opera do lado do analista quando ele está preso nas malhas da transferência de seu analisante, a partir mesmo do fato de estar sustentando a figura do Sujeito Suposto Saber pela confiança que o analisante lhe deposita como efeito da transferência. Estando aí instalado, o analista deve buscar seu objetivo que vai à contra-corrente do que propõe a transferência: colocar um ponto final a esta ficção que aí está. É nesse sentido que se vê operar “o desejo do analista como pivô do tratamento” .
Muito se fala sobre a resistência do analista, termo que Lacan utiliza deste muito cedo em sua transmissão, para dar conta do que vai mal num tratamento. Esta forma de estabelecer os termos desloca para o analista o que, até então, estava posto do lado do analisante.
Freud já dizia que quando o analisante para de falar durante a sessão é porque está pensando no analista. Pode-se pensar que esta interrupção no fluxo das “associações livres” acontece em função do amor que sustenta a transferência e que a presença do “sujeito-analista” enquanto objeto de amor, sustentando o equívoco, o engodo do amor de transferência é o responsável por isso. O amor enquanto uma verdade que produz a crença em uma troca possível, é uma resistência apenas quando o analista cede ao charme que sobrevêm do apelo amoroso, a partir mesmo de uma posição narcísica. Somente um “desejo mais forte”, como nos lembra Lacan em seu seminário sobre a transferência pode aí fazer contraponto possibilitando à análise prosseguir. Este desejo mais forte, um desejo inumano, como Lacan o define em sua Nota Italiana, é que mantém a distância entre o gozo (a satisfação) e o imperativo “continue a falar”, e a distância entre o “bem-ser” e o dever de “bem dizer”.
Penso ser possível, aqui, uma palavra sobre a angústia que eventualmente invade o cenário, do lado do analista. Para isso, é importante saber que os afetos do analista estão, como se diz, do lado da contra-transferência, ou seja, eles nada têm a ver com o inconsciente do analisante, mas sim com o amor. A equação que aí se estrutura propõe que o amor responda ao amor. Isto se esclarece quando trazemos à luz o episódio de Breuer e Anna O.: Ali o amor venceu!
Um passo a mais e podemos dizer que num tratamento, trabalha-se todo o tempo para, exatamente, suprimir os efeitos da transferência. Ao ser instalado, pelo analisante, no lugar de Ideal, é fundamental que o analista se coloque desde o início a questão de como é que ele vai poder lidar com isso e sair desta posição. Afinal não há final de análise sem a “queda dos ideais”.
Sabe-se que o Ideal se constitui a partir do traço unário, este herdeiro do Complexo de Édipo que se torna o centro da estrutura narcísica na medida em que reflete o Eu Ideal. Sustentar a transferência a partir deste lugar, do narcisismo, é sustenta-la pelo viés do poder imaginário como, p.ex., na relação do hipnotizador com o hipnotizado. O que se destaca aqui é a ética da psicanálise que vai apontar a resposta à questão: o que quer o analista quando está ocupando este lugar na transferência? Não ceder de seu desejo (de analista) é o que responde Lacan. Ele chega mesmo a ir mais longe na formulação desta proposição: “Proponho que a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo.” Não ceder de seu desejo implica colocar-se como um “x” no caminho da demanda do analisante, indo contra a idealização que o amor de transferência desenha. Ir “para além do narcisismo”, como nos diz Cottet decepcionando “a demanda de amor para permitir à pulsão daí se descolar, subtraindo-a de sua maquiagem imaginária”. Cottet chega mesmo a propor que é isso a contra-transferência, ou seja, o que vai “no sentido inverso da transferência, quando é à sua face de resistência que se opõe”.
O desejo do analista, então, opera na contra-corrente da identificação, na medida em que vai fazer da fantasia fundamental uma pulsão. “Se a transferência é o que da pulsão desvia a demanda, o desejo do analista é o que a traz ali de volta”. Em outras palavras, a função do desejo do analista é que vai manter uma distância, a maior possível, entre o objeto do desejo e o ideal depositado no analista. Seria, pode-se dizer, uma distância entre o Grande Outro (A) e o pequeno “a”, cabendo ao analista, do lugar do Outro, fazer reinar o objeto pequeno “a” como causa de desejo.
Ao amor que é oferecido, o analista, portanto, não pode ceder. Ceder neste ponto pode trazer como sinal a angústia. Relembremos aqui, mais uma vez, Breuer e Anna O. “Se Lacan promoveu a função do desejo do analista é porque ele é, em comparação com o desejo de Sócrates, um desejante cujo desejo do Outro é o objeto. É também porque o desejo, é o remédio para a angústia”.
Vou, portanto, concluir hoje com uma citação de Lacan com a qual ele encerra  o Seminário XI: “O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque fora dos limites da lei, somente onde ele pode viver.”

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

“O Desejo do Analista é o pivô do tratamento"

Vou destacar uma frase do texto “A direção do tratamento...” com a intenção de retoma-la hoje como ponto central de nosso trabalho: “Cabe formular uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista.”
Recentemente trabalhei as conseqüências da demanda do sujeito na sua articulação com a falta no Outro. Foi dito que é neste ponto onde duas demandas se encontram que pode surgir a angústia e, também, é onde se constrói um desejo. A angústia por habitar este ponto, o lugar do desamparo por excelência, só encontra saída no desejo que daí pode advir. O Desejo do Analista, que vai ser o pivô da direção do tratamento, tem também, aí, sua morada. Ele se constrói, como vamos verificar hoje,  na medida em que sustenta a função do Sujeito Suposto Saber como operador. Após um longo trajeto de análise, é possível consentir a suportar o lugar do objeto “a” enquanto causa para que um outro possa fazer o seu próprio percurso.
A expressão, “desejo do analista” não se encontra nos textos freudianos. Esta noção é lacaniana. Freud esteve mais interessado em perguntar “o que quer a mulher?”. A partir mesmo da obra deixada por Freud, Lacan pode se perguntar “o que quer o analista?”
De início é preciso estabelecer uma diferença que, penso, é fundamental: a questão não é o que quer um analista? Se a questão é colocada desta forma, vai-se pender para o lado do “ego” do analista e não da “função” que alguém desempenha enquanto analista.
Ao revisar o que já trabalhamos aqui de várias formas e em várias ocasiões, podemos nos perguntar sobre o princípio que diz que o analista não deve desejar nada para seu paciente. Lembro-lhes que a demanda endereçada ao Outro é sempre uma demanda intransitiva, uma demanda sem objeto: “Aquilo que lhe peço não me dê, pois não é isto”, nos diz Lacan.  Mas, como não é possível nada desejar, a pergunta continua: mas o que faz com que alguém decida assentar-se na poltrona do analista? Serge Cottet nos diz que “supõe-se que ele deseje obter alguma coisa, mas o que? ... Uma confissão, uma palavra? Uma verdade? Uma cura? A partir deste axioma que não se pode não querer desejar sem desejar, o analista é suposto partir ao encontro do desejo inconsciente”. Trata-se, portanto, não de exercitar um poder como sugestão, mas sim de algo que permita ao analista não cair neste engodo: desejo do analista e desejo de um analista.
Para continuarmos trabalhando este tema é fundamental recordar aqui o que sustenta o dispositivo que se coloca em ação quando fazemos a oferta de uma escuta analítica:
1 – O analisante é o sujeito do inconsciente e é o único sujeito em questão neste dispositivo.
2 – Se é verdade que o analista ocupa o lugar do grande Outro (A), do Ideal, no início de um tratamento, ele deve fazer reinar o objeto pequeno “a” a partir mesmo do semblante que ele sustenta para que “o amor que lhe é oferecido, ele não o queira e, a esta demanda de ser amado, ele não ceda.”  
3 – A transferência implica a função do Sujeito Suposto Saber, fundamental para que o trabalho se desenvolva a partir das construções do analista que, segundo Freud, restituem ao sujeito os pedaços de realidade perdidos e, assim, podem destacar a pulsão de suas aderências imaginárias. Esta é a única forma de propiciar a que “o ser do desejo se ligue ao ser do saber para renascer, no que eles atam, numa tira feita da borda única em que se inscreve uma única falta, aquela que sustenta o Algama.
4 – A estes três é preciso acrescentar um quarto elemento, que é o “desejo do analista”.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Como Agir com seu ser: Sobre o Desejo do Analista (II)

A sétima divisão da parte VI (Direção do tratamento...) nos apresenta o analista a partir do estilo: “O analista é o homem a quem se fala e a quem se fala livremente”. Esta é uma referência explicita à famosa frase de Buffon, com a qual Lacan abre sua coletânea dos Escritos: “O estilo é o homem (...) a quem nos endereçamos...”. O analista tem estilo, sustenta uma singularidade na sua função de semblante de objeto “a” enquanto causa de desejo. Ter estilo implica escrever um espaço onde exista lugar para um sujeito colocar aí algo de seu.
Quanto à segunda parte da frase, questionamos com Lacan “a liberdade”. Como já foi discutida aqui, a liberdade da chamada “associação livre” tem seus limites. Na ocasião falávamos dos limites da sintaxe e da gramática. Hoje lemos Lacan dizendo que a liberdade está, muitas vezes, impossibilitada pelo fato de que “nada é mais temível do que dizer algo que possa ser verdadeiro. Pois logo se transformaria nisso, se o fosse, e Deus sabe o que acontece quando alguma coisa, por ser verdadeira, já não pode recair na dúvida.”. A certeza não deixa lugar ao desejo!
Por tudo isso, ouvir e escutar o que permanece de indizível nas entre linhas, ou entre palavras é função do analista. “Ouvir e não auscultar” nos diz Lacan, pois “o que escuto é por ouvir”. Importante lembrar aqui, o que de alguma forma já faz a nota de pé de página do tradutor, que a palavra “entendre” é também traduzível por entender, captar, reconhecer. Lacan, muitas vezes, utilizou a homofonia do verbo “J’ouis” (eu ouço) com “jouis” (gozo). Colocar em cena o desejo do analista é poder dizer que “naquilo que ouço, sem dúvida, nada tenho a replicar, se nada compreendo disso ou se, ao compreender algo, tenho certeza de estar enganado”.
Agindo assim trabalhamos “os recônditos da primeira infância” , através da demanda que nos chega. Esta “regressão” que aí se produz  pelo fato de não se responder às demandas, trazem, no presente,  aqueles significantes que habitam “demandas para as quais há uma prescrição”. “Prescrição” pode ser lida no duplo sentido: prescrito: ter passado o prazo de validade e, também, prescrito: designado pelo Outro.
Esta articulação com a demanda do Outro, estabelecida nesta regressão aos significantes prescritos, abre espaço para tratarmos do amor naquilo em que ele consiste, ou seja, “dar o que não se tem”. É isto que o analista tem para dar, nada! Mas, a verdade é que “nem mesmo este nada ele tem e por isso se paga a ele por esse nada”. Assim esta demanda vazia, intransitiva, será ainda mais pura e vai denotar a presença do analista ali, no momento em que o sujeito se cala, ou seja, quando “ele (o sujeito) recua até mesmo ante a sombra da demanda”. Esta presença vai, portanto, esclarecer que o analista não está ali para simplesmente frustrar o sujeito com seu silêncio, mas sim para que “reapareçam os significantes em que sua frustração está retida”. A presença do analista é uma presença na qual está implicada uma perda pura. Presença sem ganho, presença vazia que ex-siste para fazer reinar o objeto “a” que o analisante construiu em sua fantasia. Numa análise só há um sujeito em questão e este sujeito vai ter que se haver com o resto que se produziu quando ele consentiu com a entrada do significante. A presença do analista se faz a partir do “desejo do analista” este desejo que é um vazio a ser sustentado como causa.
Na divisão 10, Lacan vai retomar as articulações da demanda ao campo do Outro, identificando este ao lugar onde a onipotência é exercitada na transformação da necessidade em desejo nos desfiladeiros significante, moldando-a e filtrando-lhe os elementos. Ali eles estarão distribuídos em dois registros – sincrônico, de oposição entre elementos irredutíveis; e diacrônico, de substituição e combinação. Mais uma vez vale a pena relembrar aqui que se está trabalhando um texto cuja referência é a primeira clínica, onde a primazia do significante é um fator importante. No entanto, também vale a pena notar que já se apresentam passagens que denotam o espaço aonde a segunda clínica vai se desenvolver. Um bom exemplo disto é a seqüência que temos aqui, logo após esta referência à diacronia e sincronia significantes: “a linguagem, se certamente não preenche tudo, estrutura a totalidade da relação inter-humana”. Este espaço será ampliado pelas articulações da divisão 11, quando Lacan critica, mais uma vez, a identificação ao analista como final de análise possível. Partindo do fato de que o supereu não é a fonte da realidade mas sim marcas ideais que permanecem no inconsciente como recalcadas, “na substituição das necessidades pelo significante”, afirma que toda e qualquer identificação ao analista “será sempre uma identificação aos significantes”. O analista estará, no entanto, restrito em sua ação à posição que lhe empresta o sujeito na transferência. Caso se insista no processo que se costuma chamar de reeducação emocional, o analista só vai repetir, ao querer o bem do sujeito, “aquilo em que ele foi formado, e até, ocasionalmente deformado”.
Dirigir uma análise a partir da figura obscena e feroz do Supereu, conclui Lacan, não deixa outra saída para o sujeito senão partir acreditando na recomendação de seu analista: “Vá em frente, agora você é um menino comportado”.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Como Agir com seu ser: Sobre o Desejo do Analista

Retomaremos a leitura do texto “A direção do tratamento...” na sua parte IV que está centrada sobre “a questão do ser do analista”. Esta questão, Lacan nos lembra, foi colocada em evidência, pela primeira vez, por Ferenczi, quem sempre se preocupou com a ação do analista que, ainda segundo Lacan, “antecipa de longe os temas posteriormente desenvolvidos da tópica”. A partir destas articulações de Ferenczi, podemos recolocar a questão: trata-se de saber o que pode o analista fazer com o seu ser que não pôde ser "introjetado" pelo analisante. Isto faz referência, é claro, ao que Lacan nos informa sobre o que entende Ferenczi a respeito da “absorção, na economia do sujeito, de tudo o que o psicanalista apresenta no duo como Hic et nunc de uma problemática encarnada”. O final de análise, pode-se rir disto hoje, estaria estruturado sobre a comunicação que o analista faria a seu paciente sobre “o abandono que ele mesmo está em vias de sofrer”. Seria uma forma de, confiando ao paciente este sentimento, promover assim a crença de que ele poderia fazer falta a alguém. Ora, sabemos bem que a “falta-a-ser” deve estar no cerne da experiência analítica. Esta é sua política e é o que define seu objetivo. É fundamental, no entanto, saber que ao se fazer esta comunicação, da forma como propõe Ferenczi, corre-se o risco de alimentar o campo mesmo da paixão do neurótico que é o seu sofrimento de sua “falta-a-ser”.
Mas, o que é o ser? Podemos defini-lo de uma forma suscita, como o faz Laurent: “O desejo”. Ele esclarece esta afirmação diferenciando o ser dos filósofos do ser ao qual Lacan faz referência aqui: “Não somos filósofos, não pensamos que o homem tenha como ser algo que não seja o desejo, somente este constitui seu ser”. Em outras palavras, o ser aqui se refere exatamente à falta-a-ser, à este vazio do sujeito que constitui seu desejo.
Na segunda divisão, Lacan tece alguns comentários em referência aos autores ingleses, especialmente Ella Sharpe a quem tece um elogio reconhecendo-lhe o mérito de preservar “o próprio desejo em um outro lado, em um lugar diferente daquele no qual encarna para seu paciente a figura do gozo”, como assinala Laurent. Seu conselho para os analistas é deixar de lado a bondade e ler um pouco. Esta escolha “é uma feliz indicação de princípios”, no que pese o fato de que o papel central nos textos aconselhados seja o significante falo.
A terceira divisão trata dos finais de análise que preconizam a identificação do sujeito ao analista, se bem que, ironiza Lacan, “certamente varia a opinião quanto a ser de seu eu ou do Supereu (do analista) que se trata”. Neste ponto são destaques as referências a Melanie Klein e às diferenças entre suas articulações em torno do objeto e as de Lacan: “A dialética dos objetos da fantasia promovida na prática por Melanie Klein tende a se traduzir, na teoria, em termos de identificação”. Esta identificação sustenta a presença destes objetos como significantes. “Ele (o sujeito) é esses objetos, conforme o lugar em que eles funcionem em sua fantasia fundamental”. Ou seja, o objeto que interessa a Klein é o objeto da fantasia. Sabemos que o sujeito, em sua fantasia fundamental, oscila entre sua posição de sujeito e sua posição de objeto. Klein acredita que é enquanto objeto que o sujeito pode fazer frente a afânise própria de sua condição. Ao assim fazer, ele se sustenta em seu ser, ser que se apresenta dividido, fragmentado nos intervalos da cadeia significante. Sua presença se dá no próprio desejo que se estrutura na metonímia significante, graças à fantasia que promove a articulação entre sujeito e objeto conseguindo, desta forma fazer “um” imaginariamente. Por isso quando alguém diz: “Eu sou merda” ele está fazendo-se existir identificando-se ao objeto de sua fantasia.
É isto que Lacan critica e recusa: um final de análise a partir desta identificação com o ser da fantasia. Laurent esclarece: “A relação com o ser não é uma relação com a fantasia, mas sim uma relação com o desejo”. É por isso  que a demanda de felicidade que chega ao analista deve ser escutada com atenção. “Perde-se muito tempo procurando a camisa de um homem feliz”, escreve Lacan em 1958, para afirmar, em ‘Televisão’  que “o homem é feliz”.  Esta demanda, na verdade, é demanda de objeto nenhum: “Ele me pede... pelo fato de que fala: sua demanda é intransitiva, não implica nenhum objeto”. Apenas o sujeito é transitivo aqui, por isso pode-se perceber uma antinomia entre o sujeito e a demanda. É fundamental “formular uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista”. Basta que se convide alguém a falar para que o transitivo do sujeito venha à luz através de um significante qualquer que irá representa-lo para outro significante. Sabemos que o analista vai ocupar este lugar do significante que vem depois, do Sq, do significante qualquer que poderá produzir a significação demandada.
Deste lugar “mais vale não compreender para pensar”, nos diz Lacan fornecendo mais uma formalização do que poderia ser distinguido como indicações técnicas.  

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O matema da transferência e o Sujeito Suposto Saber na Segunda Clínica

No Seminário XI Lacan vai trabalhar de maneira consistente o conceito de Sujeito Suposto Saber e o Desejo do Analista traçando, com precisão, o ponto em que se articulam. Este tema está indissociável da formação do analista. No início do capítulo que XVIII, está explicitado que o ensino de Lacan visa a formação de analista. Talvez seja uma resposta direta à proibição que ele acabava de sofrer por parte de seus colegas que dirigiam a IPA, de tomar candidatos em análise e de fazer a transmissão de seu ensino. A verdade é que nesta lição dedicada ao Sujeito Suposto Saber vamos poder discernir algumas passagens que são como fragmentos de técnica analítica. Para não me alongar muito vou destacar apenas a recomendação a uma análise pessoal como única forma de não cair na ordem da cerimônia, assim como o fato de que diante da falta de garantias apresenta-se o que o analista obtém do analisando que é, como exprime Lacan, “de um preço inestimável – a confiança enquanto tal, e os resultados que isto comporta pelas vias de uma certa técnica. Ora, ele não se apresenta como um Deus, ele não é Deus para seu paciente. O que significa, então, esta confiança: Em torno do que ela gira?”
“Sem dúvidas, para aquele que aí faz confiança, que recebe a recompensa, a questão pode ser elidida. Ela não o pode ser para o psicanalista. A formação do psicanalista exige que ele saiba, no processo no qual que ele conduz seu paciente, em torno do que o movimento gira. Ele deve saber, a ele deve ser transmitido, e em uma experiência, isso onde ele retorna. Esse ponto pivô é o que eu designo, diz Lacan, sob o nome de desejo do psicanalista.”
Saber e desejo estão aqui articulados e, mais ainda, fazem com que a transferência, sendo um fenômeno essencialmente ligado ao desejo, como dissemos na introdução, estabeleça uma possibilidade ali mesmo onde Eros se afirma: neste Sujeito Suposto Saber que condensa a função da transferência enlaça amor e saber em torno do vazio do desejo. “O eixo, o ponto comum (portanto) é o desejo do analista, que eu designo aqui como uma função essencial", nos diz Lacan. "Esse desejo (...) é precisamente um ponto que só é articulável pela relação do desejo ao desejo.”
Esta presença do desejo do analista como articulador da transferência se estrutura em torno do fato que “o desejo do homem é o desejo do Outro”. Esta afirmação acompanha Lacan desde os primórdios de seu ensino e, ao ser retomada no final do Seminário XI nos aponta aonde é que se engancha esse ponto de passagem da primeira para segunda clínica, quando se trata do Sujeito Suposto Saber: “Na relação do desejo ao desejo, algo é conservado da alienação, mas não com os mesmos elementos – não com esse S1 e esse S2 da primeira dupla significante, de onde deduzi a fórmula da alienação do sujeito (...) – mas de uma parte, com que é constituído a partir do recalque originário, da queda, do Untedrückung, do significante binário – e de outra parte, com o que aparece primeiro como falta no que é significado pela dupla dos significantes, no intervalo que os liga, isto é, o desejo do Outro.”
Podemos, agora sim, entrar na construção e manejo do matema da transferência, onde poderá se explicitar a função do Sujeito Suposto Saber.
Partindo do princípio de que o Sujeito Suposto Saber é o pivô da transferência, Lacan vai dizer que um sujeito só é suposto pelo significante que o representa para outro significante. Daí o matema que se constrói, penso eu, a partir mesmo do que trabalhamos quando tomamos a célula básica do Grafo:
 
               S                              Sq
               s (S1, S2,S3,.... Sn)
 
Assim Lacan justifica os elementos deste matema: “Reconhece-se na primeira linha o significante S da transferência, quer dizer de um sujeito, com sua implicação de um significante que diremos qualquer um, quer dizer que não supõe que a particularidade, no sentido de Aristóteles, que por esse fato supõe ainda outras coisas. Se ele é nomeado por um nome próprio, não é porque ele se distingue pelo saber, como veremos. Sob a barra, mas reduzida ao palmo do primeiro significante: o s representa o sujeito que daí resulta implicando no parênteses o saber suposto presente, dos significantes no inconsciente, significação que tem o lugar do referente ainda latente nessa relação terceira que a acrescenta ao par significante-significado”
Por isso, mais adiante neste mesmo texto, Lacan vai afirmar que a transferência “só se desenvolve ao preço do constituinte ternário que é o significante introduzido no discurso que aí se instaura, aquele que tem um nome: o sujeito suposto saber, formação, ela, não de artifício, mas de veia, destacada do psicanalisante.”
Esta posição nos diz que o que “importa aqui é o psicanalista na sua relação ao sujeito suposto saber” de forma direta, continua Lacan, para afirmar, em seguida, que “está claro que do saber suposto”, o analista “nada sabe”. “O Sq da primeira linha nada tem a ver com os S em cadeia da segunda e só pode aí se encontrar como achado. Apontamos esse fato para aí reduzir a estranheza da insistência que coloca Freud em nos recomendar abordar cada caso novo como se nós nada tivéssemos adquirido de seus primeiros deciframentos.”
Concluindo, com um certo curto-circuito que abre o tema da próxima postagem - o Desejo do Analista -, verifica-se que o Sujeito Suposto Saber se apresenta como pivô da transferência sendo, inclusive, condição da entrada em análise, e o final da análise apresenta-se uma desuposição de saber como resultado do tratamento. Esta desuposição, sob a forma do dês-ser do analista, se traduz na afirmação de Lacan, ainda no texto da Proposição, de que ao final de uma análise o analista que sustentou o Sq vai sofrer uma metamorfose, sendo “o parceiro que se esvai por não ser mais que um saber vão de um ser que se subtrai”, em outras palavras, “o analisante faz do objeto ‘a’ o representante da representação de seu analista.”
Assim se toca “a futilidade do termo liquidação da transferência por esse furo onde somente se resolve a transferência. (Vendo-se) aí, contra a aparência, a denegação do desejo do analista.”

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Sujeito Suposto Saber na Primeira Clínica

Lacan define a transferência como consequência imediata da estrutura própria à situação analítica, ou seja, como consequência direta do Discurso Analítico. Mais do que isso a transferência, no que ela implica o conceito de Sujeito Suposto Saber, pertence à própria estrutura do discurso analítico, estando para-além dos fenômenos que tentam preencher a dissimetria essencial estabelecida entre analisante e analista. Estes fenômenos podem ser resumidos em três: repetição, resistência e sugestão.
Vamos tentar fazer, neste momento, uma leitura do lugar do analista, tal como foi sustentado teoricamente por Lacan na Primeira Clínica quando o Outro (lugar do significante) desempenhou um papel fundamental.
O ponto de partida de uma psicanálise estabelece que o analista se coloque em uma posição de ouvinte de um discurso que ele mesmo incentiva, ao convidar o analisante a dizer tudo o que se passa por sua mente, sem omitir nada. Regra fundamental, que consiste em promover o que Freud denominou de Associação Livre de Idéias. Sabemos bem que “livre” as associações não o são, pois o próprio determinismo psíquico, ainda nos referindo à terminologia freudiana, encarrega-se de fazer suas escolhas, sempre levando em consideração as regras gramaticais e a sintaxe às quais a cadeia significante está submetida. Isto coloca o analista em uma posição digamos, passiva, deixando a atividade a cargo do analisante, que é quem fala. Esta posição já nos diz dos termos desta relação, pois é de nosso conhecimento que cabe ao ouvinte, com sua resposta, sua interpretação, decidir o sentido do que é dito e, mais ainda, a identidade de quem fala. Por esta afirmação podemos verificar que saber da dissimetria da relação esclarece e retifica os equívocos dos autores pós-freudianos que insistiam numa relação dual e dentro desta, na díade transferêncial - a contra-transferência. A posição de intérprete do analista coloca-o em lugar do “amo da verdade”, o que só faz aumentar a responsabilidade essencial de sua função, pois duplica o poder discricional da palavra.
Está claro que neste momento temos em mente um esquema que Lacan utilizou com muita freqüência na chamada primeira fase de seu ensino e que lhe serviu de base na construção de seu Grafo do Desejo. Refiro-me ao que se costuma chamar de célula básica da comunicação, onde um vetor se vê cortado em dois pontos por um outro vetor definindo-lhe o significado.
Neste esquema localizamos o analista ocupando o lugar de Grande Outro – A -, o que vai nos servir para esclarecer esta função de saber que é atribuída ao analista. Retomaremos este esquema mais à frente para tratar da função “semblante” de “a” como causa de desejo.
Do lugar de A, o analista é convocado primeiramente como aquele a quem o paciente se entrega na associação livre, pois atribui ao analista um saber sobre sua verdade. Acredita que o significado que ele vai ser atribuído pode restituir-lhe a estabilidade perdida. Em outras palavras pode-se dizer que ao analista é atribuída, pelo analisante, a função de saber sobre o sentido. Por um lado o analisante não se equivoca, pois o saber já está ali deste sempre, uma vez que ao ativar a transferência, o que se verifica é a “colocação em ato da realidade sexual do inconsciente” ou seja, restabelece-se uma relação aonde a pulsão vai nos dizer da rede de significantes que sustentam este sujeito no mundo: estes significantes que dizem do modo de gozo do sujeito ao mesmo tempo que apontam para o sintoma que vem no lugar onde falta o elemento que possibilitaria a “relação sexual”.
A propósito deste ponto, vamos relembrar uma citação que já foi trabalhada entre nós, quando tratamos da parte  II – qual é o lugar da interpretação?:
“A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução, - precisamente aquilo que a função do Outro permite no receptáculo do código, sendo a propósito dele que aparece o elemento que falta.”
Mas, não nos esqueçamos do que tanto insiste neste nosso trajeto pela “Direção do tratamento”: A experiência analítica só é possível se suspendermos toda e qualquer saber prévio sobre o analisante o que implica que o analista não deve se deixar enganar por este efeito de suposição de saber que lhe é atribuído. Na verdade, o que o analisante nunca vai perdoar ao seu analista é ele deixar-se enganar por esta posição de suposição de saber. Em seu Seminário XI, quando Lacan trabalha a “Presença do Analista” - presença que se constata quando o analista recusa a suposição de saber que lhe é atribuída - ele nos diz que a transferência negativa está sempre presente, de alguma forma, pois se trata de uma atenção especial do analisante no que concerne saber se o analista vai ou não se deixar enganar pelo canto da sereia do gozo de seu sintoma. Em outras palavras, se o analista vai ou não aceitar o convite de que venha gozar com ele de acordo com seu próprio modo de gozo.
Aceitar este convite é estruturar a relação ao nível do imaginário da cena da fantasia fundamental, aonde a resposta do analista vem confirmar o sentido pré-estabelecido do sintoma do sujeito, deixando de lado a possibilidade de que um desejo venha à luz. Esta vertente vai propiciar o congelamento de um Ideal do eu – lugar que identifica o “ser amado” - promovendo uma reestruturação do Eu ideal como identificação imaginária ao traço do Ideal, acreditando-se assim ser amado pelo Outro. Este é o equivoco do analisante ao acreditar que o seu saber, o saber do inconsciente, já está todo constituído no analista.
Concluindo esta parte, afirmamos que o Sujeito Suposto Saber pode ser lido nas referências que Lacan faz ao analista ocupando o lugar do Grande Outro.
 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Sobre o Sujeito Suposto Saber

Hoje vamos tratar o conceito de Sujeito Suposto Saber. 
Conceito considerado por Lacan “pivô da transferência”. Não sei se podemos localizar precisamente quando Lacan utiliza este termo pela primeira vez, mas no Seminário “A identificação” Lição de 15 de novembro de 1961 ele vai empregar essa expressão Sujeito Suposto Saber. Este momento do ensino de Lacan ainda está sustentado nos parâmetros que costumamos chamar a primeira clínica ou clínica da prevalência do Simbólico. No entanto, já se percebe a preparação do campo do objeto “a” ao trabalhar o traço unário e a sua incidência na constituição do significante. No Seminário X, no ano seguinte, veremos o objeto “a” surgir com o estatuto que será consolidado no Seminário XI: enquanto um resto de gozo, consequente à operação significante.  
Cito aqui a passagem da lição do Seminário IX:
“É que nunca houve, na linha filosófica que se desenvolve a partir das investigações cartesianas chamadas do 'cogito', nunca houve, senão um só sujeito que prenderei com alfinetes, para determinar sob esta forma: o sujeito suposto saber. É necessário que dêem a esta fórmula uma ressonância especial que, de alguma forma leva consigo sua ironia, sua pergunta, e observem que ao referi-la à fenomenologia e, particularmente, à fenomenologia hegeliana, a função desse sujeito suposto saber toma seu valor de ser avaliado quanto à função sincrônica que se desdobra neste propósito: Sua presença sempre ali, desde o começo da interrogação fenomenológica, em um certo ponto, em um certo nó da estrutura, nos permitirá deduzir do desdobramento diacrônico suposto levar-nos ao saber absoluto.”
Depois vamos vê-lo referir-se novamente ao “Sujeito Suposto Saber” no Seminário XI, já no tempo do Real e do objeto pequeno “a”, ou seja, já dentro do novo parâmetro que define a segunda clínica ou Clínica do Real.  Lacan dedica a este tema toda uma lição, (XVIII) onde nos diz que a “transferência é um fenômeno essencial, ligado ao desejo como fenômeno nodal do ser humano, que foi descoberto antes de Freud”. Em seguida, neste capítulo que menciono aqui, ele faz referência ao “Banquete” de Platão para repetir o que disse Sócrates quando afirmou “que nunca pretendeu saber, senão o que é de Eros, que dizer, do desejo”. E, finalmente, “desde que exista em algum lugar o Sujeito Suposto Saber, existe a transferência. (...)  Cada vez que esta função pode ser, para o sujeito, encarnada em quem quer que seja, analista ou não, ela resulta da definição que acabo de lhes dar sobre a qual a transferência já está fundada”.
No texto “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o Analista da Escola”, ele vai matemizar a transferência destacando a função do Sujeito Suposto Saber: Depois de fazer um longo percurso que passa por Descartes, Hegel para quem "a verdade coloca a impossibilidade da coexistência das consciências, na medida em que se trata do sujeito prometido ao saber...", e Sartre onde o inferno é o outro, Lacan conclui dizendo que:  “O sujeito suposto saber é, para nós o pivô de onde se articula tudo o que é da transferência”.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

A transferência: Desvios e Retificações (IV)

A transferência, portanto, está no início do tratamento e se instala aí na tentativa mesmo de, atribuindo a um Outro o saber que falta, alcançar uma resposta que seja o saber último sobre esta sua verdade. É o Sujeito Suposto Saber que surge, fazendo valer um significante qualquer como aquele que poderia representar o sujeito.
Este atribuir a um Outro o que lhe falta está na base da relação amorosa por excelência: ama-se no Outro o “agalma”, objeto precioso, essência de um ser-em-falta que se ilude no amor ao saber.
Em se tratando da transferência, no entanto, vemos uma dessimetria colocada a priori já que nesta relação há pelo menos um que quer a mudança, há pelo menos um que calcula e, ao recusar o lugar de amante que lhe é oferecido responde, por seu não-saber, com um Che Voui ?, um desejo de saber.
Isto nos aponta uma mudança na maneira de ver as coisas pois, se no inicio da psicanálise muitos pensavam que o inconsciente era um não sabido que iria se tornando cada vez mais sabido, a introdução do objeto pequeno “a” por Lacan, nos diz de uma exteriorização do não-sabido que escapa à cadeia significante e se coloca radicalmente excluído dela.
Fazer operar este objeto “a” enquanto semblante no discurso do analista é tarefa a ser sustentada por alguém: um analista. “A psicanálise é o que se espera de um analista” nos diz Lacan no seu seminário XVII, e continua “e o que se espera de um analista é que faça funcionar seu saber e termos de verdade. É bem por isso que ele se confina num meio-dizer”.
Em outras palavras pode-se dizer ser preciso que exista um analista e este analista só existe na medida em que, se colocando com ponto fora da linha, faz operar o vazio onde uma verdade poderá ser transmitida e não um saber ser ensinado.
Esta operação de transmissão só se faz em ato, ato psicanalítico que, preparado pelo amor de transferência – é o amor que possibilita, enquanto signo, o giro do discurso da histeria para o discurso do analista – se conclui pelo vazio do sujeito. O ato acontece ali onde um sujeito deverá advir. Esta operação que tem como pivô o Sujeito Suposto Saber e por objetivo a destituição deste sujeito suposto, só se sustenta pelo desejo do analista.
Esta é uma operação lógica. O ato enquanto puro não-sentido institui um dizer e cria um fato, onde o axioma da existência – que Lacan traduziu por “Há do UM” (Y a d’l’UN) – aponta todo o tempo para a infinitização da demanda, fazendo valer a castração como saída do Édipo.
Sabe-se que são momentos de estagnação que promovem o que chamamos mais acima de “mal-a-mais” e que levam um sujeito a formular uma demanda de análise. Quando esta estagnação ocorre durante o tratamento é porque a transferência está operando enquanto resistência. Freud já nos esclareceu que estes pontos de resistência, pontos de silêncio que acontecem quando a associação livre é interrompida, são a conseqüência do analista estar ocupando um lugar destacado no pensamento do analisante. Michel Silvestre nos lembra que “estes momentos de estagnação longe de serem tempos mortos, perdidos para o sujeito, são ao contrário intervalos onde desponta um material específico, aquele da relação ao objeto, quer dizer, aquele da fantasia”.
Momento crucial onde o ato não deve faltar pois somente um ato vai fazer restaurar a função do objeto “a” enquanto semblante, assim como foi um ato que colocou o sujeito em análise. E não deve faltar sob pena do analista, então, se apresentar como presença maciça, fixa, entravando a espontaneidade da fala. Importante assinalar neste ponto que esta operação se sustenta no Desejo do Analista que faz barra ao gozo que se apresenta na cena analítica, relançando o vetor na direção de uma construção da fantasia.
Talvez se possa afirmar, depois deste trajeto que acabamos de fazer pela transferência em sua relação com o ato analítico, que é exatamente o ato, enquanto fio cortante da verdade, que, considerando “a necessidade lógica do momento onde o sujeito como X se constitui da“Urverdrängung, da queda necessária do significante primeiro”, restaura o significante enquanto puro não sentido e portador da infinitização do valor do sujeito. Temos aí então a verdade não enquanto horror mais enquanto uma variável quântica: A verdade é não toda! Com isto descarta-se a instalação de um único sentido como se tenta, quando se ensina um saber a alguém, assim como a abertura a todos os sentidos. O ato psicanalítico simplesmente abole todos os sentidos. Desta forma, a única saída que resta ao analisante é que faça uma passagem e construa um saber no campo que se abre em conseqüência da incidência do fio cortante da verdade, pelo ato psicanalítico.
Podemos concluir dizendo que este saber que se constrói, tem como centro um “não-saber” que, sendo o núcleo do entusiasmo, não surge por uma relação a si-mesmo, mas como pertencendo à estrutura de um modo essencial, até o ponto de constituir a possibilidade do “Único saber oportuno”

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A transferência: Desvios e Retificações (III)


… todo conflito deverá ser ganho na esfera da transferência. (Freud, 1912)

E no começo da psicanálise está a transferência e graças ao analisante. A transferência é, sem dúvidas, o eixo estratégico de uma análise e um dos conceitos fundamentais da psicanálise, juntamente com o Inconsciente, a Repetição e a Pulsão.
Para começar, escolho a definição da transferência que Freud estabeleceu em 1905, no pós-escrito do caso Dora. Assim ele diz:
“O que é a transferência? É uma nova edição ou cópia exata dos impulsos e fantasias que apareceram e se fizeram conscientes durante o progresso da análise; mas ela tem uma peculiaridade, que é característica: trocar alguma outra pessoa do passado pela pessoa do médico. Para dizer de outra forma: experiências psicológicas são revividas, não como pertencentes ao passado, mas como atualidade, aplicando-se à pessoa do médico no momento presente. Algumas dessas transferências tem um conteúdo que só é diferenciado do seu modelo original pelo fato de ser a pessoa do médico a envolvida.”
“Essas são então, continua Freud – para manter a mesma metáfora – meramente novas impressões ou reimpressões. Outras são mais ingenuamente construídas: seu conteúdo foi sujeito a uma influência moderada – Sublimação, como eu a chamo – e podem até tornar conscientes a trama e tirar vantagens inteligentemente de alguma peculiaridade real na pessoa do médico ou nas circunstancias e se ligar a isto. Essas, então, não serão novas impressões, mas edições revisadas”.
É verdade que este conceito de transferência em Freud deriva de sua constatação, em “A interpretação dos sonhos” de que a energia (libido) investe livremente alguns significantes, podendo surgir ligada ao que, aparentemente, nada tem a ver com seu ponto de origem. A esta possibilidade de investir, ora um ora outro significante, ou palavra, como ele diz, Freud denominou de “Uberträngung” que se traduz por transferência. Esta “Uberträngung”, transferência, refere-se especificamente à transferência de valor que se faz em contabilidade quando se transporta um número de uma página a outra, p.ex. 
O conceito de transferência como repetição vai ser retomado por Lacan no Seminário XI para explicitar que, se existe repetição na transferência, a transferência não é toda repetição e, mais ainda, que o que se repete na transferência não são as imagos do passado que seriam reeditadas no presente da situação analítica, mas sim a repetição do impossível, a falta, que habita a seqüência significante. 
Isto talvez explique porque a principio a transferência foi vista com um empecilho ao trabalho psicanalítico, como uma resistência, na medida em que a sequência significante e, consequentemente o sentido, era enfatizado para que nada do Real em jogo na transferência pudesse vir à tona. Somente após o estudo do Caso Dora é que Freud passou a perceber as possibilidades de se trabalhar com a transferência, transformando-a numa das principais armas da psicanálise.
Esta possibilidade se trabalhar com a transferência, suplantando o que existe de resistência somente pode ser explicitada se verificarmos a eficácia do ato analítico como aquele que possibilita uma análise: “a psicanálise não poderia se instaurar sem um ato, sem um ato daquele que aí autoriza a possibilidade, sem um ato do psicanalista, e que no interior deste ato da psicanálise, a tarefa psicanalisante se inscreve …”
Formalizar o momento de uma análise onde o ato psicanalítico acontece, instalando no lugar da verdade um saber que “possa operar enquanto verdade”, é nosso objetivo, neste trajeto que estamos propondo para dar conta do momento atual da transferência em nossa prática clínica. 
Podemos dizer que um sujeito procura análise no momento em que se torna insuportável para ele sua divisão entre saber e verdade. Isto se dá no ponto onde o deslizamento metonímico da cadeia significante se interrompe: “As coisas até aqui caminharam, nos diz alguém, mais não sei porque pararam de andar e até pioraram”. Lacan no seu seminário XI nos diz que “os pacientes, não se satisfazem, como se diz, do que eles são. E portanto, nós sabemos que tudo isso que eles são, tudo isso que eles vivem seus sintomas mesmo, surgem da satisfação, (…) eles satisfazem a qualquer coisa (…) e estando neste estado de tão pouco “contentamento”, eles se contentam”. Só que “por este tipo de satisfação eles se dão muito mal. Até certo ponto é este mal-a-mais a única justificativa de uma intervenção”1 para que no nível da pulsão este estado de satisfação possa ser retificado.
Assim sendo, é a partir deste “mal-a-mais” que, surgindo neste ponto em que o saber constituído do sintoma deixa de obturar a verdade da qual o sujeito não quer nada saber, que vamos ver nascer uma demanda de análise e com ela a transferência.
Esta verdade da qual o sujeito não quer nada saber foi, na primeira fase do ensino de Lacan, colocada em oposição ao saber pelo seu caráter nascente na palavra. Ela corresponde à verdade horrível da castração. Já na segunda fase, a verdade não é mais formulada no singular e torna-se uma variável. Em 1973, em sua “Nota italiana”, o horror da verdade é deslocado para o saber: Lacan vai opor ao horror de saber, o desejo de saber do psicanalista”.
Nossa prática nos leva a constatar que a estabilidade que precede uma demanda de análise se sustenta em uma identificação a um significante que aglutina, de alguma forma, um sentido para um terminado sujeito.  A este efeito semântico que estabiliza o sujeito no seu sintoma, um abalo semântico, conseqüência de um encontro com o Real, vai abrir a possibilidade para que uma demanda de análise se constitua. Temos, na história da psicanálise dois exemplos, o primeiro é retirado dos casos clínicos de Freud. Trata-se do encontro do Homem dos Ratos com o Capitão Cruel que vem desfazer estabilização que ali estava constituída pela identificação com o Oficial que ele é, e que está articulada ao Chefe dos Exércitos. Esta articulação está sustentada na “virtudes militares”. O encontro com o Capitão Cruel e sua descrição do suplício dos ratos vai evocar um gozo que não é um significado do Outro, como são as “virtudes militares”. Este encontro, portanto, vai provocar o abalo semântico evocado acima. Um outro exemplo alude a um analisante que, depois de suportar por muitos anos uma relação extraconjugal de sua esposa, sofre seu abalo semântico no momento em que soube que o amante de sua mulher fazia erros de ortografia. Se por um lado este “rival disortográfico” faz rir, por outro lado, ao ser valorizado pela mulher, este “rival” introduz no Outro um abalo semântico, da mesma forma que o Capitão Cruel com seu relato da tortura. A transferência entra, portanto, como o que vem re-estabelecer o efeito semântico.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

A transferência: Desvios e Retificações (II)

A terceira face da pirâmide herege, como diz Lacan, está constituída pela teoria em que o analista é reconhecido como o representante da realidade e que tem por tarefa fazer amadurecer o objeto em uma estufa. Este objeto, o analista, é o que restaria ao sujeito em seu mergulho na patologia, por isso sua única saída seria a “introjeção intersubjetiva”.
A transferência como “introjeção do analista” teve como seu mais forte defensor, na psicanálise de língua francesa, Maurice Bouvet.
M. Bouvet é o analista ao qual Lacan se refere no texto, sem mencionar seu nome. Sua teoria se centrava na distância ao objeto. Pode-se dizer que o tratamento de uma neurose consistia em “meter o nariz no objeto”. Daí vários textos que tratavam da "devoração fantasmática" do analista.
Em “A direção do tratamento...”, Lacan vai tomar esta teoria como um sintoma da má utilização da função do falo, que, para ele, era “o modo de presença do sujeito no desejo”. Ora, se o falo dá ao gozo uma medida simbólica, essencialmente sob o significante da impotência, não pensa-lo como uma negatividade, corre-se o risco de valorizá-lo excessivamente e transforma-lo em um problema de distância efetiva, por isso surgem estes restos de uma geometria, digamos métricas, do falo que acabará sendo devorado.
Para tratar desta geometria, Lacan propõe uma geometria sem medida que é a topologia. Assim à teoria da distância da medida fálica, opõe-se a topologia do objeto.
É, portanto, para questionar o papel do falo enquanto modo de presença do sujeito que Lacan vai tomar dois exemplos, destacando o cuidado que o analista deve ter ao manejar este lugar do falo.
O primeiro paciente ao qual Lacan se refere é um obsessivo que ele recebe em análise logo após este ter se submetido a uma análise que estava sustentada na teoria da introjeção subjetiva, ou seja, teoria que levava em conta a distância do objeto. Nossa atenção é dirigida, por Lacan, para percebermos que, ao perseguir o paciente com “a distância ao analista”, chegou-se a desenvolver um amor homossexual com uma pessoa de seu ambiente. Este amor veio para restaurar um terceiro dentro da relação dual que se estabeleceu na análise. Pode-se afirmar isto levando em consideração o fato de que a significação fálica vem, exatamente, questionar na metáfora paterna ao terceiro, o pai, entre o sujeito e o desejo da mãe.
O segundo exemplo parte de um caso de fobia. Trata-se de um paciente que tinha medo, uma fobia mesmo, de que as pessoas “mexessem” com ele por causa de seu tamanho.  “Este jovem que era piloto da marinha mercante, teve que abandonar seu trabalho por causa de uma idéia obsessiva que o atormentava: via-se muito alto e se sentia ridículo. De fato era um rapaz de grande estatura, media aproximadamente 1,90 mts”. Como consequência de um certo tempo de análise, ele se torna voyeurista. Procura olhar dentro dos banheiros do cinema às mulheres urinando. Lacan se pergunta porque esta análise desencadeou esta perversão transitória. Este paciente é de Ruth Leibovici, esposa de do presidente da Sociedade de Psicanálise da qual Lacan havia recém saído. O aparecimento desta perversão transitória é descrito como tendo surgido logo depois que um sonho é trazido à análise como reação “a uma interpretação que dera de uma certa armadura surgida, em posição de perseguidor e, ainda por cima, armada com uma bomba de Flit, como sendo a imagem da mãe fálica.” A analista interpretou associando esta figura materna a ela, encerrando o circuito transferencial numa relação dual. Ficou, no entanto, uma questão: o que é esse objeto enigmático que está nas mãos da armadura-analista? É verdade que a própria analista se questiona se não deveria ter falado do pai, mas, como lembra Lacan, como o pai era uma figura ausente na vida real, ela acaba se desviando desta intervenção. Ou seja, uma interpretação que leva em conta a realidade mais do que a fantasia do paciente.
Esta interpretação, ao reforçar o caráter enigmático do objeto fálico, acaba por enviar o analisante a ir ver, ou seja, não somente provoca um acting-out (lembremos do caso descrito por Ernst Kris a que costumamos chamar “o homem dos miolos frescos”) como também leva ao que está sendo chamado aqui de uma perversão transitória. Como se não bastasse tudo isso, o paciente também força a analista a introduzir a presença de seu marido que era psiquiatra e foi quem lhe encaminhou este paciente. Desta forma o paciente restitui, de uma forma patológica, o triângulo edípico para poder respirar um pouco, em meio a tantas baforadas de Flit.
Esclareço esta passagem, acrescentando o que Laurent nos diz ao comentar este texto de Lacan: “A função essencial do falo é designar um outro lado fundamental. O Nome-do-Pai quando está coordenado com a significação fálica fica fora do parêntesis – NP (A/falo) – Quando Sptiz, (p. ex.) tenta reduzir a função paterna à do estranho, segundo seus termos, estamos diante de um mal menor, que de todos os modos evita essa função essencial do falo que é designar o outro lugar da metonímia. Quando o analista se opõe a este outro lugar (da metonímia) levando incessantemente o paciente a um face a face com ele, desencadeia, em determinado momento, o chamado a este outro lado”.
É neste ponto do texto que Lacan traça uma diferença muito importante entre o objeto fóbico e o fetiche: “(Eu) lhes ensinei a distinguir o objeto fóbico como significante para todo uso, para suprir a falta do Outro (vide caso do pequeno Hans) e o fetiche, fundamental a toda perversão, como objeto percebido no corte do significante”.
Laurent esclarece esta passagem dizendo, primeiro, que a evolução do objeto “a” na teoria de Lacan vai modificar a afirmação feita em 1958: “De todo modo, mostra como o objeto fóbico é uma metáfora, e por isso é ‘um significante para todo uso’. O fóbico, por trás de toda as portas de sua vida, encontra o significante que o inquieta, que lhe serve para tudo, que dizer, para não fazer nada, porém faz tudo com ele, como o pequeno Hans faz tudo com seu cavalo. O que é, em troca, o fetiche? O objeto que se aloja na rachadura do significante e sabemos que a rachadura significante é o intervalo entre S1 e S2, ali onde o paciente de Kris colocava o nada de seu desejo. O fetichista coloca ali algo, o fetiche, porém a operação é idêntica, coloca ali um objeto”.
Lacan vai destacar a função do objeto transicional de Winnicott  dizendo que ele vai ocupar este mesmo lugar: o intervalo significante, mas com uma outra função: a de mediação entre o sujeito e o Outro. Lacan não se furta a dizer que a noção de objeto “a” foi gestada no objeto transicional de Winnicott.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

A transferência: Desvios e Retificações (I)

Hoje vamos tratar da transferência no que diz respeito aos desvios apontados por Lacan no texto “A direção do tratamento”. Vamos fazer um trajeto ao inverso, portanto. Primeiro os desvios e, depois, vamos trata-la a partir do que Freud construiu e que Lacan desenvolveu.
Na primeira parte do item "IV – Como agir com seu ser", Lacan chama a nossa atenção para um fator muito importante que, durante muito tempo se prestou a muitas confusões no desenvolvimento do conceito de transferência. Fazendo referência a Daniel Lagache desenha-se a importância de introduzir “na função do fenômeno as distinções de estrutura, essenciais à sua crítica”. Explicita-se, nesta passagem, que se trata de uma “alternativa pertinente (...) entre a necessidade de repetição e a repetição da necessidade.” É verdade, no entanto, que esta distinção só será plenamente desenvolvida por Lacan por ocasião de seu Seminário XI, quando ele vai colocar a repetição como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, juntamente com os conceitos de inconsciente, transferência e pulsão.
Outro aspecto criticado é “o fazer dela (a transferência) a sucessão ou a soma dos sentimentos positivos ou negativos que o paciente vota a seu analista.” Na esteira deste questionamento Lacan retorna ao que já foi ligeiramente mencionado em nosso último encontro: o estatuto da transferência no começo, durante e ao final de uma análise. Em seguida lê-se um elogio explicito a um artigo de Ida Malcapine: “The development of the transference”. Mesmo sendo um escrito que não leva sua crítica aonde se espera, Lacan não deixa de elogia-lo, pois se pode ler ali descrita a dificuldade com a qual os analistas se deparam quando se trata de definir o que é a transferência. Malcapine afirma: “Não existe uma única contribuição que compreenda todos os fatos e as várias opiniões (sobre a transferência). Isto é tanto mais notável quanto as diferentes opiniões levantadas sobre o mecanismo da transferência e seu modo de produção parecem pouco compreendidas." Mais adiante ela continua dizendo que isto talvez tenha origem no fato de que “parece tacitamente assumido que o assunto está totalmente compreendido”, além de que se escrever sobre a transferência de uma forma mais  “mais descritiva que explanatória”, ou seja, não se distingue da fenomenologia transferencial a estrutura que a sustenta. A partir deste ponto Malcapine faz um extenso percurso sobre a evolução do conceito, começando por distinguir a transferência da sugestão. Não vou entrar nos meandros desta discussão, pois além de extensa ela vai nos desviar dos nossos objetivos.
A segunda parte começa com uma crítica da parcialidade das teorias com as quais os teóricos da psicanálise tentavam abordar a transferência (referência à 1958). Parcialidade esta que teve reflexos diretos no manejo que implicaram, obviamente, na direção do tratamento. Verifica-se, com Lacan, três particularidades deste momento e suas consequências.
O primeiro está agrupado sob a chancela do “geneticismo” e se sustenta principalmente nas incursões teóricas de Anna Freud e fundamentou os “fenômenos analíticos nos momentos de desenvolvimento implicados e se nutriu da chamada observação direta da criança”, correlacionando tudo isso ao que se costumou chamar de “análise das defesas”. O livro “Os mecanismos de defesa” foi durante muito tempo um clássico e um verdadeiro manual de técnica psicanalítica. O fracasso desta metodologia de trabalho, como explicita Lacan, fica claro pela “solidariedade que supõe (...) à sucessão de fases pela qual Freud havia tentado ligar a emergência pulsional à fisiologia”. Os resultados desta forma de atuar acabam por estabelecer certos “patterns” que buscam “em seu conformismo as garantias de sua conformidade”. Assim, o êxito era conhecido pela “passagem para o patamar superior de renda e a saída de emergência da ligação com a secretária, regulando a escape de forças rigorosamente subjugadas no matrimônio, na profissão e na comunidade política...”. Nesta linha, até mesmo a forma como se trabalhou os conceitos de pulsão de vida e de morte está na contra-corrente do pensamento de Freud: “como o jogo de um par de forças homólogas em sua oposição”.
Em seguida acompanhamos Lacan tratando do que se pode chamar a segunda face da transferência, ou seja “o eixo tomado da relação de objeto” que enfatiza a transferência como a capacidade de amar. Esta teoria, ironiza Lacan, assim como o geneticismo tem a sua origem na nobreza da psicanálise: Abraham. Seu princípio se resume em: é a capacidade de amar que guia o sujeito em direção ao real, ou melhor, à realidade, sendo esta sua única via de acesso. A idéia de um amor total vai mesmo na direção oposta ao que o próprio Abraham trouxe como contribuição à teoria analítica: a parcialidade do objeto. Esta possibilidade do amor total como final de um percurso pela transferência traz, como conseqüência, a exclusão da psicose do tratamento analítico.  Partir do princípio que o psicótico não pode amar é, certamente hoje, considerado um grande equívoco, já que é sabido que na psicose o amor se manifesta claramente – vide os episódios de erotomania, por exemplo, que acontecem na condução de um tratamento com o psicótico.  Mas foi exatamente o trabalho com a psicose que propiciou uma modificação desta dialética entre o amor parcial do objeto e o delírio do amor genital. Esta teoria pode ser resumida opondo-se o amor pré-genital ao amor genital: todas as doenças da vida psíquica eram pré-genitais e o sublime, o que finalmente brinda a felicidade de viver, é o genital. Esta conceituação levou autores à descrições de relações amorosas delirantes, fruto da imaginarização de um relação sexual possível graças à psicanálise.
Impossível, diz Lacan, perceber “o objeto que se apresenta quebrado e decomposto” como um fator patológico, pois é esta a única possibilidade do objeto. Questiona-se, ao mesmo tempo  “o que tem a ver com o real esse hino absurdo à harmonia do genital”. Nesta trilha, vamos encontrar mais adiante no ensino de Lacan o famoso aforismo: “a relação sexual não existe”.
Conseqüência disto é a crítica feroz e explicita àqueles que “tentam camuflar Eros, o Deus negro, de carneirinho do Bom Pastor” para nada saber do que Freud define como as barreiras e as degradações da vida amorosa. É fundamental, continua Lacan, que não se confunda a estrutura do sublime com o orgasmo perfeito. Tudo isso acaba por colocar a idéia da “normalidade delirante da relação sexual” como um “fardo inédito (...) que amarramos para (colocar n)os ombros dos inocentes”.




terça-feira, 24 de setembro de 2013

“Da transferência à interpretação” (II)


Em “A direção da cura...”, Lacan vai introduzir um a mais quando se trata da interpretação. Esta não se resumirá mais “apenas ao preenchimento de lacunas produzidas pelo recalque, mas para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, (a interpretação) deverá introduzir na sincronia dos significantes que aí se compõem, alguma coisa que, de súbito, tornará a tradução possível”.
Do que se trata, portanto é de possibilitar a tradução de algo que, pelo mecanismo do recalque, permanece como um estranho à seqüência significante e que, devido a estar envolvido pela vestimenta significante, se infiltra e se alimenta do sentido que desliza sob esta cadeia de tal forma que só vai existir duas possibilidades para este estranho: ou vai se proliferar indefinidamente, ou vai reinventar, a cada instante, uma nova aparição.  A possibilidade desta tradução só vai existir se a interpretação do analista se ater à condição de que ela “não faz senão recobrir o fato de que o inconsciente já procedeu, nas suas formações - sonhos, lapsos, chistes ou mesmo o sintoma - à suas interpretações.” “É a função do Outro que aí se apresenta enquanto receptáculo do código. Sendo a propósito dele que podemos detectar o elemento faltante”, o estranho.
Neste ponto já se pode verificar uma construção do espaço onde vai reinar o objeto pequeno “a”. Este ponto vazio de significante que denota a presença de um resto do que antes teria sido, miticamente, um todo absoluto. Este resto que foi nomeado como mais-de-gozo é o que permanece como um “X” no caminho do sujeito, impedindo que ele possa estabelecer uma escolha. Este mais-de-gozar se estrutura a partir mesmo da escolha forçada que ocorre por ocasião do “nascimento” do sujeito. Vendo-se colocado diante de duas possibilidades, que Lacan define como Ser ou Sentido, Alienação ou Separação,  a Bolsa ou a Vida o sujeito só tem uma saída: não "ser" para "estar" no mundo como "sujeito por vir". Esta posição é a única que sustenta um sentido a partir de um desejo singular que desliza metonimicamente sob a barra. Como resultado desta operação de separação vai acontecer um resto que permanece como vazio entre o sujeito e o Outro e que pode ser “causa de desejo” ou “mais-de-gozo”. Acontece que a escolha forçada, ou a escolha que nasce desta carta marcada que introduziu o sujeito no mundo, acaba por associar este sujeito a um certo modo de gozo que, por sua vez, define a escolha forçada. O que uma análise pode trazer é acrescentar à possibilidade de escolha, ali onde uma escolha forçada impele o sujeito a manter atrelado a um certo modo de gozo, uma nova opção. Isto será possível se este espaço vazio, onde reina este objeto pequeno “a” for nomeado e, assim, uma nova série significante pode se constituir, produzindo uma retificação pulsional.
Em 1964 Lacan, sustentando-se no fato de o inconsciente não mais está definido pelo que podemos chamar um estoque de significantes, mas sim como correlativo ao discurso analítico, ou seja, ele está ali, aspirando à realização, mais do que esperando ser decifrando (para tanto a metáfora da abertura e fechamento, que vai descartar toda fórmula própria a lhe dar substância) vai dar um passo a mais na sua teoria da interpretação. “A interpretação é uma significação, não importa qual. Ela vem aqui no lugar do s (S/s) e reverte a relação que faz com que o significante tenha por efeito, na linguagem, o significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível. (...) Por isso a interpretação não está aberta a todos os sentidos. Ela é uma interpretação significativa ... e o que é essencial é que o sujeito veja, para além desta significação, a qual significante - sem sentido, irredutível, traumático - ele está, como sujeito, assujeitado”
Em 1969, no seminário sobre o Avesso da psicanálise, Lacan vai dizer que a interpretação, sendo “um saber entanto verdade” se situa entre enigma e citação, onde o enigma é a presença de uma enunciação que não é de ninguém e que não vai corresponder a nenhum enunciado de saber. Seria uma verdade sem saber. Quanto à citação, ela é mais um enunciado de saber que se sustenta num saber afirmado, com nome de autor, etc. Desta forma ela vai introduzir a dimensão de uma enunciação latente, que ela mesma revela, faz vir à luz.
Um pequeno parênteses sobre a “Interpretação oracular e apofântica nos gregos” para nos falar o que vem a ser “o dizer esclarecedor que revela uma enunciação latente”. Vamos partir de um fragmento de Heráclito: “O senhor, cujo oráculo (mantêion) está em Delfos (Délphois) nem diz (légei) nem esconde (Kyptei), mas dá sinais (semainei)”. O dito orácular consiste numa frase que necessita um interprete que se coloca entre deus e o consulente. O equivoco de Édipo, p.ex. foi ter se colocado como interprete numa situação onde ele mesmo era o consulente, sem que o soubesse.
Quanto à revelação, esta não precisa de autorização, pois ela é já uma autoridade por si. Com isto, podemos dizer que não é o oráculo quem erra, mas o interprete. (Ex. do rei que recebe a revelação de que “ao cruzar a ponte um grande império vai cair” e no final, após sua ação de agressão ao inimigo, perde o seu reino.) A interpretação só poderá ser confirmada como verdadeira depois do acontecimento.
O enigma rompe com o negar ou afirmar. Ao convocar um sujeito a associar livremente estamos convocando-o a suspender todo julgamento de verdadeiro ou falso. Estarmos convocando-o a estabelecer enigmas a partir da suspensão da verdade que se propõe neste momento. Será propor-lhe que sustente uma disjunção entre a proposição e a asserção. Um exemplo disto é a proposição “Todo homem é mortal. Sócrates é homem, portanto Sócrates é mortal”. Temos uma proposição e uma assertiva. O que a associação livre propõe é uma suspensão da função proposicional deixando o lugar da assertiva como um vazio, fazendo surgir um “x” ali onde se escreve a função. Esta é uma maneira simples de dizer que a associação livre abre um espaço para o “Logos apophantikus” que traz uma afirmação sobre o ser do sujeito, sobre o “eu sou”, o que supõe, também, sobre os objetos que são chamados por seu ser de desejo. Esclarece-se o apofântico a partir de sua raiz (apó - phainein) que aponta para fazer brilhar, aparecer, iluminar. (phaós/phos = luz).
Apofântico é uma revelação. Logos apophantikus = discurso afirmativo, que ilumina.
Na Grécia antiga, toda a metáfora utilizava a visão como base. Na civilização judaica, ao contrário, as metáforas eram auditivas, o que as colocava mais próximas do pensamento.
O “logos”, a palavra é algo que tanto revela quanto esconde a idéia (radical Ide = ver).
Para que as revelações, dos sonhos, p.ex., pudessem acontecer, Artemidoro sugere: “Se o relato de um sonho aparece mutilado, o intérprete deve acrescentar alguma coisa para fazer sentido”, mudar uma letra de lugar, inverter a ordem, etc.
Assim, para concluir esse parênteses, pode-se sintetizar dizendo que enquanto o sonho é uma revelação, a fala do interprete é apofântica.
Retomemos o caminho de Lacan:
Finalmente, em L´Étourdit, a interpretação vai ser inscrita pelo viés do equívoco, ao nível da homofonia onde a ambigüidade homofônica torna possível o que a ortografia impossibilita. É nesta passagem que Lacan vai mencionar que a interpretação joga com o “cristal” lingüístico, com a difração das significações.
Do lado da gramática, o “eu não te faço dizer” deixa a sua própria ambigüidade agir: aquele que ouve não saberá se o que se diz é um “eu disse”, ou um “eu não te soprei”, já que os dois foram ditos.
Finalmente, no plano da lógica vamos ver agir aquilo sem o qual a interpretação será imbecil. Um exemplo pode ser dado com a formalização freudiana de que o inconsciente é insensível à contradição.
 
Passemos agora a examinar o tema da transferência, partindo do primeiro tópico, da parte III, do texto “A direção do tratamento...” Nesta parte, que Lacan divide em oito, vamos encontrar exposto o seu modo de pensar a transferência através das críticas que ele vai tecer, de forma exaustiva, às outras formalizações da transferência que precederam seu ensino. Assim ele vai passar pelo geneticismo de Ana Freud, pela relação de objeto descrito por K. Araham e desenvolvido por M. Klein e seguidores, para chegar ao conceito de introjeção intersubjetiva, onde trabalha principalmente os textos de seu contemporâneo Mauricie Bouvet.
Na primeira parte, Lacan pôde discutir o que mencionamos acima, ou seja, se existe uma transferência no começo e outra no final de uma análise. Na segunda parte ele vai se questionar sobre qual seria, entre estas duas formas, o motor da regressão. Aí se pergunta se por acaso é a frustração que vai operar uma certa regressão. E, finalmente, vai poder questionar o lugar, na transferência, das fantasias que apontam e incluem ao analista.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Da transferência à interpretação” (I)

E “no princípio da psicanálise está a transferência!” Com esta afirmação Lacan retoma o tema da transferência em um texto, “Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola”, que trata da formação do analista e, principalmente, do final de análise, além de trabalhar como este final de análise vai se articular com a vida institucional.
No começo está a transferência, continua Lacan, “graças àquele que chamaremos, no despontar desta formulação, o psicanalisante”.
O que interessa então, a Lacan, é que a transferência está no começo da psicanálise e, passando pela interpretação, vai-se retornar sobre este princípio resignificando o que estava no início.
Já no texto “A direção do tratamento...”, Lacan vai apontar, não explicitar, uma diferença fundamental da transferência no princípio e no final de uma análise e articula-la com a interpretação. Há uma passagem onde Lacan vai explicitar a importância da transferência e os desvios que ela sofreu ao longo do tempo e propor  a reinvenção da psicanálise, remetendo-nos ao seu ponto de partida: “C.Q.N.R.P.D (Ce que nous ramène au problem de départ = O que nos leva ao problema do início) ou seja, devemos retomar a questão da transferência perguntando: “Quem é o analista? Aquele que interpreta tirando proveito da transferência? Aquele que a analisa como resistência? Ou aquele que impõe sua idéia da realidade?” Enfim, questionar a transferência desde sua matriz imaginária, sendo que o “O” (“Ce”) é a interpretação.
 
Minha proposta para hoje será começarmos a discutir a questão da estratégia da transferência e sua articulação com a direção do tratamento.
 
Quando Lacan, em 1953, com o texto “Função e Campo da Fala e da Linguagem” resgata para a psicanálise o poder da palavra, redesenhando a função do simbólico diante do enlouquecimento imaginário dos autores pós-freudianos, deu-se o início de um  longo caminho: repensar a interpretação analítica, tanto no que diz respeito à sua forma, sua eficácia, como, também, à função do analista.
Num primeiro momento, que podemos definir com J.A.Miller de fase “hegeliana”, se opunham palavra plena e palavra vazia. O que sustentava a interpretação, nesta época, era a possibilidade de um encontro com uma “verdade feita de completude”. A partir desta idéia acreditava-se que as lacunas da história de um sujeito pudessem ser preenchidas e este sujeito seria, então, “incluído no seio da razão universal”.
A palavra plena era colocada como aquela que “constitui o sujeito na sua verdade” em oposição à palavra vazia, onde o sujeito “se perde no discurso da convicção, em razão das miragens narcísicas que dominam a relação ao outro de seu eu”. Neste contexto ficou estabelecido que era na medida em que o analista fazia calar nele o discurso intermediário para se abrir à cadeia das palavras verdadeiras, que ele poderia, aí, colocar sua "interpretação reveladora”.
Este é tempo em que o Esquema L fazia bem mostrar do que se trata.
Neste esquema temos um eixo imaginário sendo cortado por um eixo simbólico. Sobre o eixo imaginário vai se sustentar o que Lacan chamou de palavra vazia, onde predomina a relação narcísica que se faz presente numa luta de puro prestígio e sustenta uma relação mortífera, aonde o jogo de imagens vem dizer da impossibilidade da comunicação onde o mal-entendido esteja afastado. O eixo simbólico será o corte que uma intervenção da palavra plena vai produzir trazendo ao sujeito uma possibilidade de se localizar em relação a um Outro de boa fé, lugar da lei, do código, lugar onde se coloca a questão sobre sua existência. Neste lugar sua palavra pode ser traduzida em mensagem e retornar sobre si mesmo desenhando uma possibilidade de saída do impasse narcísico.
(Vejam o Esquema L no texto "O Seminário sobre a 'Carta Roubada', in Écritos, pág.58)
A própria clínica, no entanto, vai contestar esta construção “hegeliana” exigindo uma nova elaboração. Será no texto “A instância da letra...”, que a primeira concepção de “interpretação reconciliadora” vai ser substituída pela “concepção de um sujeito definido não pela fala, mas pelo escrito: "entre metonímia e metáfora se constitui um sujeito estritamente determinado pela sua relação à escritura... e reduzido a um vazio, a um corte fundamental”. Este passo foi importantíssimo para que se abrisse um espaço às elaborações futuras da interpretação, na medida que, “como técnica do escrito ... reenvia a operações que são compatíveis com o silêncio”.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Algumas notas sobre o “acting-out”

Resumo aqui alguns pontos que considero importantes para a direção do tratamento:

1 – É um conceito especificamente analítico que acontece quando algo falha. Trata-se de um processo de ejeção e de um retorno à análise.
Pode até mesmo se referir à análise quando ainda não está no curso de seu desenvolvimento. P.ex. quando temos um conjunto de comportamentos passionais que se resolvem pela entrada em análise. Comportamentos estes que podemos qualificar de prefácios que já fazem parte de um texto – o discurso do sujeito já é um discurso de analisante, mesmo que o sujeito não o saiba, mas o “acting-out” só é identificado no "só depois", no divã. Já, em contra partida, temos aqueles que nos dizem de uma saída prematura, cujo melhor exemplo nos é dado pela análise de Dora e o mea culpa de Freud.
 
2 – O “acting-out” está inserido no mesmo nó da transferência e ele não passa de um de seus aspectos, já que está na dependência do suposto saber que a sustenta. Nesta perspectiva Lacan nos apresenta uma oscilação interessante que pode ser assim descrita:
​a – Transferência sem análise – quer dizer ausência ou falha do analista resultando no “acting-out”. O ex. maior na história da psicanálise é a relação de Freud a Fliess que termina no texto “Esboço de uma psicologia científica” que nada mais é do a inscrição deste “acting-out”.
​b – Quando o “acting-out” se precipita na análise e se sustenta na referência ao analista. Neste caso temos a transferência.
 
3 – O “acting-out” acaba por dar acabamento às bordas da situação analítica fazendo com que o analista se questione sobre tudo aquilo que escorrega para além destes limites.
Ele não é um sintoma do analisante ou do analista: é um sintoma da conduta da própria análise, significando o que se passa aí como conseqüência dos sintomas dos dois parceiros: ele diz a verdade.
 
4 – O “acting-out” é uma resposta. É uma mostração endereçada, sem latência, mas não sem agressividade, a um outro que tem de participar. É uma resposta sem palavras que aí não aparecem para sustentar o efeito de significante surgindo apenas como um relato ou comentário, secundariamente. Ele surge como uma busca de uma interpretação de forma forçada endereçada ao outro (com um pequeno “a”). Este aspecto é mais uma diferença entre o “acting-out” com a interpretação que, se basta, se satisfaz por si mesma e não demanda interpretação, mesmo que saibamos que ela contém uma mensagem endereçada ao Outro com A maiúscula. (A interpretação que Freud jamais obteve de Fliess, pois este nunca foi analista.)
O “acting-out” é uma história sem palavras, uma cena produzida pelo inconsciente a partir de uma rememoração que se apresenta na realidade em lugar de ser exposta num sonho ou dita no terreno do jogo transferencial: trata-se de uma outra cena.

5 – É uma resposta dirigida a um outro que não está, ou não está mais, em posição de analista. Em outras palavras, a um fading do analista na sua posição de interpretante. Uma passagem, portanto, do discurso do analista a um outro em função do sintoma do analista levando o sujeito da transferência ao “acting-out”: o sujeito não está aí designado e ele mostra algo: ele crê saber a quem, mas ele não sabe de onde e nem o que: existe aí algo da ordem de um forçamento, da provocação para reabrir o que o analista fechou. Este episódio de falta de palavras em um processo que se supõe sustentar por elas é conseqüência do deslizamento do analista de sua posição levando a uma situação de transferência sem analista. Isso acontece sempre que o analista deixa seu lugar, ou seja, deixa de sustentar um espaço onde o objeto ‘a’ possa reinar como semblante. Podemos explicitar esta situação através de três pontos:
​a – quando ele escorrega para a posição de mestre,
​b – quando ele, acolhendo seu próprio sintoma, fala como analisante,
​c – quando, abandonando a cena analítica pela realidade do mundo, ele passa ao ato.
Em resumo, abandonando seu lugar e o discurso que lhe compete, ele produz uma transferência selvagem e sua resposta sem palavras. Em outras palavras pode-se dizer que o “acting-out” se produz quando o suposto saber que sustenta a transferência deixa, por uma falha de seu discurso, surgir algo do real.
 
6 – O “acting-out” não é da ordem do significante, já que a falha de simbolização anunciada pela ausência de uma interpretação apaga o efeito significante. Por isso podemos dizer que o “acting-out” é da ordem do signo, ou seja, ele representa qualquer coisa para qualquer um. É isso que faz enigma, portanto, sentido. O importante é que, no “acting-out” o sujeito não fala do seu lugar, ele não se designa como “eu” (je): ele não sabe o que diz, o que implica que ele não pode por si mesmo, partindo de seu “acting-out”, reconhecer o sentido no qual está submerso.
Pode-se dizer que temos aqui uma referência a um significante desaparecido: neste limite do indizível, o “acting-out” coloca em cena o que foi rejeitado, segundo o mecanismo da Verwerfung: o simbólico do discurso impossível é posto em ato no campo do real. Por isso a urgência de restabelecer o Outro como interpretante para que possa se restabelecer a situação analítica. Assim diz o analisante nesta situação específica: “Você não compreendeu nada do que lhe disse, olhe o que se passa!” Dito de outra forma: para além da irritação desta incompreensão, existe uma passagem da passividade do deixar dizer à atividade da mostração. O analisante torna-se ativo: ele coloca em cena o discurso que o colocou em cena, ou seja,  sua fantasia fundamental.  Assim fazendo o analisante deixa de ser aquele que apenas acompanha o jogo da produção de seu inconsciente que aí está para ser dirigido (S1/$) ele se coloca em posição de mestre, fora do discurso. Ele representa o que não pode dizer.
 
7 – Partindo do princípio que o analisante toma uma posição ativa no real de um prazer que ameaça se repetir pode-se dizer que existe a mesma relação do “acting-out” ao princípio do prazer que se observa no jogo da criança e o carretel, este momento de assumir o simbólico para dominar o real.  Trata-se, na linguagem freudiana do agieren: a colocação em cena comentada de duas palavras e a mostração de sua relação ao outro faltante. Ao constatar a perda da mãe e faltando quem lhe transmita uma interpretação deste fato, a criança estabelece uma cena onde a bobina rejeitada pode ser recuperada, ao mesmo tempo em que um espaço vai se construindo em torno de duas palavras: Fort e Da.
 
8 –Pode-se situar o “acting-out” entre o discurso e o sem-palavras, um ponto de meio-dizer, um ponto de verdade: aquele onde o recalque é dito, mas onde o recalcado é morto: a Verneinung.
Como no primeiro movimento da Verneinung, há no mecanismo do “acting-out”, recusa e rejeição. Rejeição do dizer angustiante do Outro, arrebatando, por uma clivagem entre o simbólico e o real, a necessidade de uma outra resposta diferente do linguajar comum.  
 
9 - O “acting-out” é da ordem do evitar a angústia: a angústia diante algo do real que a falha do Outro deixou passar ao campo analítico.
Quando o analista – por falha de uma interpretação que ali deveria acontecer, por uma passagem ao ato que o indica em posição de mestre, pelo desvelamento de um sintoma que o designa como sujeito, por um dizer que descobre seu próprio desejo – sai do discurso analítico – quando está fora (out) deste discurso – o analisando não pode permanecer ali sozinho e o segue: out.
 
10 - A interpretação selvagem, como uma forma de desprezar o saber analítico no que diz respeito a seus efeitos, é uma forma do discurso do mestre. O analista, neste caso, não sustenta o lugar de suposto saber e se lança na mestria transformando a situação em transferência sem analista: “acting-out”. Em outras palavras, quando o analista deixa este semblante e se confronta ao real, o analisante vai pelo mesmo caminho: sideração e angústia, onde a histerização se torna necessária e impossível pois o real a interdita, o discurso se cala – é a angústia.
 
11 - O “acting-out” é o efeito do encontro com o objeto “a”: efeito de angústia que, mais além da linguagem, impõe a motricidade, mas dentro da cena, como já assinalamos acima.
 
12 – Diferentemente do “acting-out”, a passagem ao ato é o ultrapassamento da cena, cena imposta ou organizada pelo próprio sujeito: o ultrapassamento da cena em direção ao real; imediata. A passagem ao ato é tipicamente um salto no vazio. No caso da jovem homossexual Freud descreve estas duas situações que são: Quando a paciente está a passear com a mulher a quem ama, mostrando-se ao pai, temos um “acting-out”; quando ela pula o parapeito temos uma passagem ao ato.
 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

ERNST KRIS

​Nascido em Viena, com o século,  Ernst Kris desde muito cedo fez serem reconhecidas sua inteligência e capacidade intuitiva-descritiva. Como historiador de arte, venceu as fronteiras da Europa quando, aos 27 anos,  publicou um catálogo sobre camafeus e entalhes da Renascença Italiana.
Mas foi o casamento com a filha de Oskar Rie, colaborador de Freud , que o faz aproximar-se da psicanálise.  Rapidamente, E. Kris, adquiriu a confiança do mestre, que, em 1936,  lhe confiou, juntamente com Anna e Martin Freud, a leitura dos manuscritos do polêmico texto “Moisés e o Monoteísmo”.
Após sua análise com Anna Freud  iniciou a prática de psicanálise com crianças, pois era o que se autorizava, em Viena, aos leigos, praticantes da psicanálise. Nesta época seguia os seminários de H. Deutch e W. Reich. Data deste tempo o estudo: “Um escultor psicótico do século XVIII”, texto que será objeto de nossos comentários. Este estudo, uma biografia de artista, é um bom exemplo do trabalho ao qual E. Kris se dedicou desde os seus primeiros contatos com a psicanálise: associar psicanálise e arte. Esta associação nos remete à  pertinência da pergunta de J. Adam em sua biografia de E. Kris: “será possível servir a dois mestres e passar de um a outro, da arte à psicanálise, sem desfalcar as duas disciplinas e desnaturar seu núcleo essencial?”
Com a invasão nazista, E. Kris, acompanha Freud a Londres e, em 1940, muda-se para Nova York, onde vai criar, juntamente com R. Lowenstein e H. Hartmann o que veio a ser conhecido como Psicologia do Ego. Com esta teoria, que se baseia numa abordagem explicitamente genética do psiquismo, o “homem de juízo reto”, conseguiu conciliar o rigor das virtudes morais com o liberalismo triunfante do mundo ocidental.
E. Kris, nos entanto, somente  veio ocupar o trono da psicanálise americana após o reconhecimento público de Anna Freud que, por volta dos anos 50, o autorizou a editar, com Marie Bonaparte, os escritos inéditos de Freud a Fliess: “As Origens da Psicanálise”.
A partir deste momento, Kris sustentou por quatro anos um seminário com M.Mahler, E. Jacobson, P. Greenacre e A. Reich, entre outros, onde foram discutidos oito casos clínicos de pacientes que apresentaram dons artísticos precoces.
Muito provavelmente, devido à sua formação como historiador, E. Kris sempre colocou a metodologia acima do achado e o inaudito da descoberta freudiana. Uma aposição que Freud não teria apreciado, ele que gostava de dizer que “os metodologistas me fazem pensar nas pessoas que passam o tempo a limpar os óculos, sem jamais achar a ocasião de utilizá-los...”.
 
2 - A psicologia do Ego
 
E.Kris,  sempre levou em conta o que teria sido formulado nos trabalhos de Freud  sobre técnica, deixando claro que houve uma precedência das formulações técnicas sobre as teóricas. Precedência esta que , conforme nos diz, “se estendeu-se por todo o desenvolvimento de Freud”... desde os  “Estudos Sobre Histeria” quando Freud escreveu sobre técnica deixando a  Breuer a tarefa  da teoria” .
Toda a técnica da Psicologia do Ego vai se sustentar na recomendação, feita por Freud de que a análise deve começar pela superfície, e a resistência ser analisada antes da interpretação dos conteúdos. Estes  princípios básicos nos levam a compreender que,  interpretar as resistências não se refere apenas à sua existência e determina sua causa, mas  afirma que “a resistência  não é simplesmente um ‘obstáculo’ para a análise, mas sim parte da superfície psíquica que tem de ser explorada.”.
Partindo do que Freud disse, nos seus últimos trabalhos:  a interpretação só poderá ser sabida como verdadeira pela reação do paciente, E. Kris vai enfatizar a existência de  uma área de cooperação entre analista e paciente. Esta é a área de autonomia do ego,  a mesma  que sustenta o trabalho do ego do artista quando,durante o processo de criação,  vai acontecer  uma regressão parcial e temporária. É esta parte autônoma do ego que vai ser utilizada para estabelecer um contato com o público despertando sua participação e promovendo uma subseqüente identificação com o artista.
A identificação, pedra angular da teorização da Psicologia do Ego, vai se explicitar quando lemos que se espera que “uma interpretação enfatize o mecanismo de identificação, não apenas por ser a mais ampla, mas também porque pode abrir o maior número de novas possibilidades e ser a interpretação que o paciente pode mais facilmente aplicar a si-mesmo”.
 
3 - “Um escultor psicótico do século dezoito”
 
“Frans Xaver Messerchmidt, nascido em 1736, em Wiensensteig, Alemanha, apresentou um talento precoce e decisivo para uma carreira artística que teve a influência de dois tios, escultores famosos.
Entre fatos que marcaram seu caminho, cito o seguinte: após ter sido nomeado assistente na seção de escultura da Academia de Viena, Messerschmidt  adoeceu: Esquizofrenia Paranóide.
No final de sua vida, Messerschmidt foi gradativamente abandonando as encomendas dos clientes e protetores, para iniciar uma série de bustos e cabeças masculinas, esculpidas em tamanho natural. Mudou-se  para Bratislava, e passou a  trabalhar somente nas cabeças e bustos, de forma tal que mais de sessenta foram encontradas em seu atelier, após sua morte. Adquiriu uma casa próxima ao cemitério, onde recebia os turistas e apreciadores de artes que não se deixavam abater pelos inconvenientes da viagem e da vizinhança. No entanto, várias vezes Messerschimdt recusava  a recebê-los ou a mostrar-lhes suas esculturas. Como conseqüência, cultivava o sentimento de que não era suficientemente reconhecido e ameaçava destruir suas obras. Acredita-se até que algumas foram realmente destruídas. Morreu de pneumonia em 1783, com 47 anos de idade.
Suas esculturas, consideradas durante o século XIX como estudos de fisionomia e traços de caráter ou como representações das paixões humanas, foram batizadas com títulos que pretendiam traduzir as expressões dos rostos.
A tentativa de Kris, no texto em questão é, partindo “das instâncias freudianas de conceitos a priori, da organização psíquica” e dos dados biográficos de amigos do artista, compreender a intenção de Messerschmidt nas produções das expressões faciais. Como nos lembra Jacques Adam, Lacan criticou na prática de E. Kris, exatamente o princípio que afirmava que “o paciente jamais tenha o sentimento de que o analista não compreende. Que, pelo contrário, o paciente tenha a todo momento a impressão de que o analista o acompanha nas profundezas de seu imaginário, o que torna o trabalho da transferência possível”.   Buscando  esta compreensão, E. Kris, vai percorrer, minuciosamente, os nomes dados às imagens para nos dizer que apenas duas denominações foram adequadas: “O sono tranqüilo” e “O Bocejador”.
Na busca de subsídios para melhor interpretar o estilo e as nuances da obra de Messerschmidt, E. Kris vai em busca das influências que o artista teria sofrido, e conclui que foi a corrente que “se esforçava em mostrar como a face humana sofre deformações diante de diferentes experiências”. O objetivo do escultor era representar as transformações dos músculos da face no curso de diferentes funções como bocejar ou dormir. “Ele não estava interessado na representação das emoções”.
Nas minúcias das descrições das obras, Kris vai passando das “distorções de musculaturas” para as “constelações mímicas que se repetem em inúmeras variações”, até chegar nas “deformações que atingem o nariz”, para concluir que a “careta” é “um movimento expressivo malogrado”, que nos diz de uma tendência reprimida que interfere com a seqüência da expressão intencionada - p.ex., o sorriso de alguém que dá os pêsames. A constelação mímica dos bustos de Messerschmidt pertence pois à categoria das caretas, das “deformações ou alterações da fisionomia”, com a ressalva que “no seu caso são manifestações de processos inconscientes” que vão nos surpreender “se examinarmos a série completa dos bustos, com seus ares rígidos e o vazio de suas expressões.”
Foi durante uma visita de F. Nicolai, amigo do artista, à sua casa, que este lhe confessou que os demônios lhe visitavam, especialmente à noite. Felizmente, por causa de sua vida casta, dizia Messerschmidt, ele podia viver em bons termos com eles. O demônio da proporção, afirma, o inveja pois, ele, quase atingiu a perfeição na proporção. Esta é a explicação  do artista para o fato de ser acometido de dores no abdome e nas pernas quando trabalhava, em “seus mármores ou bronzes”, numa certa parte do rosto “que é semelhante a uma certa parte na região baixa do corpo”. Com este recorte da vida de Messerschmidt , E. Kris nos diz de sua perspicácia clínica, se associarmos o que disse,  ao que hoje sabemos, com Lacan, ser a impossibilidade da proporção sexual. O aparecimento dos demônios faz parte da tentativa do psicótico de sustentar um delírio onde o um se estrutura mantendo, ou melhor tentando manter, fora, longe, toda possibilidade de denotação da falta estrutural, sob pena de ter sua frágil estabilidade fragmentada.
No entanto, apesar desta aproximação que faz E. Kris, a falta de sustentação teórica promove um deslizamento pelo viés do sentido, deixando escapar o que há de estrutural.
Continuando seu trabalho, E. Kris vai destacar uma característica dominante na série de cabeças produzidas por Messerschmidt: a sua uniformidade, para dizer que todas as tentativas para “interpretar a expressão” são logo abandonadas pois a constelação mímica é imediatamente reconhecida como uma careta...  A impressão que se tem é que a capacidade de criação do artista foi comprometida por alguma limitação e que “a espontaneidade deu lugar à monotonia... ”. Neste ponto é impossível não associarmos esta descrição à formulação teórica de Lacan que afirma ser o psicótico o mestre do significante, resumindo, sua produção a um enxame de S1, onde nenhum sentido se sustenta pelo deslizamento significante, o que faz com que a série seja sempre monótona, um infinito do mesmo.  
No entanto, e aí está o grande achado do texto: apenas dois bustos se diferenciam. Caricaturas de rostos humanos que figuravam, na fantasia delirante de Messerschmidt,  os demônios da proporção. A diferença, destes dois rostos, fica ainda mais marcante na medida em que o artista vai dizer-se capaz de refazer toda a série, com exceção das duas cabeças pontudas.
Na impossibilidade, mais uma vez explicitada, de poder reconhecer nestas duas figuras estranhas-familiares, que se intrometem na série, algo da estrutura, Kris vai optar pelo caminho das frágeis associações imaginárias, destacando os lábios como o foco da atenção...  É verdade que a presença da pulsão, no seu trajeto de ir e vir em torno do objeto, vai ser descrita por Kris: “Há uma impressão fálica envolvida, um sentido geral de atividade e direção. Somos levados a supor que essa atividade é atribuída, por projeção, aos demônios enquanto perseguidores.”, mas a plasticidade que é oferecida pela interpretação que se baseia no imaginário vai, no entanto, levá-lo a concluir “que estes dois bustos de fato representam, segundo nossa interpretação, é a ilustração direta de uma prática sexual (felatio), à qual os demônios convidam e forçam Messerschmidt”.
Ao comentar os efeitos provocados nos observadores, pelas duas imagens, E. Kris vai afirmar que eles não são somente mais intensos do que os outros, como também, diferem na qualidade: “não há nenhuma careta aparente, nenhuma constelação mímica. O aspecto do “rosto é mantido intacto e, como observou Nicolai, os traços humanos não se ‘perderam’, mas o artista lida com eles com uma certa liberdade”. E. Kris, mais uma vez, passa perto do que se diferencia da monotonia do significante, do que escapa ao significante e se presta a ser encapsulado por uma imagem qualquer, provocando as mais diversas reações e fazendo de sua posição psicológica algo particular: o objeto a.
Podemos dizer,neste ponto que, a “intuição” (conceito colocado ao lado do “planejamento”, como essenciais à interpretação) levou Kris a formular que “talvez seja porque descobrimos nas duas figuras a mais convincente expressão do núcleo da fantasia delirante de Messerschmidt, é que podemos dizer que esta é uma transformação artística da realidade, levada ao extremo, a fim de disfarçar a fantasia latente.
As interpretações, a partir daí, passam pelas teorizações que Freud desenvolveu nos textos sobre Psicose, principalmente “O Caso Schreber”, assim como pelo conceito de narcisismo.
A presença do espelho na vida de Messerschmidt, que não usou diferentes modelos, mas copiou sempre o reflexo de seu próprio rosto  é, p. ex., assinalada por E. Kris. Essas tentativas tiveram, para o artista, a finalidade de provar incessantemente sua própria existência como pessoa, criando, a cada vez formas novas e satisfatórias de adornos exteriores. Este é seu esforço para a recuperação da própria sanidade. Uma tentativa de reconstruir o mundo que está sempre ameaçado de destruição. Foi nesta tentativa que ele falhou. As expressões fisionômicas de seus auto-retratos revelam-se superficiais, o que nos leva a acrescentar: demonstrando a falha narcísica, ou seja, o fracasso da função da imagem na promoção da identificação ao próprio corpo. Mas, mesmo assim, sua arte tornou-se o instrumento de um ritual mágico. Os demônios da proporção deveriam ficar distante o suficiente para não destruírem o frágil arranjo de seu mundo, mas, também, perto o suficiente para serem controlados.
O caso de Messerschmidt ilustra, nos diz E. Kris, o que, poder-se-ia denominar, dentro da teoria da arte, o limite estético. É o mesmo limite que Freud traça entre o sonho, o devaneio e a narrativa coerente, ou entre a fantasia e a poesia.
A identificação de Messerschmidt com Deus - o escultor criador, é demonstrada em vários relatos de F. Nicolai sobre sua convivência com o artista. Esta identificação é interpretada por E. Kris, não só pela crença mitológica de que o artista é dotado de poderes mágicos, como o criador, mas porque, enquanto ele trabalhava, apalpava suas próprias costelas a fim de criar figuras humanas. Ao acrescentar que nesse momento o círculo se fecha e o que ele esculpe - sua própria imagem, seu rosto - tem para Messerschmidt uma conotação feminina, E. Kris demonstra apreender muito bem o que Lacan, mais tarde, vai chamar de empuxe-a-mulher, já descrito por Freud no “Caso Schreber”.
A identificação do artista esquizofrênico com Deus, o criador, vai determinar igualmente a fantasia delirante de Messerschmidt segundo a qual o demônio da proporção persegue-o por inveja. Para ele, como para muitos outros artistas, a proporção - divina proporzione - é o segredo de Deus, que leva o artista a violar a proibição divina  na sua luta para atingi-la.
 
4 - CONCLUSÃO
 
E. Kris não é apenas uma referência do ensino lacaniano através do seu caso “o homem dos miolos frescos”, mas é saudado, também, por autores como sendo verdadeiramente o “cabeça pensante do triunvirato da Ego-Psychology”
O que ele tenta, em suas biografias de artistas e, especialmente na que acabamos de comentar, é de transportar para suas interpretações o mesmo padrão que utilizou no seu trabalho como historiador da arte, levando-o, muitas vezes, por labirintos sem saída.
Seu suporte teórico nas proposições freudianas, no entanto, lançam luzes que, infelizmente, são abortadas por ignorarem a lógica do significante e a função da letra como, p. ex. quando comenta os desenhos de um artista esquizofrênico que estava sob seus cuidados: “Seus desenhos não são obras de arte que ele deseja autenticar, mas sim afirmações que deseja concretizar ... ‘não tem valor artístico’, confirma o paciente, não são desenhos, ‘mas sinais escritos’. Mesmo com todas estas indicações, E. Kris, no entanto, retoma as interpretações do sentido das imagens.
É por isso que podemos dizer que o trabalho de E. Kris, mesmo que por vezes toque pontos cruciais da psicanálise, trazendo contribuições importantes, vai se perder no “a priori” de uma teoria que se construiu para promover o tamponamento do cerne da descoberta freudiana: S(A/).
Foi o que demonstrou Lacan, todas as vezes que comentou o caso clínico do “homem dos miolos frescos”. Afinal, o desejo é sempre desejo de nada.

Bibliografia:
 
Adam, J. - Ernst Kris - 1900-1957. De l’art à l’ego, in Ornicar? 34. Navarin Editeur, Paris.
                1985            
Kris, E. -   Psychologie du moi et interpretation dans la therapie psychanalytique,  in Ornicar? 46. Navarin Editeur, Paris. 1988
Idem - Psicanálise da Arte. Editora Brasiliense, São Paulo. 1968
Lacan, J. - Écrits, Editions du Seuil, Paris. 1966